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Kieren: Os Subconstrutos do Número Racional

CAPÍTULO II REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.1 Kieren: Os Subconstrutos do Número Racional

Thomas Kieren foi um dos primeiros pesquisadores a chamar a atenção da comunidade científica para a complexidade do conceito de fração e propôs, em artigo de 1976, que a compreensão desse conceito deve levar em conta sete

interpretações que mantêm relações entre si e que devem ser consideradas

segundo as estruturas matemáticas, as estruturas cognitivas e as estruturas instrucionais envolvidas (Martinez, 1992).

As interpretações propostas por Kieren são assim enumeradas: • frações que podem ser somadas, subtraídas, comparadas, etc;

• frações decimais, como uma extensão do sistema decimal de numeração; • classes de equivalência de frações;

• números da forma p/q com p e q inteiros e q≠0, isto é, razões de inteiros; • operadores multiplicativos;

• elementos de um conjunto quociente infinito • medidas ou pontos na reta numérica.

Em artigos posteriores, Kieren (1981, 1988 e 1993) mudou a classificação apresentada originalmente e substituiu o termo interpretações do número racional pelo termo subconstrutos. Kieren tomou como base o trabalho do filósofo Henry Margenau, que denomina construtos teóricos a objetos mentais que podem ser construídos a partir de idéias mais simples que se complementam. (Kieren, 1988 p.162)

Margenau entende o processo de construção do conceito como o estabelecimento de relações entre as percepções e compreensões de um objeto mental (os construtos), que tem como implicações o surgimento de atos físicos ou mentais envolvidos nessa gênese. (Kieren, 1993, p.57).

A proposta de Kieren, de substituir o termo interpretações por subconstrutos, é comentada por Martinez (1992). Segundo esse autor (p. 36), Kieren entendeu a noção de número racional como um construto teórico, que pode se constituir a partir de noções mais simples, chamadas subconstrutos. Essa postura diante do problema permite isolar com mais facilidade as noções essenciais para a construção do conceito. Nas interpretações, conforme Kieren havia proposto anteriormente, essas noções essenciais estavam muito interligadas e não podiam ser isoladas e identificadas com facilidade.

Assim, para Kieren o conceito de número racional pode ser construído a partir da consideração dos quatro seguintes subconstrutos (Kieren, 1988 p.166):

• quocientes; • operadores; • medidas; • razões.

O autor não considera o subconstruto parte-todo como outros pesquisadores, entendendo que as idéias que o constituem já estão presentes nos subconstrutos quociente, operador e medida (Kieren, 1993, p.57).

Esse enfoque surgiu aparentemente da necessidade de isolar as noções que são mecanismos para a construção do conceito, como as de partição e equivalência, daquelas que são específicas do construto. Martinez (1992) ainda argumenta que não seria possível fazer essa separação a partir das

interpretações, como proposto anteriormente, pois naquele caso essas idéias aparecem muito inter-relacionadas.

A mudança proposta por Kieren também sugere um desvio de foco do pesquisador, pois as interpretações, como apresentadas no primeiro artigo, pareciam privilegiar as estruturas matemáticas envolvidas no conceito, enquanto a idéia de subconstrutos parece atribuir mais ênfase às estruturas cognitivas.

Aprofundando suas considerações sobre a construção do conceito de número racional, Kieren propõe um modelo teórico para essa construção que procura apresentar as possíveis interconexões entre as idéias que formam o conceito, partindo das situações presentes no conhecimento intuitivo do sujeito até o estágio da formalização. O modelo é apresentado sob a forma de um mapa em que se identificam quatro níveis pelos quais deve passar a construção do conceito de numero racional (Kieren, 1993 p. 64-65):

• o nível dos conhecimentos intuitivos • os subconstrutos,

• um terceiro nível, obtido a partir dos subconstrutos em direção a um pensamento multiplicativo mais formal

• o conhecimento estruturado nos números racionais dentro de um conjunto quociente.

Na busca de explicações para essa evolução do processo de construção do conceito, Kieren (1993) considera que a partição e a obtenção da fração com

numerador unitário da forma b 1

tem, para a criança, o mesmo papel de um

axioma na construção do número racional como elemento de um conjunto quociente. Denominando essa operação de thinking tool, o autor volta a enfatizar

a idéia de que o número racional deve ser visto primeiro como um conhecimento humano e só posteriormente como uma construção lógica formal.

Outro aspecto interessante do número racional é o fato de ele ter, ao mesmo tempo, um caráter de quociente e um caráter de razão. Quando visto como quociente ele responde à questão “quanto?” e quando visto como razão ele estabelece uma propriedade relacional entre a parte e o todo. Essa complementaridade fica bem expressa nas respostas de crianças de 7 a 9 anos à situação abaixo, em que lhes foi solicitado repartir as pizzas já divididas ao meio entre as pessoas dos grupos A e B:

Fonte: Kieren, 1993 p.54

Em resposta à pergunta “quem ganhará mais pizza, as pessoas do grupo A ou do grupo B?”, numa pesquisa, com crianças entre 7 e 9 anos, predominaram respostas do tipo B receberá meia pizza por pessoa, e A receberá meia pizza por pessoa, e mais um pedaço, entendendo que a metade que sobra deva ser dividida em 7 partes e repartida entre os membros do grupo. Esse tipo de resposta denota uma complementaridade entre as idéias de quociente (dividir o pedaço que sobrou em 7 partes) e razão (estabelecer a propriedade relacional entre o número de pizzas e o número de pessoas) que são mobilizadas pela

Outro fator que demonstra que os números racionais não podem ser considerados como uma simples extensão dos números inteiros é o fato de que nos racionais a adição e a multiplicação são operações independentes. Enquanto nos inteiros a multiplicação conduz sempre a um número maior, nos racionais, a multiplicação conduz ironicamente a uma sucessão de divisões, por exemplo:

multiplicar 2 1 por 3 1 significa dividir o 2 1

em 3 partes e essa operação não pode

ser reduzida a uma adição, como se fazia com os números inteiros.

Kieren também aponta o duplo papel desempenhado pelo número 1 no campo racional como uma consideração importante a ser levada em conta na compreensão da construção desse conceito, pois o número 1 serve tanto de unidade divisível que forma a base de comparação quanto a base conceitual para a formação dos inversos multiplicativos, além, é claro, de ser o elemento neutro da multiplicação. As crianças precisam passar a ver o número 1 segundo essa visão mais complexa. O autor ilustra esse fato com a descrição de um experimento de Mack (1990) que será objeto de estudo mais detalhado na seção 2.4 deste trabalho. Este aspecto levantado por Kieren será objeto de especial atenção nesta pesquisa e deverá fornecer subsídios importantes para a análise a que este trabalho se propõe.

Uma conseqüência imediata da aplicação das idéias de Kieren é a de que os currículos montados segundo essa orientação propiciariam uma melhor interligação dos vários campos da Matemática. Se considerados apenas como uma extensão dos números inteiros, ou um simples algoritmo numa relação parte- todo estática, os números racionais permaneceriam apenas no domínio matemático dos números. Se considerados, porém, segundo a visão dos subconstrutos, os números racionais se tornam uma janela significativa para que

a criança tenha contato com outros domínios da matemática desde as séries iniciais.

São exemplos disso o fato de que partições sucessivas podem conduzir crianças muito jovens à idéia de grandezas infinitesimais, como no relato de um

estudante de 11 anos que respondeu que sua fração favorita era 2 1

, pois “me

fascina a possibilidade de dividir em dois e obter pedaços tão pequenos quanto eu queira, indefinidamente”. O subconstruto medida oferece também uma ligação importante entre a geometria, o espaço e o estudo dos números racionais. (Kieren 1988 p.59)

O subconstruto operador proporciona uma aproximação dos números racionais com a álgebra e com a noção de função composta, em termos não formais. O subconstruto razão aponta na direção dos importantes conceitos de proporção e de probabilidade.

Com relação às possibilidades de atividades significativas para as crianças, Kieren descreve um trabalho de Streefland(1984) em que uma classe de equivalência de frações foi construída de maneira significativa. A proposta era imaginar que 12 crianças sentaram-se à mesa e pediram 8 pizzas que seriam divididas igualmente. Em seguida imaginar que as crianças poderiam se dividir em duas ou três mesas mantendo a equivalência na divisão. Depois de muito trabalho as crianças desenvolveram sua própria notação para resolver esse problema, através de um diagrama em forma de árvore. Uma nova questão de como dividir 36 pizzas para 24 crianças foi resolvida facilmente pela árvore abaixo sem que a distinção entre fração própria ou imprópria fosse significativa, superando a dificuldade apontada anteriormente.

Fonte: Kieren, 1993 p.54

Kieren verificou também, por experiências, que essa consideração dos números racionais é significativa ao notar que os sujeitos mobilizam diferentes significados do número racional para resolver diferentes problemas: em um problema de concentração de leite com chocolate, os estudantes mobilizam predominantemente a idéia de razão, enquanto que num problema de repartição de uma pizza, a idéia predominante é a de quociente.

A partir dessas idéias, o autor afirma que o estudo dos números racionais por intermédio dos subconstrutos fornece suporte para uma análise semântica, psicológica e pedagógica do ensino do número racional, bem como um suporte empírico para seu estudo. Sugere também que a idéia intuitiva de partição tem um papel importante na construção do conhecimento do número racional por parte do sujeito e propõe, como ponto de partida para uma posterior construção formal, a abordagem dos números racionais como um conhecimento humano, a partir de suas bases intuitivas e de seus significados.

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