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Escolas da Geografia e suas aproximações com o discurso pedagógico

Investigar aproximações entre as constituições dos discursos geográficos e os inscritos em textos oficiais e didáticos, nos leva a verificar que a definição e defesa das disciplinas escolares caminham, muitas vezes, numa direção oposta ao desenvolvimento da prática de ensino. Isto confirma que é na prática profissional que o professor dá sentido ao currículo. Como afirmam Moreira e Silva (2002, p. 27):

O currículo pode ser movimentado por intenções oficiais de transmissão de uma cultura oficial, mas o resultado nunca será intencionado porque, precisamente, essa transmissão se dá em um contexto cultural de significação ativa dos materiais recebidos. A cultura e o cultural, nesse sentido, não estão tanto naquilo que se transmite quanto naquilo que se faz com o que se transmite.

Na configuração de um novo paradigma que viesse dar respostas ao “sentimento de crise” que, por volta dos anos 1950, assolava a Ciência Geográfica, pelos motivos de que “tornava-se cada dia mais evidente que os instrumentos conceituais e metodológicos de que se dispunha mostravam-se incapazes de solucionar problemas que se acreditava pudessem ser resolvidos pela geografia” e por uma “certa marginalização dos geógrafos dentro da comunidade científica em geral” (AMORIM FILHO, 1985, p. 15), destaca-se nas décadas de 1950 e 1960, o papel das teorizações da Nova Geografia ou Geografia Teorético-quantitativa, que deu início ao processo de aquisição do caráter científico da Geografia Moderna, e teve como expoente, como já dissemos, a Escola de Rio Claro.

Seguindo a abordagem nomotética37, dominante nas ciências “de ponta” da época, as perspectivas aplicadas, no novo paradigma, ao estudo geográfico de qualquer objeto salientava, segundo Oswaldo Bueno Amorim Filho (1985), a generalização dos fenômenos, favorecendo a aplicação de leis e modelos e tinha como requisitos a quantificação aprofundada (a fim de realizar uma coleta, tratamento e testes verdadeiramente científicos dos dados) e o desenvolvimento de um raciocínio abstrato (a fim de atingir teorização adequada, lógica e metodologicamente sólida).

O discurso da Nova Geografia para a Geografia Escolar apresenta uma particularidade em relação aos anteriores: ele não foi instituído para atender ao discurso escolar; ele não emerge com a finalidade de atender ao ensino, e “não está ligada ao funcionamento de uma máquina para fabricar professores” (LACOSTE, 1993, p. 153).

Sob a perspectiva foucaultiana, Tonini (2003) diz que os discursos da Nova Geografia produzem “regimes de verdade” materializados no número, constroem um saber que classifica, nomeia, regula a população. Tais discursos são vistos no ensino também com estas manifestações matemáticas.

Para estudar uma região geográfica prontamente são trazidos números colocados em tabelas, gráficos, fluxogramas, possibilitando melhor visualização e fixação do valor de verdade, chegando à explicação da região estudada. A partir dessa constatação a região estudada obedecia a um critério de variáveis, como índices de exportação, produto interno bruto, mão-de-obra qualificada, escolaridade, natalidade, crescimento vegetativo, entre outros, que permitiam a realização de um modelo de classificação. Como exemplo disso cita-se a classificação dos países em “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” (TONINI, 2003, p. 63).

A Nova Geografia, portanto, não estava articulada a nenhum projeto educacional, mas direcionava-se a planejamentos econômicos espaciais. No entanto, esta autora mostra que encontra-se em alguns livros didáticos a “aplicação esporádica de alguns modelos sistêmicos para analisar o espaço geográfico”, através do uso de alguns termos que se articulam com o planejamento, por exemplo: metrópole, cinturão verde, shopping center, distrito industrial, periferia urbana, bairros residenciais, área central.

A partir da década de 1960 manifesta-se outro discurso geográfico denominado de Geografia Radical, cujas proposições apontavam para um certo relativismo que viria contrastar com o mecanismo da “Nova Geografia”, a partir de pesquisadores como David Harvey, Henri Lefebvre e Manuel Castells que tentam aplicar aos estudos da problemática geográfica o método dialético.

37 A perspectiva nomotética surge, para o novo paradigma da Nova Geografia, como necessidade de superação

da abordagem idiográfica, entendida como uma perspectiva excepcionalista, que vinha sendo difundida pelo norte-americano Richard Hartshorne e seus seguidores, que defendiam que o objetivo da geografia seria o estudo da “diferenciação espacial” (AMORIM FILHO, 1958).

Também chamada de Geografia Crítica, este paradigma passa a entender que a Geografia deveria ser um campo de conhecimento preocupado com os problemas sociais. Em suas análises trazem as categorias marxistas modo de produção, formação econômico-social e conceitos como capital, trabalho, valor-de-uso38.

Naquela década floresceram também mudanças na legislação educacional com a Nova Lei de Diretrizes e Bases e na década de 1980 novas propostas curriculares. No que diz respeito ao componente curricular de Geografia, as propostas foram geradas “no processo de redemocratização da sociedade e do estado pós-regime militar” e “reside num desejo militante de fazer do próprio currículo um instrumento de conscientização política, o que redunda num elevado grau de dirigismo ideológico” (SÁ BARRETO, 1995 apud PEZZATO, 2001, p. 83). Outro fato também merece destaque neste período, que se refere, como já apontamos, às alterações da disciplina escolar de “Estudos Sociais” para “Geografia” e “História”, separadamente.

Na literatura didática a inscrição da abordagem Crítica foi registrada principalmente por Melhem Adas, no início dos anos 198039. Os critérios para regionalizar o mundo não são, agora, as características físicas, mas são dados por categorias econômicas: mundo capitalista e mundo socialista; desencadeando também processos de mudanças na Geografia Escolar.

Alguns estudos questionam a exigência de inclusão do “método materialismo dialético” e seus conceitos nos livros didáticos e propostas curriculares, uma vez que algumas produções, especialmente a proposta curricular de Geografia do Estado de São Paulo, passam a seguir uma orientação dogmática destas leituras, o que se soma à utilização do livro didático pelo professor como principal fonte das aulas, o que exige também do professor uma postura de portador da verdade, com conteúdos distantes da realidade do aluno.

Nos últimos anos outro discurso geográfico, agora sob influência humanística, vem sendo elaborado. Diz respeito a um espaço que é sempre um lugar carregado de significações. Uma das tendências humanísticas é a Geografia Cultural, proposto por Carl Ortwin Sauer (1889-1975) ao aceitar a noção de cultura como uma entidade superorgânica que, ancorado nos discursos de Ratzel e La Blache, analisava as diferenças da paisagem mais pelo aspecto material que cada povo produzia.

A partir de 1980 este discurso vem atrelado ao processo de globalização, traz-se então, também em algumas análises geográficas, a centralidade da cultura para explicar o espaço geográfico.

38 Ver no item 4.2.1 deste capítulo: “As particularidades do lugar: horizontalidades e verticalidades co-existindo

no território”.

39 ADAS, Melhem. Geografia. Vol. 1, 2, 3 e 4. 3a ed. São Paulo: Moderna, 1995. Uma das principais obras

adotadas pela professora da disciplina da Geografia, durante o curso do Ensino Fundamental que realizei dos fins dos anos 1980 à meados dos anos de 1990, em uma escola pública do interior paulista.

Tonini diz que a partir desta perspectiva pensar que “a organização espacial, supostamente alcançada com o processo de globalização, seja inteligível apenas com base nos processos de produção é minimizar a cultura do lugar”; no entanto, aponta alguns exemplos de como na maioria dos livros didáticos a noção de cultura continua sendo transmitida pelos enfoques mais tradicionais: manifestações artísticas (festas de cada região – carnaval, junina) e religiosas (as procissões – a ida do muçulmano a Meca; as crenças – a divisão de castas na Índia); objetos reunidos como uma coleção de artefatos (museus); indumentárias (fotografias de pessoas com as roupas típicas de sua cultura); comportamentos (da mulher no mundo islâmico).

Percebe-se, pois, que as “relações abstratas, ou a própria relação dos objetos como representações em um sistema de valores, estão ausentes ou são apenas marginalmente consideradas” (Gomes, 1998). Nesse sentido o livro didático continua produzindo um saber que trata a cultura como acessório de cada grupo humano, deixando de mostrar como ocorre o processo que constitui esses “materiais visíveis” (TONINI, 2003, p. 75).

Tentando ultrapassar uma visão ingênua ou natural destes exemplos e as maneiras como são considerados nos currículos, Tomaz Silva (2004, p. 31) nos lembra que a Geografia é uma matéria escolar (junto com Estudos Sociais e História) através da qual a escola, de forma direta, atua ideologicamente por meio de seu currículo. Para ele estas matérias são “as mais suscetíveis ao transporte de crenças explícitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais existentes”40.

Mais uma vez destacamos a importância do cotidiano e da cultura popular ante o predomínio daquelas formas “fabricadas” pelos mais poderosos instrumentos de homogeneização da alta cultura, que talvez seja um dos motivos da cultura ser tratada na escola como algo desvinculado do lugar de vivência, do transcorrer do dia-a-dia.

Um currículo e um ensino de geografia como formas de políticas culturais voltadas para um projeto de possibilidade e justiça social estão estritamente ligados às relações entre a cultura popular e o lugar, pois neles concentram-se as potencialidades do conflito, da resistência, da negociação, da inovação, da emancipação. Considerar esta relação na concepção de pedagogia e de currículo traz importantes conseqüências em seus papéis de produtores de subjetividades e identidades nos sujeitos escolares.

É preferindo “o lugar e o contingente ao universal e abstrato”, o “subjetivismo das interpretações parciais e localizadas” (SILVA, 2004), é evidenciando os discursos da mistura, das minorias, das pequenas narrativas, dos modos de vida, da cultura que enxergamos a escola

40 Silva (2004) fala sobre o papel ideológico das disciplinas ao expor as conexões entre educação e ideologia

como uma contra-esfera pública e as práticas cotidianas dos professores no ensino de geografia dentro de um propósito de “ampliar a possibilidade humana e formar uma comunidade justa e solidária” (GIROUX e SIMON, 2002, p. 118).

Mais que isso, o currículo e, neste caso, o currículo do campo de conhecimento da Geografia, é compreendido por nós como um emaranhado articulado de saberes e fazeres dos sujeitos envolvidos em seu processo de constituição, e por isso, referenciados em suas práticas sociais e espaços cotidianos. Assim, as possibilidades de contribuição para a “emancipação social” na escola (OLIVEIRA, 2003) estão nas criações cotidianas, nas práticas que envolvem os saberes, os espaços-tempos e os processos interativos dos alunos e professores enredados em sala de aula.