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Fragmentos e movimentos mínimos : encontros entre escrita e corpo

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Academic year: 2021

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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Vivian Marina Redi Pontin

Fragmentos e movimentos mínimos.

Encontros entre escrita e corpo.

Campinas

2015

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(3)
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aos meus amores

Vini, Fê, mãe e pai.

(6)

à

susana

pelo encontro-com-demora que fez dessas linhas mais leveza, que apostou

comigo e com escrita-pesquisa numa vida que se inventa. à

ana

pelos sentidos

partilhados, delicadezas, minúcias, fracassos, que fez de escrita-pesquisa uma

personagem dentro da criação de uma pesquisadora. ao

fernando

que apareceu no

meio desse processo, acolheu, de maneira sensível, os tropeços e êxitos, e tornou nossa

vida repleta de muitos carnavais. ao

vinicius

, minha criança, por todos os sorrisos e

carinhos, que fizeram esse percurso mais singelo. à minha

mãe

e ao meu

pai

por

estarem sempre ao meu lado em todos os momentos me apoiando e acreditando em

mim. à família expandida

victor

,

tia gorda

,

eron

,

livia

,

lygia

,

sylvio

também ao meu

lado. ao professor

orlandi

por todos os bons encontros. à

carolina

pelas leituras

sempre generosas. aos professores que aceitaram compartilhar conversas com esse

trabalho

roberto

,

ana preve

,

odilon

,

alik

e

juliana

, amiga que tantas vezes esteve

comigo na feitura de tantas linhas ao som de heart of glass!! à

amnéris

que acreditou

nesse trabalho desde o início. aos amigos do grupo de pesquisa

multiTÃO

, tão mesmo,

pelos muitos momentos juntos na lida com os estudos. aos

amigos

e às

amigas

pelo

espalhamento de alegrias (com certeza ia esquecer de alguém, então melhor não

mencionar nomes, mas sintam-se agradecidos). ao

CNPq

pela bolsa, sem ela nada disso

seria concreto.

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provisório o está de modo provisoriamente definitivo. Georges Perec. Penser/Classer.

Este alguém, em todo caso, terá compreendido bem um pequeno truque na sua vida, uma vez – não por muito tempo, um dia, uma noite, uma noite consigo mesmo –, ele terá compreendido uma pequena coisa, terá tido a impressão de compreender uma pequena coisa. Talvez tenha realmente compreendido uma pequena coisa e, em seguida, vai passar toda a sua vida a tentar esquecer. Gilles Deleuze. Cursos sobre Spinoza

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As linhas desta tese inventam coleções de encontros. Trata-se da criação de uma escrita-pesquisa que se vale de fragmentos e movimentos mínimos para, ao escrever, fazer corpo. Linhas que são artefatos indisciplinados (que podem ser enrijecidos, endurecidos, disciplináveis). Talvez não seja fazendo uma disciplina que se enfrentará o problema entre escrita e corpo (o que podem escrita e corpo?), embora a prudência esteja em manter um tanto de organização ao experimentar um corpo ao escrever. Cria-se então um inventário que, ao invés de ordenar o que as linhas estão aptas a fazer e a classificar, é uma espécie de máquina que produz atmosferas nas palavras de uma história e uma antropologia-sociologia do corpo, rastreia e extrai dessas narrativas alguns movimentos mínimos. São coleções à beira de desabar, e que procuram silenciar o debate corpo ou organismo; à beira de não saber bem o que produzir com os conhecimentos adquiridos sobre o corpo, para fazer com que ele se engaje em outras experiências, em outras experimentações, mantendo-se à espreita; à beira da produção de um corpo e pedaços de corpo que não pertencem necessariamente a ela, mas se agenciam em máquinas incessantes para que a escrita habite antropologias e corpos, e deles extrai os traços que escrevam um corpo.

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The lines of this thesis invent a collections of meetings. It is a creation of a writing-research that uses fragments and minimal moves to, in writing, makes body. Lines that are unruly artifacts (and can be stiff, hardened, disciplined). Maybe isn't doing a discipline that will face the problem between writing and body (which can writing and body?), although a prudence is in keeping somewhat of organization to trying a body in writing. It creates then an inventory rather than commanding what the lines are able to do and to classify, is a kind of machine that inserts atmosphere in the words of a history and a anthropology-sociology of the body, crawls and extracts of these narratives some minimal movements. Are collections on the verge of crashing down and looking for to silence the body or organism debate; on the verge of not being able to know what to produce with the knowledge acquired over the body, to make its to engage in other experiences, in others trials, keeping lying; on the verge of producing a body and body's parts that don't necessarily belong to it, but assemble them in incessant machines, in order that writing inhabit anthropologies and bodies, and extract them traces that write a body.

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sombrinha (p. 11)

inventário (p. 17)

coleção de ares frios

coleção de movimentos mínimos

3 cenas

coleção à beira (p. 44)

corpo. organismo: máquina saltitante?

um corpo na ponta do garfo

um passo em falso

máquina de corte. uma passagem estreita

manter-se à espreita

pedaços de ventura (p. 65)

escrita-pesquisa em: dançar e falhar

escrita-pesquisa em: dançar, animar-se e ver

dançando vestidos

fios soltos

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sombrinha

No pensamento do corpo, o corpo força o pensamento sempre mais longe, sempre demasiado longe: demasiado longe para que possa ainda ser pensamento, mas nunca o suficiente para que possa ser corpo. Jean-Luc Nancy. Corpus.

Tendo em vista uma série interminável, lista infindável de conhecimentos os mais diversos produzidos sobre o corpo, duas questões poderiam permear as linhas dessa tese: por que ainda escolher o corpo? E o que fazer com essa série?

Ao percorrer os conhecimentos em seus territórios, muitas críticas dos territórios vizinhos podem ser encontradas, muitas certezas preenchem suas áreas, muitas disciplinas se criam. Não é de praxe que esses conhecimentos se articulem. As definições e afirmações são o que proliferam em suas linhas. As marcações territoriais se multiplicam para garantir seriedade e rigor.

Entretanto, ainda e mais uma vez escolher o corpo não é, para essa tese, uma questão de filiação. Ainda escolher o corpo é se dispor a um combate com ele e com o

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conhecimento adquirido. Ainda e de novo escolher o corpo é torná-lo e tornar esse conhecimento seu mais potente inimigo. Ainda escolher o corpo é, portanto, vital.

Com a série, se faz necessário construir um território no qual adquirir um conhecimento seja dar um modo de existência ao corpo e ao mesmo tempo fazer corpo com a escrita. Construir esse território, essa superfície, é, então, extrair de territórios alheios fragmentos com os quais compor outra escrita com o corpo. A série é talvez o meio para uma traição. Permanecer à sombra dos conhecimentos do corpo é manter-se sob o seu domínio ou o domínio dos autores, não mostrando os afetos que tomam o corpo no contato com tais materiais. Estar à sombra é, ainda que se utilize diferentes materiais, mantê-los separados segundo o grau de importância e/ou disciplina. As junções se dão por aproximação de correspondência, analogia – “olha só como os autores, as disciplinas estão dizendo a mesma coisa, olha como estão sob a mesma sombra”. Fazer sombra pode ser uma aposta diferente, em que o movimento é o de trazer os afetos que tomam o corpo, o envolvem, o habitam (Tim Ingold) e ser afetado (Jeanne Favret-Saada). Selecionar e juntar apenas fragmentos de corpos e escritas, mantendo-os singulares e criando relações, alianças entre eles. Preferir não estar nem permanecer à sombra de qualquer conhecimento consolidado nesta ou naquela disciplina, recoberto por guarda-chuvas e autores e obras. Furar, esburacar, ferir, discordar, trair, roubar, pegar “o vestígio de um corpo sobre um outro” (DELEUZE, 1997, p. 177), produzir relações inusitadas, estranhas, esquisitas entre tais fragmentos selecionados, colecionados.

Essa tese é então um esforço intenso de criação e produção de uma escrita-pesquisa. Esforço também para ser digna do fragmento enquanto problema, estar à altura dos movimentos mínimos, aqueles que passam despercebidos, que não importam, que ficam de fora da lista de conhecimentos sobre o corpo.

Em Chaos in poetry1, D. H. Lawrence direciona uma luz para os poetas, a poesia na

1 Chaos in Poetry (Caos na poesia), in Selected critical writings, 1998. Deleuze e Guattari tomam esse

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criação de combates com o caos. Ele começa escrevendo que a poesia é uma questão de palavras, e isso lhe parece muito simples. Então amplia seu repertório, e a poesia passa a combinar, ondular, colorir, vibrar, jogar com imagens, sugerir ideias, mas ainda é algo mais, um pouco mais. Esse movimento de extração para responder qual é a questão da poesia é ele também o movimento da poesia em relação ao mundo, de dele extrair o ainda não conhecido no conhecido, uma vez que o espaço-tempo que contorna as coisas está imerso no caos.

Para viver no caos, Lawrence escreve que o homem abre um guarda-chuva que lhe protege e pinta um céu do lado de dentro. O homem vive e morre debaixo de seu guarda-chuva, deixando-o como herança para seus descendentes. Aos poucos, o movimento de proteger se confunde com o de empalidecer e reprimir e, então, o poeta, inimigo das convenções, faz uma fenda em seu guarda-chuva, e a visão é um vislumbre para o caos, uma janela para o sol.

Nesse momento, a luz entra e atordoa, e torna a visão um pouco turva – uma sensação –, mas logo se acostuma com ela e a fenda do guarda-chuva torna-se remendo. É essa sensação de abertura que interessa escrita-pesquisa e ela se dá numa fenda, numa falha daquilo que antes protegia. Para Lawrence, o poeta é a figura que faz furos no guarda-chuva que protege o homem do caos, dando-lhe uma visão dele. Para Deleuze e Guattari (1992, p. 240), “será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver”, que não mais se podia ouvir, que não mais se podia sentir, que não mais se podia escrever.

Escrita-pesquisa busca escrever de outra forma, não mais apenas perpetuar o já obtido. Resta saber se traça seu percurso com seu guarda-chuva para evitar os riscos e perigos de ver o conhecimento adquirido sobre o corpo perder força, ou deixar de importar. Ou se o perfura para deixar que um pouco de caos o atravesse, que os afetos, os encontros (de e com corpos) lancem sua luz, produzam efeitos, efetuem-se numa escrita-pesquisa

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cambaleante, máquina errante?, mas perdidamente apaixonada!

Há críticas e julgamentos presentes nas narrativas do corpo: ou o corpo é orgânico demais, histórico demais, social demais, diferente demais da alma, pulsional demais, próprio demais, intencional demais… David Lapoujade (2002) preocupa-se com esse demais e intitula seu texto: O corpo que não aguenta mais. Eugénia Vilela (2010), por sua vez, produz um corpo entre a resistência e o silêncio nos espaços de abandono contemporâneos e também, por outros caminhos, Jean-Luc Nancy (2000) inventa um corpo como um lugar, um acontecimento de existência. Mas o que é o corpo que não aguenta mais? Produz resistência a quê? Que existência é essa?

Lapoujade (2002) persegue, em seu texto, uma potência do corpo liberada do ato, da ação. Aquilo que o corpo não aguenta mais está nas submissões vindas do exterior: o adestramento e a disciplina, tão bem delineados por Nietzsche e Foucault. E também as submissões criadas no corpo: o assujeitamento a essas lógicas. Todo um sistema do juízo que Deleuze (1997), não só no capítulo “Para dar um fim ao juízo” mas de maneira decisiva em toda sua obra, sempre pôs em cheque.

A questão que Lapoujade se coloca é a de como encontrar uma saúde no sofrimento, uma vez que o corpo é aquele que sofre o tempo todo, sofre de ser afetado por todo tipo de coisas com as quais entra em contato, porque um “corpo é primeiramente encontro com outros corpos” (LAPOUJADE, 2002, p. 86). Há um embrutecimento que o corpo manifesta e produz no combate aos mecanismos de adestramento, disciplina e assujeitamento – é contra esse embrutecimento que essa saúde se coloca, porque é vital estar exposto ao sofrimento. Essa exposição é que aumentará a potência de agir dos corpos, na receptividade e deslocamento em perceber e recolher os movimentos mínimos, sutis, estar à altura deles para, então, com prudência selecionar e colecionar aquilo que convém ao corpo, que convém à escrita com a qual se faz corpo.

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ao luxo de eliminar os contrastes, proteger-se do caos com guarda-chuvas, subtrair os sofrimentos embrutecendo o corpo, mesmo porque subtraí-los é impossível.

Escrita-pesquisa persegue os modos de existência que se produzem entre corpo e escrita, já que vê no mundo um “povoamento proliferante dos lugares (do) corpo” (NANCY, 2000, p. 39) – e isso inclui seus conhecimentos –, para, então, fazer do sentido que nele e com ele se produz um toque, e tornar o escrever um “tocar a extremidade” (NANCY, 2000, p. 11) desse mundo, à beira dele.

Ainda escolher um corpo, aquele que é “uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos” (NANCY, 2000, p. 118); todo um esforço em escrever com “aréolas, lúnulas, unhas, pêlos, tendões, crânios, costelas, pélvis, ventres, meatos, espumas, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias” (NANCY, 2000, p. 118). Escolhê-lo é furtar-se de “corpos de linguagem que substituem, conceptualmente, a realidade material dos corpos” (VILELA, 2010, p. 19, grifo da autora). Pois é furtando-se a eles que acontece a criação de modos de existência, sejam eles vitais ou desvitalizados, embrutecidos ou tocados pelos sentidos.

Eugénia (2010, p. 21) o escolhe na “experiência-limite de um corpo que, no maior abandono, nasce infinitamente, constitui uma intensa experiência de sentido”. Escrita-pesquisa é inventada para experimentá-lo.

Experimentar numa escrita de ares frios e movimentos mínimos construídos, num inventário, junto à história, antropologia e sociologia do corpo. Inventada à beira de deixar-se adentrar nos corpos de William Burroughs e seu Almoço nu, de Bruno Latour que se indaga: Como falar do corpo?, mantendo-se à espreita com Deleuze para dar um fim ao juízo. Criada por último, e não desmerecidamente, para tentar escrever como quem dança, colhendo pedaços de ventura que ameaçam o passo bem feito e que dizem dos encontros com movimentos desengonçados dos corpos e da vida.

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O que fazem é antes inventar um uso menor da língua maior na qual se expressam inteiramente; eles minoram essa língua, como em música, onde o modo menor designa combinações dinâmicas em perpétuo desequilíbrio. São grandes as forças de minorar: eles fazem a língua fugir, fazem-na deslizar numa linha de feitiçaria… Gilles Deleuze. Crítica e clínica.

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inventário

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Inventário? O que é um inventário? – perguntou. Ora, um inventário é uma reunião de coisas, uma lista, um rol. Uma lista, mas como ela é feita? O que se coloca dentro dela? Coloca-se uma seleção, uma relação de materiais, objetos, palavras, datas, números, enfim, coisas que são selecionadas por um motivo e, depois, são colocadas juntas num espaço comum, seja um papel, uma mesa, um quarto etc. Hum! Então é possível relacionar coisas com as quais se quer lidar e escolher um espaço para elas e ainda dizer que tudo isso é um inventário? Sim! Desde que haja uma conexão entre as razões e as escolhas, uma linha capaz de ligar. Mas pode ser de qualquer coisa? Qualquer um pode fazer? Mantenho a resposta anterior: só é preciso que algo ligue uma coisa a outra; qualquer um e todos fazem seus inventários, suas listas do que fazer no dia seguinte, suas relações de bens, suas listas de nomes para chamada, itens de supermercado, ingredientes da receita, um cardápio, uma ementa, bibliografia, lista telefônica, de materiais, de mercadorias – são muitos os inventários de uma vida.

Após esse preâmbulo, escrita-pesquisa teve uma ideia, fez uma aposta. Pensou que o que

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estava prestes a fazer era um inventário e que nele iria dispor uma série de elementos com os quais faria uma composição. E já que a sua questão era problematizar a relação entre corpo e escrita, faria uma disposição de materiais nos quais o corpo e a escrita estivessem presentes e em que a relação entre ambos fosse o fio que ligasse esse inventário. Era isso o que queria fazer e era dessa maneira…

Mas não seria tão simples assim, afinal eram muitos os materiais nos quais encontrava essa relação entre corpo e escrita, da mesma forma que o modo como corpo e escrita faziam um encontro em cada material destoava, ou seja, não mantinha o mesmo tom, a mesma toada. Era preciso que o gesto de selecionar fosse tal qual o do pintor e as suas cores, do músico e as suas sonoridades, do cozinheiro e os alimentos – uns dependendo dos outros para se fazerem ao mesmo tempo: a pintura que se faz com e o pintor, a melodia que se faz com e o músico, os alimentos que se fazem com e o cozinheiro, e a escrita-pesquisa que se faz com e o fio que liga o inventário.

Pensou que era esse fio a criação que lhe cabia e a seleção faria composição, dando liga ao inventário. O procedimento estava na ponta da língua, mas onde buscaria os materiais? Não, mas espere um pouco, é preciso tensionar mais esse procedimento, porque fazer uma lista de supermercado não é a mesma coisa que fazer um inventário para uma pesquisa. Há algo que se deve levar em conta, que é como dar expressão a uma reunião de coisas, sejam elas compradas no supermercado, sejam elas para um inventário numa escrita-pesquisa. Portanto, dar expressão a um inventário que se aproxima, se avizinha da relação entre corpo e escrita é também o papel da escrita-pesquisa, é uma criação.

E se a última questão esbarrava em onde buscar os materiais, aí está outro elemento importante, já que esse local pode espalhar-se por vários locais, assim como a lista de supermercado, em que os produtos não encontrados em determinado mercado, podem ou não ser encontrados noutro.

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relação entre esses termos pode mudar, tanto quanto os próprios materiais, suas formas de expressão (escrita acadêmica, artes visuais, artes plásticas, cinema, literatura, dança, pintura etc.), sua classificação taxonômica nas prateleiras da biblioteca, a própria maneira como escrita-pesquisa se aproxima cada material; enfim, são muitas as variáveis, e é preferível estar à disposição nessa seleção, de corpo presente, entregue.

Mas um inventário possui uma função, qual seja, organizar determinado tipo de coisas para um fim, um propósito. Todavia, não há certeza de êxito de antemão, tampouco a precisão de que aquilo formará uma coisa única, homogênea. Reúne-se em busca da totalidade das partes que compõem a lista, mas isso não quer dizer que a lista seja algo totalitário. Nada contra os todos, eles se formam, isso é comum. A questão que se lança é desse todo em relação com as partes, como é feita sua produção: eliminando as partes em proveito de uma totalidade ou se mantendo as partes a favor da reunião delas.

Gilles Deleuze lida com essa questão do fragmento e de sua reunião pensando com o escritor norte-americano Walt Whitman em Crítica e clínica (1997) e, também, em seu texto, Deleuze faz um inventário. São conceitos, princípios, notas de rodapé com referências às obras de Whitman, Melville, Kafka, Hölderlin, D. H. Lawrence, Paul Jamati, uma coleção de ideias reunidas numa escrita.

Há um procedimento da escrita de Whitman que Deleuze captura, insistindo no fragmento, a fim de deslocar algumas noções sedimentadas em seus significados. A coleção de procedimentos passa, logo no início, por uma escrita “fragmentária” (DELEUZE, 1997, p. 76) e mais adiante, uma escrita “naturalmente convulsiva” (DELEUZE, 1997, p. 77, grifo do autor), uma construção de “frase que modula o intervalo” (DELEUZE, 1997, p. 78), ora enumerativa, ora processional. Na obra de Whitman, “uma espécie de todo deve ser construída, tanto mais paradoxal quanto só surge depois dos fragmentos e os deixa intactos, não se propõe totalizá-los” (DELEUZE, 1997, p. 79, grifo do autor). “O poema de Whitman oferece tantos sentidos quantas são as relações que ele entretém” (DELEUZE, 1997, p. 79-80) “e Whitman, sem dúvida, fez

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uma das literaturas mais coloristas que possam existir” (DELEUZE, 1997, p. 80).

As noções de Natureza, História, Todo, Hospital, Fora, Democracia, Arte, América estão, dessa mesma forma, com iniciais maiúsculas, no texto de Deleuze, porque são nomes próprios a uma noção já dada, sedimentada e que no decorrer do texto são deslocadas. Deleuze toma essas palavras que poderiam participar (e muitas vezes participam) de uma totalidade orgânica, na qual suas partes internas são órgãos funcionais ao todo organizado, para delas fazer fragmentos de seu próprio texto, avizinhando umas às outras, mantendo-as heterogêneas e criando relações num todo que varia – “As relações não são interiores a um Todo, é antes o todo que decorre das relações exteriores em tal momento e que com elas varia” (DELEUZE, 1997, p. 80).

Se, por exemplo, Natureza e História constituem-se numa linha dura em que refletem, respectivamente, a evolução e o progresso (DELEUZE, 1997, p. 79), – essa linha se esgarça e começa a participar do fluxo em que os fragmentos e intervalos dão “acesso às grandes visões e audições refletidas da Natureza e da História” (p. 82) e não, propriamente, funcionam numa significação única que evolui e progride.

O Todo precisa ser conquistado, inventado, construído, decorre, pois, das relações e não as abarca dentro dele. O mundo é conjunto de “partes notáveis não totalizáveis” (DELEUZE, 1997, p. 78). É com essas partes que algo será criado num inventário, não se tem o inventário de antemão, ele precisa ser, também, criado. Frisa-se o depois entre os elementos e sua reunião, porque, previamente, o resultado do inventário não é conhecido, elementos podem ficar de fora, podem falhar e, também, a reunião dos termos não garante que haverá, entre eles, uma relação. Tudo precisa ser criado.

O que interessa para escrita-pesquisa é que há uma potência nos fragmentos com os quais se faz composição e deseja-se mantê-la. Essa potência diz respeito à manutenção dos fragmentos enquanto diferentes, diversos, com os quais não se assume a fusão, fundição, correspondência, semelhança, identidade (identificação). Porque a busca nessa escrita é

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por “algo que passe entre eles” (DELEUZE, 1997, p. 81). Mantendo-os numa zona de vizinhança (DELEUZE, 1997), suas singularidades são garantidas em meio ao inventário. É como se o inventário tivesse sempre que ser recomeçado, a cada fragmento, numa espécie de retomada, que não repete o mesmo, mas cria um desvio em cada novo começo, costura-se com outros fragmentos, para dizer de uma vida que há em cada pedaço.

A natureza não é forma, mas processos de correlação, ela inventa uma polifonia, ela não é totalidade, mas reunião, “conclave”, “assembleia plenária”. A natureza é inseparável de todos os processos de comensalidade, convivialidade, que não são dados preexistentes, porém se elaboram entre viventes heterogêneos de modo a criar um tecido de relações moventes que fazem com que a melodia de uma parte intervenha como motivo na melodia de uma outra (a abelha e a flor) (DELEUZE, 1997, p. 80, grifos do autor).

Há uma força em colocar (convocar) os fragmentos. Eles são faíscas que acendem para algo – uma vida – uma falha, quebra, um resto, algo que fora gasto, partido, desfeito, pode ser um trecho, excerto, uma porção, fração, um bocado, estilhaço, uma lasca, migalha, partícula, retalho, parcela, passagem, amostra, segmento, resquício, torrão.

Lidar com fragmentos decorre de um procedimento de extração. Dar potência ao fragmento é saber das falhas na reunião de um inventário. Mas como assim falhas? Porque é quando falha a seleção que algo acontece: “Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”3. Por isso sempre, a cada fragmento, um novo começo – uma

falha na construção contínua. A falha é uma fratura, uma fenda – uma abertura para que algo passe, algo circule, adentre e saia, invada, ou seja, a falha é por onde o fio que conecta esse inventário passará, é ela que ajudará a percorrê-lo.

Nessas novas tentativas, na extração em cada caso, o início, ponto de partida, o princípio parecem recuar.

Talvez os fragmentos a serem selecionados para compor o inventário estejam nas

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narrativas que se debruçam sobre o corpo, possuem-no como tema de suas análises. Inventários do corpo interessam. Inventários com o corpo também. Mas o que há nessas narrativas? Como elas experimentam a relação entre escrita e corpo? Como reunir fragmentos ao experimentar um inventário?

Um dos problemas que escrita-pesquisa enfrenta ao eleger a relação entre corpo e escrita é do excesso de materiais com os quais poderia compor seu inventário, portanto, muitos fragmentos por serem recolhidos. A escrita fragmentária de Deleuze (1997) e Whitman enfrenta o problema da fragmentação furtando-se à oposição entre ela e a integração e afirmando o fragmento desprendido da lógica reducionista, a qual mantém o fragmento submetido ao todo.

Ao costurar colchas de retalhos, construir muros de pedras soltas, o que está em jogo não é formar totalizações a partir da costura e da construção, mas pensar nos cortes, nas seleções, na criação de relações entre retalhos e pedras.

Escrita-pesquisa olha para o corpo e o vê espalhado pelas mais diversas disciplinas, as quais, de alguma forma, fazem uma reunião do corpo, produzem uma junção. Quais os critérios dessas reuniões? Na seleção, o que fica de fora, o que move, varia nas junções, o que fixa, estabiliza, determina? Como o fragmento aparece nas junções? É potencializado ou são convocados julgamentos de correspondência, de submissão em relação ao todo? São muitos os corpos inventariados, são muitas as vidas inventariadas. É preciso ater-se às variações, porque reunir semelhantes não é reunir segundo o critério do fragmento. Pois, uma vez que os corpos e as vidas são iguais, eles não são fragmentos com os quais se compõe; eles formam algo que se homogeniza, se mistura, desfazendo-se de suas singularidades.

Ao questionar-se como fazer a seleção e composição para seu inventário, escrita-pesquisa quer torná-los efetivamente procedimentos, porque o gesto de coletar e reunir difere de

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querer tornar a relação entre corpo e escrita definitiva, definida, determinada, quase um furor. Criar uma escrita-pesquisa de fragmentos, uma escrita-pesquisa fragmentária, em que a oposição entre todo e parte não funciona e a fragmentação torna-se potência para a escrita e o pensamento que se fazem na extração de pedaços, cacos, amostras e invenção de relações entre eles. O fragmento, assim pensado, especialmente com Deleuze (Whitman), em sua simplicidade, amostra que é, afirmar-se-á imediatamente como individual e coletivo, desfazendo partidos, fidelidades, apostas disciplinares. Por isso, coletar, colecionar é também criar; e a criação de ligações entre os fragmentos, sua reunião, deve garantir relações múltiplas, díspares, inesperadas, abertas para tentar escapar das clausuras. Criar intervalos e falhas que produzem conexões entre as partes, relações de “Camaradagem”, como diz Deleuze (1997, p. 81), é o que impede a homogeneização dos fragmentos e faz com que as relações variem, porque elas se tornam aberturas. Esse movimento é incessante.

Trata-se de um posicionamento político para escrita-pesquisa. Porque ao manter-se, pela análise dos conteúdos dessas narrativas, no procedimento de diagnóstico e hospitalização desses materiais, persiste o julgamento entre relações de submissão e dominação, boas ou más relações entre escrita e corpo, relações de representação, de pontos de vista únicos (convergentes), de hierarquizações. Tal procedimento fecha-se em si mesmo num ciclo que varia de um ponto a outro. A aposta de escrita-pesquisa é em ampliar as relações entre escrita e corpo. Isso se faz na criação de relações entre fragmentos selecionados, os quais são extraídos das narrativas, criando buracos, rachaduras, fendas, e podem, a partir desse movimento, reunir-se num inventário, tornando sensível os afetos que rondam corpo e escrita.

É também política a aposta em ampliar formas de expressão para um corpo numa escrita, no esforço e na tentativa de querer pensar em como abrir, como expandir e partilhar outros modos de fazer num campo problemático que atravessa várias disciplinas.

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sobre o corpo. Ao experimentar um inventário em que se extrai potências de um corpo numa escrita, o corpo afeta-se e é estopim de conceitos e pensamentos que se abrem para uma escrita-pesquisa em criação.

O que há nas narrativas em que se procuram fragmentos? Extrair partes dessas narrativas é uma estratégia de manutenção dos fragmentos enquanto fragmentos. Partir para as narrativas que possuem a temática do corpo como aquelas que, em seu contorno, colocam para dentro os conteúdos a serem adquiridos, e lá os encerrando, é estabelecê-las como limite para a escrita e para o corpo. O limite que escrita-pesquisa quer colocar em jogo não é esse. Tornar o limite aquele que diz de uma ação, o alcance da ação é o que torna potente o contato com os materiais.

Porque do que é feito, as funções e qual é a sua forma talvez não baste para se dizer do corpo e daquilo que se quer criar com ele. E não bastar não quer dizer não importar, não caber dentro. Por isso não se trata da exaltação de um conteúdo limitador, que se deprime, para a apologia de outro contorno. Não é a demonização de conteúdos fisio-biológicos, que dizem da correspondência de órgãos e funções, pela razão de tais conteúdos não abarcarem todas as singularidades presentes no corpo.

Esse limite é o que possibilita um jogo de composição de forças que são extraídas em cada fragmento, que atravessam o corpo e dão consistência às suas ações.

A multiplicação de pontos de vista, a multiplicação de visões de um mesmo corpo, que cada área do conhecimento é capaz de produzir possui uma finalidade, uma vontade de atestar algo sobre o corpo, talvez sua verdade. Escrita-pesquisa prefere outro caminho; ao tomar fragmentos das disciplinas e reuni-los, faz com que as disciplinas desmanchem de seus pontos de vista únicos, de seus atestados e com que, pela contaminação, se favoreça implicar o corpo e a escrita como multiplicidades. Por isso inserir falhas entre os fragmentos. Falhas como os espaços-tempos de invenção de relações frágeis, precárias, abertas…

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A partir desse clareamento sobre como proceder, escrita-pesquisa lembra-se de já ter ouvido falar sobre a história do corpo, também havia a antropologia do corpo e a sociologia. Começaria por aí, era apenas um começo e, de novo, não há garantias de que a seleção em tais narrativas seria feita para o seu inventário. A busca de escrita-pesquisa por enfrentar o problema do corpo e da fragmentação, por combater a violenta experiência do impossível do corpo, lança-a à composição de um inventário precário, com uma linguagem que fracassa. Ela detectará nuances e abalos que se produzem no encontro entre escrita e corpo, e o que dele irá extrair são fios de ligação.

coleção de ares frios

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Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão de escuridões dentro dele – perceber isto é instante muito raro – e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água. Clarice Lispector. Água viva.

Para começar, escrita-pesquisa chega a um local, e está lá por conta da escolha pelas narrativas que possuem o corpo enquanto tema. As estantes de livros a rodeavam, livros numerados e catalogados por seus temas e o sobrenome de seus autores. Coleções, várias coleções juntas. Coleção de livros, de estantes, de livros sobre determinado assunto, livros de um autor, livros de uma época, livros infantis – são muitas as coleções e elas estavam

4 Acompanha este punhado de palavras tonalizadas por ares frios o texto de Charles Feitosa –

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todas ordenadas. Inclusive os livros que estão fora de sua seção, permanecem ao lado, formam a coleção empilhada de livros para serem guardados.

Além das coleções, algo a espreitava e fazia com que todas as letras batessem umas nas outras – era o frio intenso produzido pelo ar condicionado.

Subiu até o segundo andar, estante com numeração entre 305 e 306.7, procurou pelos detalhes dos números e letras que compõem a localização exata e logo encontrou: 306.4 H629. Essa é a sequência de números e letras da História do corpo, uma série de três livros totalizando 1989 páginas, 3 organizadores franceses, 24 autores, remetendo a um esforço enciclopédico, que passa pela interação entre história da arte, da medicina, da religião, da sexualidade e dos gêneros, vistos em ordem cronológica da Renascença ao século XX5.

Uma miríade de temas, palavras-chave compõem a História do corpo: renascença, liberdade, condições materiais e culturais, século XIX, corpo moderno, dissecado, produtivo, sofredor, representações do corpo, social, século XX, sujeito, estão entre algumas delas. Lá estava, então, outra coleção, dentro da coleção de livros históricos.

livro 1

parte da influência da religião para se dizer do corpo e da sexualidade. Conta sobre a relação entre o corpo e o exercício físico e, em quase metade de suas páginas, a medicina toma espaço, desde a anatomia, passando pela fisiognomia, o tradicional (científica) e o popular (simpatias e amuletos), os fluídos e as patologias. O regime absolutista, então, insere uma crise nas representações do corpo, mostrando que somente uma mudança muito brusca de contexto histórico é capaz de produzir alterações em tais representações.

5 Da renascença às luzes;Da Revolução à Grande Guerra e As mutações do olhar são os subtítulos que

acompanham cada volume da História do corpo, os quais são organizados por Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello.

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livro 2

rodeando o século XIX, a medicina e a religião voltam à cena e, separadamente, lançam olhares sobre o corpo. O artista também o faz, visando modelos, e as três perspectivas produzem imagens sociais do corpo. O erótico é aquele que se produz no imaginário entorno do prazer e a miséria do corpo lhe é exterior, de um sofrimento que lhe vem de fora. Se de um lado há o enfermo, é possível educá-lo, se há a limpeza, essa se mostra na aparência, se há o esporte e a ginástica, ambos refletem o extremo da saúde.

livro 3

e finalmente, com o século XX, uma vez mais, a medicina é aquela que sabe da doença e faz o sujeito reconhecer-se em seu corpo, inclusive através da genética e da sua sexualidade, ora mostrada, ora se reproduzindo como conhecimento (sexologia); é a medicina que gesta, produzindo liberdades e repressões (através, por exemplo, da antropometria e da impressão digital), bem como a dimensão dos costumes, das formações de grupos identitários, novos higienismos e adereços modelares (cirurgia plástica, indústria cosmética e dietética) – a conclusão: é preciso saber qual a tendência a ser seguida. As guerras ocorridas neste século são aquelas que realizam o massacre do corpo, estabelecendo a separação radical entre o corpo normal e anormal. O ato de treinar o corpo direcionado para produção de corpos atléticos, e seu espetáculo maior é o esporte nas telas. As artes produzem o corpo no cinema, na dança, nas artes visuais como meios para o fim do conhecimento, exploração e vigilância. O livro se fecha com “a alma que se tornou corpo e a vida sem a vida” (MICHAUD, 2008b, p. 563).

livros 1 2 3

formam um ambiente nublado, pois não há muitas referências, no sentido de mostrar ao leitor qual foi o caminho percorrido, afastar as nuvens, mostrar as pegadas recolhidas que

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foram usadas para construir a parte que lhes cabia desse latifúndio6. As apresentações de

cada volume são vastidões que abrangem um território imenso da história que se faz do corpo. Possíveis conexões que parecem surgir nesse território muitas vezes não se efetivam, porque as caixinhas disciplinares são construídas e mantidas isoladas umas das outras. As nuvens são então classificadas – cirrus, culumus, stratus – sendo este o movimento possível, a classificação, uma vez que o céu continua nublado.

A série também traz imagens do corpo, só que na edição brasileira elas não estão presentes, uma vez que foram suprimidas. É como se elas tivessem se perdido no caminho que separa o continente europeu do Brasil, caindo num lugar qualquer. Essa seria uma linda paisagem, formada de imagens de corpos caindo, o vento embaralhando a ordenação da história do corpo e compondo sua própria desordem. Não era difícil criar essa paisagem, afinal o vento frio ainda espreitava escrita-pesquisa – a essa altura, mais do que espreitar, aquele frio a tocava e envolvia.

O ambiente frio criado pelo ar condicionado invadia a História, os corpos que nela se inscreviam e nela adentravam. E as imagens perdidas dos corpos, caídas, faziam circular o que não se encontrava na história do corpo, uma vez que o que se recolhe das entrelinhas são apenas tributos àquilo que cerca o indivíduo e o contextualiza, uma linha temporal repartida – coleção de períodos históricos marcados por mudanças, revoluções, guerras, inclusive com alteração do nome do período histórico, porém a toada classificatória continua, só ela adentra o corpo e perfaz suas representações.

Os corpos de cada período são então edificados de forma homogênea para que se universalizem. Jogos de oposições são construídos numa espécie de limpeza das sobras, daquilo que não merece entrar na História.

Entre doença e saúde, individual e coletivo, íntimo e social, corpo manuseado e o que sente, normal e anormal, vida e morte, a assepsia histórica busca equivalências e

6 Parodiando João Cabral de Melo Neto em Morte e vida severina e também Chico Buarque na música

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correspondências, construindo blocos de períodos que evoluem, uns sobre os outros; camadas sólidas, nas quais só conseguem transpassar elementos ressonantes.

O que ressoa nessa edificação é o saber médico, que persiste em todos os volumes, um percurso que sempre se repete entre a medicina, o aprofundamento (penetração para conhecer) e a exploração das imagens e das aparências. O tom de seus compassos é lamurioso, uma lamentação que persiste para que se dê mais atenção ao corpo, para que a medicina pare de ser seu horizonte (tão estreito que é), queixume que se repete numa sequência temporal que expressa o corpo da “vida sem a vida”.

Escrita-pesquisa fez um imenso esforço para tentar abarcar os pormenores dessa narrativa, mas o corpo que lá se encontra está distante do corpo de sua escrita. A construção dessa História pode ser apreendida, o que não pode é um corpo. Uma estrutura quer colocá-lo para dentro, num movimento incansável, mas um corpo qualquer a história tenta abolir a todo custo, o que entra é apenas o já classificado ou o que cabe numa classificação. Não era, então, apenas o frio do ar condicionado que a afastava daquele ambiente, também formavam uma ambiência gélida aqueles três volumes.

Mas afastava para onde? Era preciso capturar esse movimento, porque ele também dizia do contato de escrita-pesquisa com essa história. Ela sentia frio, e pensou que ao invés de ficar paralisada – era isso também o que sentia –, era preciso fazer alguma coisa, um outro movimento, deveria se inserir em novos fluxos para o corpo.

Porque o frio atinge o corpo e deixa-o inerte, adormecido, anestesiado. Somente movimentos mínimos são possíveis diante do estremecimento. A história do corpo não tolera o minúsculo, prefere a reconstituição totalizada da soma das partes, a síntese do tempo no sentido do progresso, sem espaço para descontinuidades7, a fim de

proporcionar a visão panorâmica do corpo. São tantos os entornos de sua história – religião, medicina, arte, cronologia – que a visão se limita por esses arredores, pelo que

7 Eugénia Vilela (2010) em Silêncios tangíveis: corpo, resistência e testemunho nos espaços de

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rodeia e não alarga, não se derrama por conta de sua vasta exposição.

Sempre empurrada para fora dessas linhas, janela abaixo, escrita-pesquisa sentia-se caindo tal como as imagens perdidas do corpo. O frio ofereceu dois movimentos distintos – um deles é o congelamento, a paralisia dos corpos da história do corpo, em que as sensações e os sentidos foram se perdendo. Mas, por outro lado, esse mesmo frio, fez com que ela percebesse que são os movimentos mínimos o que o ar frio contagia, fazendo com que o corpo comece a tremer no esforço de aquecer-se. São esses movimentos mínimos aqueles buscados para compor seu inventário. Inventário quase falido diante da coleção de ares frios.

coleção de movimentos mínimos

Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo. Jorge Luis Borges. Funes, o memorioso.

Escrita-pesquisa, ao querer lidar com movimentos mínimos, inclusive pensar o que eles são, como se constituem, como entram no inventário, inicia uma nova coleção. Ao escolher a relação entre escrita e corpo, parecia impossível dizer dessa relação em todas as obras que sobre ela se debruçam. Coleção infinita. Mas, o que deve propor a relação não é o já dado dessas obras, o que elas prometem. O que propõe relações é o próprio inventário, coleções finitas para uma escrita e talvez multiplicadora para os corpos.

Mas qual a relação entre os movimentos mínimos e a produção do inventário? As contingências que percorrem os movimentos mínimos podem ser: de que eles funcionam na criação de relações entre os fragmentos, tornando-as díspares, inadequadas,

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improváveis; também possuem a potência de recolocar problemas, pois, ao inseri-los nas falhas dos fragmentos, eles reinventam coleções, conexões, corpos; e é contingente acrescentar a potência dos movimentos mínimos de destoar das imensidões que se formam numa dualidade, numa oposição, porque parecem não alcançar tal amplitude e preferem a leveza de um bom encontro.

Tudo isso pode dizer dos movimentos mínimos, mas ainda era preciso encontrar materiais, dentre eles a escolha foi por David Le Breton, francês, estudioso do corpo, que escreveu vários livros a esse respeito. Sociologia do corpo, Antropologia do corpo, Adeus ao corpo, Antropologia da dor, Antropologia das emoções, Sinais de identidade8, entre

outros.

Os livros de Le Breton inventariam o que ele chama de modalidades corporais e seus usos sociais. Ele próprio escreve que a sociologia do corpo deve:

[…] dedicar-se ao inventário metódico das modalidades corporais em uso nos diferentes grupos sociais e culturais, distinguir as formas e as significações, as vias de transmissão. Dedicar-se também a comparações entre os grupos, a encontrar novas emergências de gestos, de posturas, de práticas físicas. Inventariar as representações do corpo que, hoje, enchem nossos olhos (modelos energéticos, mecânicos, biológicos, cosmológicos, etc.), distinguir as influências recíprocas. Sem esquecer das representações associadas aos diferentes segmentos corporais, ou ao próprio corpo em seu conjunto, os valores que encarna, as repulsões que suscita (LE BRETON, 2007, p. 94, grifos de escrita-pesquisa).

Inventário metódico que não se esquece. Entre idas e vindas, muitas das palavras que Le Breton dedica ao corpo parecem coadunar com as vontades dessa escrita-pesquisa, porém, nem todas – e isso torna o movimento em relação às suas obras um tanto sinuoso. No contato com esse material, uma das coisas que suscita a pensar é o quão difícil, para sua escrita sobre o corpo, é distrair-se, é esquecer-se. Mas para que distrair e

8 David Le Breton. Anthropologie de la douleur (1995). Las passiones ordinarias: antropologia de las

emociones (1999). Adeus ao corpo: antropologia e sociedade (2003a). La peau et la trace: sur les bleasure de soi (2003b). Sinais de identidade: tatuagens, piercings e outras marcas corporais (2004). A síndrome de Frankenstein (2005). A sociologia do corpo (2007). La chair à vif: de la leçon d'anatomie aux greffes d'organes (2008).

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esquecer? São esses gestos que provocam movimentos de abertura, nos quais as direções se multiplicam.Le Breton não esquece, possui um controle imenso daquilo que coloca no papel. Às vezes, desprende-se dos excessos, especialmente de referências, desprende-se das certezas, dos jogos fechados em que o corpo é colocado por conta desses excessos. Aí é que surgem os movimentos mínimos, modos de desviar das interpretações, uma sinuosidade do pensar que mobiliza uma escrita fragmentária.

Escrita-pesquisa recorda-se de várias passagens em que pululam essas certezas disfarçadas de patrimônios tombados, mas não será a lembrança que ela explicitará em suas linhas, deixará essa categoria de fora de seus itens inventariados. São com desprendimentos que ela trabalha – esse movimento mínimo lhe parece potente. Porque os patrimônios herdam um peso muito grande de uma tradição e fazem com que não haja esquecimento. Já o desprendimento desata-se, liberta-se de formas exatas, borrando-os, deixando de dar uma importância excessiva ao que, talvez, seja demasiado valorado.

Para trazer esses movimentos mínimos, ela se vale da extração. Mas antes de extrair, há uma insistência. O gesto de extrair está atrelado a alguma coisa que insiste. Uma falha que percorre um território. Uma abertura que faz com que haja uma contaminação, um contágio, uma invasão. Mesmo nas construções mais sólidas, o respiro é necessário. O gesto de construir está atrelado aos materiais com os quais se constrói. É muito diferente construir um muro feito apenas de pedras soltas e um muro cimentado (DELEUZE, 1997, p. 77).

Ao debruçar-se sobre as obras de Le Breton, ela poderia, com o chão escolhido e assentado, construir uma parede encadeando tijolos dispostos lado a lado, circundados pelo cimento que os mantêm unidos – os tijolos são argumentos e o cimento aquilo que os encadeia. Além disso, há o reboco, uma argamassa que reveste essa parede na tentativa de vedar alterações nos tijolos e no cimento, possíveis intrusões. E, para finalizar, uma bela camada de tinta que esconde todo o processo que levou à construção dessa parede, exaltando apenas sua solidez.

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Escrita-pesquisa prefere não. O muro que constrói é feito de movimentos mínimos, feito de fragmentos de arestas desiguais, não há cimento, nem cola, porque é preciso que o ar passe. O gesto de coletar os movimentos mínimos é cuidadoso, tal como a coleção de fragmentos da obra de Le Breton, o gesto de colocar uma pedra sobre a outra é suscetível às possibilidades que elas têm de se equilibrarem, e o de compor com os fragmentos também; uma invenção de relações, sempre nova, em cada pedra sobre pedra, em cada fragmento colocado.

As relações mantêm as pedras desiguais reunidas, os fragmentos díspares colecionados. Não é preciso formatar pedras e fragmentos para colocá-los juntos, pode-se mantê-los diferentes e criar entre eles um elo de convivialidade, uma maneira de estarem ligados. Por isso uma atenção às falhas, as frestas que permitem tanto que os fragmentos se avizinhem quanto seu arejamento para novas relações.

A seleção atua com prudência, porque “selecionar os casos singulares e as cenas menores é mais importante que qualquer consideração de conjunto. É nos fragmentos que aparece o pano de fundo oculto, celeste ou demoníaco” (DELEUZE, 1997, p. 78), é em sua reunião que se pode vislumbrar uma criação.

Para escrita-pesquisa são esses movimentos mínimos, esses lances que diferem daquilo que parecia um movimento homogêneo, encadeado por um fio de coerência. São nesses momentos em que os furos aparecem, as fendas, as falhas se mostram como aquilo que liga e não como aquilo que separa o terreno da escrita. Nesses momentos é possível abrir a escrita para uma sensação, para um sentido que se dá no corpo e com o corpo.

E, então, foi no gesto de um intervalo que se pôde clarear o procedimento de escrita-pesquisa, num gesto também de criação, um furo, que propõe estabelecer relações entre os fragmentos de seu inventário. Relações que se furtam ao encadeamento coerente, propondo uma fenda pela qual passam relações frágeis, precárias, moventes, abertas, impróprias, inadequadas, indeterminadas, indefinidas, idiotas, não preferidas, múltiplas,

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díspares etc.

Os movimentos mínimos são aqueles que convocam tais relações; com eles buracos e fendas são criados e, nessa conexão, corpo e escrita se esquivam a reproduzir encadeamentos lineares, tornando-se desviantes. São os movimentos mínimos que funcionam como disparadores tanto para extração de fragmentos quanto para criação de relações. Pequenos sinais vitais que possuem, neles mesmos, uma “nação formigante de nações” (DELEUZE, 1997, p. 77).

É desde dentro dessas relações criadas no contato com os materiais de que dispõe, que escrita-pesquisa procede – lembrando que é o mínimo aquilo que cria com David Le Breton.

3 cenas

cena 1 – contágio

Em La paradoja del actor: esbozo de una antropologia del cuerpo em escena9, Le Breton

(1999) inicia com uma linda epígrafe10, a qual diz de um mesmo corpo que vive e sente

9 O paradoxo do ator: esboço de uma antropologia do corpo em cena.

10 “La profesión de actor, la base del arte del actor, es una cosa monstruosa, porque está hecha de la

misma carne, de la misma sangre, de los mismos músculos de que ustedes se valen para realizar gestos corrientes, gestos verdaderos. El cuerpo con el que ustedes hacen verdaderamente el amor es el mismo que usan para fingir hacer el amor con alguien a quien no aman, a quien odian, contra el que luchan, por quien destestan ser tocados; y sin embargo, se arrojan en sus brazos con la misma clase de vivacidad, de entusiasmo y de pasión que si fuera vuestro verdadero amante, ¡y no sólo vuestro verdadero amante, sino el más verdadero de todos ellos!” – Lee Strasberg, Le travail de l'Actor's Studio (LE BRETON, 1999, p. 219). Tradução livre: “A profissão de ator, a base da arte do ator, é uma coisa monstruosa, porque está feita da mesma carne, do mesmo sangue, dos mesmos músculos de que eles se valem para realizar gestos correntes, gestos verdadeiros. O corpo com que eles fazem verdadeiramente amor é o mesmo que usam para fingir fazer amor com alguém a quem não amam, a quem odeiam, contra quem lutam, por quem detestam ser tocados; e, contudo, se jogam em seus braços com a mesma classe de vivacidade, de entusiamo e de paixão que se fosse seu verdadeiro amante, e não só seu verdadeiro amante, mas o mais verdadeiro de todos eles!”

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nos gestos do cotidiano e aquele que encena vidas nos gestos dos atores. É na última parte desse capítulo que esses dois corpos se encontram – de la sala a la escena11: o corpo

do ator no palco e o corpo do espectador na plateia, ambos re-mexendo um com a atmosfera do outro, assim como os corpos separados pelo palco (atores) e pelas poltronas (público) se interferem em seus próprios espaços. A maneira frágil como o corpo se afeta está presente em todo o ambiente. O que é ali construído passa pouco pela noção de entendimento de um acordo expresso e muito mais por um contágio de sensações produzidas e sentidas pelos corpos.

Na exigência de uma discrição do corpo da plateia, seus movimentos sempre são percebidos: a mudança de posição das e nas poltronas, algo cai, vibra, faz barulho, um cochicho, uma tosse, espirro etc., salvo exceções em que esses movimentos sejam provocados pelo corpo dos atores, exceção essa que não deixa de chamar a atenção também. Os movimentos dos atores também são percebidos nos mínimos detalhes. É aquilo que se cria entre os corpos, “entre la escena y la sala se crea una especie de simbiosis afectiva” (LE BRETON, 1999, p. 234)12, alimentando os corpos discretos e

indiscretos da plateia, os corpos-personagens dos atores, as tonalidades e luminosidades que colorem e acendem os corpos e modificam-nos.

Ao desnudar-se de seu personagem, o corpo do ator busca a expressão do corpo da plateia, num movimento incessante, que se repete todas as vezes em que se apresenta, mas que nunca é o mesmo gesto, a mesma saudação, o mesmo rechaço, mas que sempre o alenta de alguma forma, “es el momento en que se quita la máscara y siente, como un soplo sobre su rostro, la vulnerabilidad que le es propia” (LE BRETON, 1999, p. 235)13.

Nesse processo de construção e destruição do corpo da personagem, pois ambos

11 Sala pode ser traduzido como sala mesmo, ou como quarto, ou cômodo – portanto poderia traduzir

“da sala à cena”, “do quarto à cena”, “do cômodo à cena”.

12 Tradução livre: “entre a cena e a sala [quarto ou cômodo] se cria uma espécie de simbiose afetiva”.

13 Tradução livre: “é o momento em que se retira [ou se remove] a máscara e sente, como um sopro

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acontecem no palco, o travestir e o despir do corpo dessa personagem, em que se arranjam palco, cores, refletores, sons, gestos, palavras, também se arranjam iluminações, visões, audições, respiros, pensamentos, gostos, risos, lágrimas, incômodos, distrações, lamentos etc. entre os corpos-plateia.

Aquilo que se acrescenta e subtrai do enredo narrativo é percebido e sentido pelos corpos como criações que se dão no espaço-tempo do teatro e nos próprios corpos. E mesmo que aquilo que se encene esteja colado àquilo que se vive – são os mesmos corpos –, sempre há algo que escapa do vivido pelos corpos para o vivível de um corpo.

Nessa “simbiosis afectiva”, nessa atmosfera, nessa zona há algo que passa pelos corpos – atores e público – que é da alçada do contágio e não propriamente do encadeamento e do acordo tácito entre esses mesmos corpos.

cena 2 – tantos corpos

No último suspiro de Sinais de identidade, livro de Le Breton (2004), no capítulo chamado Orifício: a profundidade da pele, aberto pela bela epígrafe extraída do Livro do desassossego de Fernando Pessoa (1989)– “Exteriorizei-me de tal maneira dentro de mim que já só existo exteriormente” –, há duas frases: “Qualquer corpo contém a virtualidade de outros tantos corpos […] O corpo é plural” (LE BRETON, 2004, p. 252).

Anteriormente à frase selecionada para epígrafe, Fernando Pessoa14, em seu livro, começa

esse trecho falando sobre a criação de personalidades, as quais passam a sonhar seus sonhos. Ele diz que para criar é preciso destruir-se e essa criação faz-se corpo de

14 “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é

imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destrui-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças” (PESSOA, 1989, p. 160).

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passagem para vários atores e peças. Tudo isso possui uma intensa conexão com as virtualidades e pluralidades extraídas do capítulo de Le Breton.

Escrita-pesquisa ao deparar-se com essa conexão que, de alguma forma, se tornou possível, pensou que há uma ressonância entre ela e aquilo que fora extraído na cena anterior – o contágio.

Plural é mais que um, múltiplo, uma multiplicidade, uma variedade. Ao tornar-se vários, o corpo, ao invés de criar para si a identidade daquilo que possui enquanto virtual – “outros tantos corpos”, num jogo de espelho entre o que contém e o que expõe –, cria trajetos que ligam a virtualidade dos corpos ao corpo, unindo-os, superpondo-os, intercambiando-os. Esses trajetos garantem os deslocamentos entre os corpos – “cena viva”, segundo Pessoa, e não cenário sempre fixo.

A cada novo deslocamento alguns empecilhos e algumas aberturas se re-distribuem e isso faz com que a consistência se modifique, como se estivesse atravessando, num trajeto, uma corredeira de água e, noutro, um caminho de areia. Por isso a ideia de identificação (identidade) é frágil, porque os trajetos não se pareiam, não se igualam, não possuem uma previsibilidade sempre fiel.

As sensações e os afetos contagiam tais trajetos e isso também influencia os passos que se conectam e suas combinações. O conjunto de sensações e afetos operam e alteram os corpos, assim como o percurso criado. Dentro dessa maneira de olhar o contágio e a distribuição dos corpos, o que se produz são relações de forças, as quais produzem deslocamentos.

Ao invés de uma estrutura em que os papéis estão dispostos, são gerais, e o que se modifica são os elementos que assumem tais papéis e não a colocação ou alteração da personagem ao produzir deslocamentos, as relações de forças alteram os trajetos e fazem com que ora não seja possível criar determinado papel, ora esse papel esteja noutro canto

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do trajeto, tornando-os figuras singulares em cada deslocamento, apenas sendo possível assumir algo que se produz no caminho e só se produz no caminho.

Os deslocamentos produzidos entre os corpos, com os corpos contagiam, tornando-os plurais, e aquela virtualidade, que é de tantos outros corpos, também varia, influenciando na produção dos trajetos e naquilo que constitui o próprio corpo.

Porém, ser plural não basta. Porque se pode permanecer na indiferença, o que se constitui como plural pode distribuir-se numa indiferença, uma multidão indiferente. Ao plural falta-lhe o poder de afetar e ser afetado – o contágio.

cena 3 – contágio de tantos corpos

Num capítulo chamado: L'entame de soi: du body art aux performances – O início de si: da body art à performance, Le Breton (2003b) escreve:

Para muitos artistas, o corpo é posto a nu, pintado, exposto, decorado, estragado, rasgado, queimado, cortado, pincelado, acoplado, enxertado a outros elementos, etc. Ele se transformou em material dedicado ao suplício, à remodelação. Num gesto ambivalente, o corpo é reivindicado como uma fonte de criação. Sangue, músculo, humores, pele, órgãos, etc. são destacadas, divorciadas do indivíduo e tornam-se matéria-prima da obra. “Corpo sem órgãos” disponível à todas as metamorfoses, os seus suplícios ou seu desaparecimento, a sua hibridação animal ou sexual quando os artistas trabalham travestidos de vestimentas ou mesmo corporalmente subvertendo as formas orgânicas (LE BRETON, 2003b, p. 101-102, grifo do autor) (tradução livre)15.

15 “Pour nombre d'artistes le corps est mis à nu, peint, exposé, décore, abîmé, déchiré, brûlé, coupé,

pincé, accouplé, greffé à d'autres éléments, etc. Il se mue en matériau voué aux supplices, aux remaniements. Dans un geste ambivalent, le corps est revendiqué comme une source de crétion. Sang, muscle, humeurs, peau, organes, etc. sont mis en évidence, dissociés de l'individu et deviennent matières premières de l'oeuvre. “Corps sans organes” disponible à toutes les métamorphoses, voire à son supplice ou à sa disparition, à son hybridation animale ou sexuelle quand les artistes travaillent sur le travestissement vestimentaire ou memê corporel en subvertissant les formes organiques”.

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Nessa passagem inventariada, os elementos que produzem os trajetos – corpo, nudez, sangue, músculo, humores, pele, órgãos – e seus procedimentos – pintar, expor, decorar, estragar, rasgar, queimar, cortar, acoplar, enxertar, hibridizar, metamorfosear, travestir, subverter – são trazidos e afirmam uma potência impessoal, com a qual se está compondo. As partes corpóreas não se distinguem pelo que se faz com elas, nelas, delas, “destacadas e divorciadas”, o gesto que as produz torna-se matéria-prima para arte.

Nessa relação com a arte, dedicar-se ao corpo, com diferentes procedimentos, proporciona experimentações entre corpo, inventário e as próprias artes. Um contágio de tantos corpos. O que está se colocando nessa junção de cenas é a relação entre os afetos que se produzem com e nos corpos, a arte como estopim, como espaço-tempo de encontros, a potência de relações que não estão dadas, ou quando estão dadas são subvertidas – e tudo isso, nesses fragmentos, se dá no e com o corpo numa escrita.

Qual é a questão para a escrita? Qual é a questão para o corpo? Na relação entre escrita e corpo – um encontro – o que se produz? Há inúmeras questões que se lançam tanto para a escrita quanto para o corpo. Análise discursiva, jogos de palavras, tradução, interpretação, divisões de gênero, análise linguística, gramática, grafia, língua, oralidade, forma, conteúdo, linguagem, corpo-alma, ser, estar diante, estar corpo, natural, artificial, órgãos, funções, sistemas, corpo social, corpo biológico, corpo histórico, saúde, sexualidade, gênero, patologia, corpo dócil, identidade, etnia, traços comportamentais, tecnologia do poder, cyborg, corporeidade, sensibilidade, sentido, sujeito, dominação-submissão, indivíduo-coletivo…

Mas, partindo dos movimentos mínimos, para escrita e para o corpo a questão é do afetar e ser afetado. Por isso, no encontro entre escrita e corpo a potência está nas inúmeras questões que cercam os afetos de um corpo, como eles se transformam em questões para a escrita, para a palavra. Extrações de fragmentos e alianças numa escrita.

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que são investidos da vontade de relacionar escrita e corpo, mesmo que essa relação não seja explícita nos materiais. O movimento de extração se inventa na composição com aquilo que pulsa nesses fragmentos, aquilo que diz de um modo de existência, um sopro de vida, uma força que escrita-pesquisa busca capturar.

Se há um excesso de possibilidades de dizer o corpo numa escrita – inúmeras pesquisas e disciplinas –, escrita-pesquisa não inventaria a totalidade dessas possibilidades, mas sim escolhe aquilo que é mínimo num corpo (qualquer), numa escrita.

Participam desse inventário a história do corpo na coleção de ares frios, os escritos de David Le Breton na coleção de movimentos mínimos e seguir-se-á nesse movimento inventariado no encontro com outros fragmentos. Pois a composição da escrita-pesquisa passa por uma escrita em que o corpo está presente, é o seu presente, junto com conceitos e pedaços de literatura que lhe fazem pensar. Todos esses elementos engendrados nos afetos uns pelos outros, uns nos outros – a criação de um modo de existência que se faz na escrita com um corpo.

Quando Le Breton se dedica aos trajetos e procedimentos da arte para pensar no gesto que se torna matéria-prima para própria arte, um pouco depois da passagem extraída de La peau et le trace (LE BRETON, 2003b), o autor elenca alguns trabalhos de artistas da body art, “amostras de casos” (DELEUZE, 1997, p. 78), dentre eles: Vito Acconci, Michel Journiac, Marina Abramovic, abrigando-os numa espécie de ativismo contra-obsoleto entre a máquina corporal e as tecnologias contemporâneas. A performance que Le Breton escolhe de Marina Abramovic, um caso, chama-se Rythm 0, na qual, para ele, a artista traz os limites de tolerância do organismo e dispõe objetos numa mesa para que o público se sirva dos limites de tais instrumentos sobre o seu próprio corpo16.

16 “Dans Rythm 0, Marina Abramovic, dont le travail porte sur les limites de tolérance de l'organisme,

dispose des objets sur une table: aiguilles, épines, chargé, etc. Elle se met ensuite à la disposition du public autorisé à se servir sans limite de ces instruments sur son corps” (LE BRETON, 2003b, p. 103). Tradução livre: “Em Rythm 0, Marina Abramovic, cujo trabalho se concentra nos limites de tolerância do organismo, dispõe objetos sobre a mesa: agulhas, espinhos, carga, etc. Em seguida, ela coloca à disposição do público e autoriza a se servirem dos limites desses instrumentos sobre seu corpo”.

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Porém, escrita-pesquisa, ao buscar as imagens dessa performance de Abramovic e seu depoimento17, percebe algo que está para além do ativismo do corpo obsoleto diante da

tecnologia: Marina questiona “o que é o público”, não os limites do organismo e dos objetos, mas os limites do público, até onde vai a interação do público numa performance, o que pode o público diante do corpo e alguns instrumentos à sua disposição?18.

Essa era sua questão – o que pode o público e a vulnerabilidade do corpo em face disso. O que a artista experimentou em sua performance com tal questão foi a paralisia, o congelamento, essa era a própria performance – ritmo zero era seu nome: estar disponível ao ritmo zero de reagir diante do público e de objetos sobre a mesa. Disponível à interação num ritmo zero.

A artista também inventaria objetos sobre a mesa, há uma seleção e reunião ao sugerir objetos e inclusive ao incluir seu corpo enquanto objeto. O que uma sugestão e um inventário podem oferecer? Uma sugestão insinua, lembra, inspira, promove, mas não age sozinha. Uma coleção de objetos sobre a mesa podem sugerir, mas também não agem efetivamente sós – as relações precisam ser criadas, instauradas com o público e, numa performance, sempre corre-se o risco de não serem produzidas, não vingarem19, ou seja,

o público poderia não atuar com os objetos disponíveis e nada, efetivamente, aconteceria, ou a não interação seria seu acontecimento. Não foi o caso de Rythm 0.

O inventário e a sugestão de interação, bem como a questão que a artista inventa para compor sua performance, criam uma abertura para que as sensações e os sentidos circulem. Um contágio que não é só de potências construtivas, mas destrutivas também – e isso não é necessariamente bom ou ruim, não é o caso de um julgamento moral –, o

17 Depoimento de Marina Abramovic sobre a performance Rhythm 0 de 1974, realizada na galeria

Morra Arte Studio (Nápoles, Itália). Disponível em: <https://vimeo.com/71952791>.

18 “nas suas próprias performances você pode ir muito longe, mas se deixar as decisões para o público,

pode ser morta” (ABRAMOVIC, Marina. Body art. Performatus. Trad. Ana Ban. Ano 1, nº. 5, jul/2013).

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que está em jogo são procedimentos que trazem à luz modos de existência dos corpos. Ao ativar o público dessa forma, o contágio produz uma cocriação que fura os corpos numa interação violenta.

Os objetos que se mostram e possuem uma significação, uma utilidade, passam a se conectar, inclusive o corpo, numa conexão que não estava dada, portanto tornando sensível, nessa conexão, um novo sentido cocriado.

Quando esse acontecimento performático é reenviado para o corpo e o mundo, pode-se produzir uma multiplicidade de sentidos e conexões, pode haver interpretações que denunciam os excessos de (más) intenções que se apossaram daquele espaço, pode haver classificações das artes produzidas em que o público é ativo e a artista age radicalmente, pode haver coleções descritivas das obras produzidas pela performer, pode haver compilados que unem vários artistas colocando-os como defensores de algum tipo de ativismo, de propósito… escrita-pesquisa extrai um pedaço do pedaço de Le Breton, uma vez que o autor inventaria alguns artistas com suas performances da body art, e ela captura uma força que se produz numas dessas performances para pensar, dando potência a esse fragmento.

Quando esse fragmento é reenviado ao corpo e à pesquisa, cria nele e com ele um modo de existência, que implica uma passagem de vida que atravessa esse vivido e inventa um espaço-tempo vivível na escrita e no corpo. Nesse gesto mínimo que se conecta ao mundo, “colcha de retalhos infinita” (DELEUZE, 1997, p. 77), toca o corpo sem a vontade, o ímpeto de significá-lo, mas de tocá-lo numa escrita, de fazer do sentido um toque, fazer da escrita uma passagem por esse sentido.

Não é possível colocar-se no corpo dos objetos da performance para dizer em seu lugar sobre os sentidos e sensações criadas naquela galeria, tampouco uma reprodução, um refazer daquela performance poderia ser uma via para dizer desses sentidos e sensações,

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