• Nenhum resultado encontrado

Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor. Gilles Deleuze. Crítica e clínica.

Escrita-pesquisa possuía alguns fragmentos dispersos de escritos com dança. Eles, separadamente, integravam outros textos em que havia preocupações variadas, territórios esboçados para outros fins. Resolveu recolher esses fragmentos porque gostava da ideia de pensar que talvez se fosse para, ao escrever, tornar-se outra coisa que não escritora, ela desejaria dançar. O que gostaria era de compor esses fragmentos como quem dança, torná-los seus passos, para fazer com que dança, corpo e escrita entrassem em variação com ela e seus passos-fragmentos.

Mas o que seria compor fragmentos como quem dança? Se ela tinha uma questão para ser resolvida – como juntar fragmentos de escritas com a dança? –, um objetivo a ser perseguido, fazer isso como quem dança é outra coisa…

Quem sabe a dança seja a arte que coloca aquilo que a compõe em movimento. Não só o corpo dança, mas o vestido da bailarina, o cabelo, os elementos do cenário, as folhas de uma árvore, a água do mar, o pavão com suas penas exuberantes, o balanço do parquinho e também a gangorra, o gira-gira, o gramado, as pétalas das flores, os sapatos imensos do palhaço, as pulseiras e colares da dançarina, enfim…: coleção ilimitada de movimentos ritmados produzidos por ilimitadas coisas no mundo. Procurar a dança nas coisas é procurar seu movimento.

Então, compor fragmentos como quem dança exigiria que ela buscasse o movimento nesses fragmentos, o que neles agita, para trazê-los para o seu pulsar, seu ritmo, fazê-los dançar com ela, em sua escrita. Mover seu corpo junto com os corpos-fragmentos, relacionar as linhas e os movimentos, seguir os deslocamentos e também provocá-los. Além disso, para criar entre os fragmentos os respiros necessários entre os passos para que eles aconteçam, o ritmo se efetue, há mais um elemento de composição. Esse elemento tem a ver com a criação de relações entre os fragmentos, uma espécie de conexão rítmica, a qual, por sua vez, precisa igualmente ser criada.

No decorrer das coleções foram inventados modos dessa relação acontecer. Atmosferas e movimentos foram produzidos, colocaram-se, inseriram-se, enxertaram-se como uma espécie de consistência entre os fragmentos, para que neles os sentidos fossem partilhados, para que se desse uma forma de expressão às suas existências. Uma vez que “pode-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê” (DELEUZE, 1997, p. 11), só é preciso criar meios para isso.

Mas essa coisa de fazer os fragmentos dançarem com ela deixa-a um pouco aflita. Porque os ritmos que escrita-pesquisa tem produzido em sua composição são um pouco quebrados, e as linhas que desenha não são lá muito harmônicas, não seguem uma consonância uma em relação às outras… Então, essa história de escrever como quem dança, de dançar com os fragmentos, só se for uma dança dissonante, destoante daquilo

que cada fragmento coloca em seu conjunto. Ou seja, ao extrair fragmentos de dança seja de uma pesquisa, de um livro, um filme, ela fará – ao menos tentará fazer – uma composição que desarticula esse pedaço do lugar de onde foi retirado, sem com isso perder sua importância: dançar diferentemente, compondo outros movimentos.

Seu esforço, enquanto escrita, nessa dança, é no encontro e na produção de “pensamentos acariciantes” (GIL, 2002, p. 165), os quais se engendram num micro plano, o das pequenas percepções, na extração, invenção de movimentos mínimos. A ideia de acariciar se liga a uma agitação branda, um toque suave que se dá no pensamento, com a surpresa do imprevisto, daquilo que é não-preexistente, singular (DELEUZE, 1997, p. 11).

Escrita-pesquisa, então, coloca esses fragmentos todos num mesmo arquivo, uns seguidos dos outros, pedaços desarticulados de sua procedência, apenas pinçados por tratarem de dança. E uma agonia a toma, porque não é por todos eles estarem relacionados à dança que, eles mesmos, entre eles, imediatamente se relacionam.

Um desses fragmentos discutia a ideia de representação vinculada com um tipo de pensamento que se dá por convergências e outras coisas mais que escrita-pesquisa não pretende retomar explicitamente. Outros dois estavam imersos naquele debate corpo/organismo, que ela já tinha procurado silenciar na coleção à beira. O último, olhando de perto, até parecia remeter-se a essa dança dela, numa tentativa de convocar corpo e escrita, mas era apenas uma pequena citação, sem muita pretensão.

Podia ser o caso de abandonar tudo isso e partir, buscar outros fragmentos, outras coleções para escrever com elas. Mas ela persiste. Há algo nesses pedaços que a estimula, a faz querer compor com eles. Ela tem vontade de pegá-los, acariciá-los. É como se cada um não tivesse apenas buscando os corpos e danças que lá estão – na companhia de balé, no caso de La danse, filme documentário do diretor Frederick Wiseman (2009); no método Klauss Vianna da pesquisa de Jussara Miller (2005), A escuta do corpo; e nos

depoimentos dos dançarinos e coreógrafos do capítulo de Isabelle Launay (2010), em O dom do gesto. Há algo nas imagens e nas pesquisas que extravasa o que se mostra, uma decomposição dos corpos que dançam, inventando um outro corpo que só se produz na dança e que penetra em suas peles feito parasita, alojando-se nesse corpo. No encontro com esses corpos, escrita-pesquisa sente um sopro que nesse momento fugidio a faz querer dançar, a faz querer saber o que mais há neles para além ou aquém da dança, ou, o que neles dança junto com os corpos e escritas e imagens.

Tudo isso porque, ao querer tornar-se outra coisa que não escritora para poder escrever, ela não deixa a escrita de lado e resolve dançar, mas, antes, na própria escrita, ela tenta olhar para as coisas de um outro modo, olhar dançante?, tenta olhar para os corpos de outra maneira, seria isto uma questão de sintaxe, aquele “conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12).