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escrita-pesquisa em: dançar, animar-se e ver

Os movimentos se repetem: ensaios e mais ensaios de dança, plié, 1, 2, 3, sobe na ponta, gira, salta, levanta a perna, arabesco etc. O apicultor com seu traje especial retira os quadros um a um repletos de favo no telhado. O pintor remenda as rachaduras com argamassa, não deixando nenhum vão para trás, e em seguida pinta delicadamente a parede. No refeitório, a comida é colocada no prato com cuidado e de acordo com a vontade dos clientes, prato por prato, mistura por mistura… “mais do que adquirir características formais” (DELEUZE, 1997, p. 12) a dança se constrói na vizinhança de todos esses movimentos, para além do apogeu da técnica, uma estranha conexão com movimentos corriqueiros, cotidianos.

Essa conexão lhe parece boa, mas ela quer saber mais desse habitar.

Há uma preocupação com a reanimação do pensamento “ocidental” em Tim Ingold (2013), entre aspas mesmo, do jeito que ele utiliza. Para isso, uma possibilidade se vê na “reavaliação do animismo indígena” (INGOLD, 2013, p. 24). Então, tanto Ingold quanto Favret-Saada estão interessados numa outra antropologia, cada qual construindo a sua maneira de repensá-la e avaliá-la e fazê-la. Ele coloca em questão, desde o início, se a vida pode ser identificável e como isso seria possível. Ela enfrenta o que chama de “opacidade” do sujeito, e ao invés de descartar e trabalhar somente com fatos, como seus colegas o fazem, resolve criar ferramentas para esse combate.

Olhar para a vida como um “nascimento contínuo” retira o peso de ter de defini-la, definindo. E permite que os movimentos entre escrita e corpo sejam habitados de outra forma, “pelo fluxo aéreo do clima, em vez de elementos fixos e ancorados na paisagem” (INGOLD, 2013, p. 20), escrita e corpo habitados por um movimento vital que passa de um para o outro.

Enquanto Favret-Saada se abstém de querer representar a feitiçaria em sua escrita, ou mesmo versá-la como conjunto de representações em um determinado grupo, ela se atém a dizer daquilo que está implicado na feitiçaria, o mundo que a habita e é por ela habitado. Portanto, afetar-se é a maneira que ela encontra para escapar desse jogo de informações que se apoia na representação, para isso inventa, pelo afeto, uma conexão entre escrita e corpo, em que o que está entre são forças que circulam nesse mundo habitado e habitável.

Escrita-pesquisa acha excelente essa coisa de habitar! Mas o que tem a ver com dança, com escrever como quem dança? Favret-Saada (2005) distingue acepções de empatia para retirar-se de pensar que o que estava construindo naquele mundo era via empatia. Seu combate gira entorno de duas noções de empatia que percorrem o saber psicológico, seja na forma indireta de experimentar “as sensações, percepções e pensamentos do outro” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159), ou na fusão instantânea com o outro, não era isso que acontecia com ela quando estava no Bocage. Esse seu combate se torna importante porque aquilo que ela está produzindo com a feitiçaria também habita vários saberes além da antropologia (a psicologia, por exemplo).

Com relação à escrita-pesquisa, o corpo também habita vários campos, dentre eles a dança. E dizer que ela inventaria e escreveria como quem dança não quer dizer que ela se faz, se coloca no lugar de dançarina, ou da dança, mas se afeta e habita esse afeto entre dança, escrita e corpo. E bem sabe do perigo que corre ao escolher essa trilha, afinal, quando penetra o afeto, ela também aceita “o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160), suas habitações ruírem.

A pequenez que escrita-pesquisa cria com La danse, traz para essas linhas o movimento mínimo. E o que era mesmo esse movimento? O que Wiseman (2009) mostra, constrói é um espalhamento dos ritmos, um habitar e ser afetado pelo ritmo das coisas, pela vida que nelas habita. Mais do que a concentração apenas no ritmo da dança, a dança é construída por elementos heterogêneos que formam uma composição que se dá no filme. Porque o espetáculo mesmo, aquele que se ensaia ali, parece ser a limpeza desses

heterogêneos para manter o movimento grandioso e exaustivo da companhia. Já o movimento mínimo é aquele que se dá no corpo, o qual é atravessado por esses ritmos outros que estão para além dos ensaios: estão no refeitório, nos corredores, nas coreografias treinadas incessantemente em cada sala, nos espelhos, nas ruas, no telhado, nas paredes…, e aquela limpeza desejada para o espetáculo fracassa, porque os ritmos habitam e atravessam os corpos e os constroem.

Mas esse movimento não é tão simples assim…, é bom lembrar que esse documentário possui cerca de duas horas e meia… E ela assistiu bem mais de uma vez para poder chegar aqui, nesse capítulo, e também levou alguns textos e trabalhos construídos com esse filme para diversos congressos, diversos mesmo. Antropologia, geografia, filosofia foram as disciplinas percorridas com eles. Para escrever da beleza desse movimento mínimo, muitas repetições, rotinas foram exigidas. Essas linhas tortas que os procedimentos atravessam são feitas dos combates que escrita e pesquisa enfrentam para poderem chegar ao corpo, darem passagem para os afetos que lhes tomam. É preciso, pois, “recuperar, por detrás da normalidade mundana da capacidade de ver coisas, o assombro absoluto daquela experiência, isto é, da capacidade de ver” (INGOLD, 2013, p. 22, grifos do autor).

Dar na vista. Ao pensar literatura e vida, Deleuze (1997) também cria uma relação entre esses termos. Essa vida de que ele trata não se gruda às coisas, sejam lá o que elas forem: animais, vegetais, orgânicas, inorgânicas etc. não é uma questão de estar dentro nem de ser a priori. Uma vida é o movimento que se coloca no entre das coisas, em que há interrupções naquilo que lhe tenta conter, um querer-pegar, querer-dominar. Escrever é produzir velocidade, dar a ver “uma linhagem particular”, elementos que “coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo” (DELEUZE, 1997, p. 11), só que é preciso lhe imprimir ritmo, criar modos de expressão para que se veja na superfície.