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A intervenção teve início no segundo semestre letivo de 2016. A priori, o desenvolvimento das etapas aconteceu às quartas e sextas à noite, dias em tenho aulas geminadas1 com a turma do Tempo de Aprendizagem (TAP) V., entretanto, algumas terças, quintas e sábados foram utilizados de acordo com as demandas do projeto e disponibilidade dos alunos e dos meus colegas.

Em atendimento aos aspectos éticos da pesquisa qualitativa, segui o protocolo de inserção no campo de pesquisa, através de uma carta de apresentação (Apêndice A, p. 135) entregue à diretora Daniela Oliveira, na qual explicitei, não só os objetivos do projeto de intervenção e o tempo necessário para sua realização, mas também solicitei sua autorização. Esse momento representou minha entrada oficial no campo de pesquisa, mas, desde o ano passado, direção, coordenação e professores já sabiam que a Pirajá da Silva seria a escola campo do projeto e estavam me cobrando o seu início.

Apesar de já lecionar no Pirajá há dezesseis anos, esse momento foi significativo para mim. Não imaginei que fosse me sentir dessa forma. Foi quase solene. Foi como se eu tivesse clareza, dentro de mim, de que quem estava se apresentando ali, naquele momento era a pesquisadora e não a professora. Experimentei uma sensação de empoderamento, como se, a partir daquele instante, eu estivesse ali para intervir e modificar alguma coisa ou alguém, ao passo que refletia: será possível dissociar esses dois papéis? Separá-los dentro de mim?

Planejei apresentar, oficialmente, o projeto ao corpo docente e à coordenação pedagógica no espaço de uma Atividade Complementar (AC). A AC se constitui como tempo integrante do trabalho pedagógico do professor, reservado para o planejamento das atividades individuais e coletivas, avaliação, formação continuada do professor e socialização de práticas pedagógicas. Ela corresponde a um terço da carga horária do professor e acontece em um dia da semana específico para cada área. Assim, para mim, que tenho o regime de trabalho de vinte horas semanais, quatro horas por semana são reservadas para essa atividade que deve ser cumprida na escola, com a mediação da coordenadora pedagógica. Na Escola Municipal Pirajá da Silva, a AC da

área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias acontece às terças-feiras nos três turnos.

Entretanto, atendendo à sugestão dada pela coordenação pedagógica, a apresentação oficial do projeto ao corpo docente aconteceu em um sábado letivo por duas razões: foi uma das poucas oportunidades de encontro com colegas de outras áreas e uma forma de aproveitar o esvaziamento da escola pela ausência total dos alunos do turno noturno. Essa era uma situação já esperada, pois, quando os alunos foram avisados que no sábado haveria reposição das aulas dos dias de paralisação dos professores, disseram que não poderiam ir, em função de trabalhos que realizam nos finais de semana.

Durante a apresentação, meus colegas demonstraram receptividade e se colocaram à disposição para me ajudar no que fosse preciso. Aproveitei a oportunidade e reservei, junto à coordenação, o datashow, lousa interativa, notebook e caixa de som, materiais que seriam utilizados nas diferentes etapas do projeto, a começar pela apresentação do projeto aos alunos da turma TAP V.

O percurso metodológico escolhido para esta intervenção foi a pesquisa qualitativa de cunho etnográfico. Nesse sentido, utilizei como instrumentos para a geração de dados as rodas de conversa, o diário de campo e as narrativas autobiográficas dos alunos.

O diário de campo, por sua vez, foi utilizado para registrar as informações e acontecimentos que surgiram do trabalho de campo e da observação participante. Nele, eu registrei informações sobre a aplicação dos instrumentos de pesquisa, cada etapa do desenvolvimento do projeto, o comportamento dos alunos diante das atividades propostas, os silêncios, o que aconteceu e o que foi dito e realizado no espaço da intervenção. Nesse sentido, Hess (1996, p. 79) afirma que o diário é uma forma do pesquisador docente organizar as diferentes descobertas que cruzam seu caminho e “permite coletar, de vez em quando, no vivido do dia a dia, instantes que se vivem e nos parecem trazer nelesuma parte de significado”.

No contexto desta intervenção, utilizei também a roda de conversa como instrumento metodológico para geração de dados e como forma do aluno participar das escolhas e decisões do projeto, buscando adotar uma postura mais dialógica com os meus alunos. De acordo com Melo e Cruz (2014), a roda de conversa funciona como uma entrevista em grupo, na qual a discussão é focada em tópicos e os participantes são incentivados a emitir opiniões sobre o tema em questão.

Ela ganhou vida ao se iniciar o diálogo entre professor-aluno e aluno-aluno, estabelecendo uma relação de interação e confiança entre o grupo, de forma que o aluno se sentiu à vontade para participar. Nesse sentido, a roda de conversa revelou- se mais que um instrumento de pesquisa; passou a ser um espaço de acordo, interesse mútuo, educação da escuta, respeito ao turno de fala e sobretudo configurou-se como um espaço para a quebra das barreiras que me afastavam de meus alunos. No entanto foram necessários alguns cuidados: adequação das perguntas e do vocabulário utilizados ao universo de valores dos alunos e atenção às pistas que eram dadas por eles.

As rodas de conversa tiveram questões norteadoras, seguindo um roteiro básico (Apêndice B, p. 137), mas flexível, permitindo que fossem feitas as adaptações necessárias, em busca de uma melhor compreensão das práticas de leitura e escrita dos alunos, bem como dos hábitos e interesses.

Desse modo, o objetivo da roda de conversa inicial, realizada em duas geminadas, no dia 06.07.16, foi traçar o perfil dos alunos do TAP V, no que tange aos seus hábitos e interesses em relação à escrita e leitura. Então, com a sala disposta em semicírculo começamos a conversar sobre o formato da aula e informei-lhes sobre o uso acadêmico da conversa2. Antes de apresentar a temática fizemos os combinados sobre o comportamento na roda, destacando a importância de respeitar o momento da fala do colega e a sua opinião. Ressaltei que como a roda estava composta por vinte e uma pessoas, cada um ouviria mais do que falaria.

Assim, começamos uma prosa sobre leitura e escrita. Esse foi o segundo momento de minhas aulas, ao longo do ano letivo, em que os alunos do TAP V se concentraram e deixaram que uma aula acontecesse com sucesso.

No início da roda, pedi que os alunos falassem sobre sua rotina de um dia da semana e depois um dia do final de semana. A leitura e a escrita só apareceram em poucas falas e quando se referiram à escola e à igreja. Entretanto, ao serem questionados explicitamente sobre essas duas práticas, a maioria afirmou gostar de ler e não gostar de escrever.

Prossegui perguntando se tinham o hábito de ler. A maior parte da turma afirmou que não, alegando terem pensado que eu só estava me referindo à leitura de

2 Informei-lhes sobre a utilização das falas no meu trabalho de conclusão de curso do Mestrado Profissional em Letras.

romances (livros). Então, questionei sobre a última vez que realizaram a leitura de um livro. A maioria não lê um livro há mais de dois anos, alguns nunca leram e poucos leram um livro nos últimos seis meses.

Na sequência refiz a pergunta sobre os seus hábitos de leitura, sinalizando que poderia ser qualquer tipo de leitura. WhatsApp, notícias das páginas policiais dos jornais, facebook e a Bíblia foram as mais citadas. Em seguida, perguntei-lhes o que gostavam de ler. Embora a maioria tenha afirmado gostar de ler romances, esse gênero textual apareceu nos hábitos de leitura diária da minoria. Nesse sentido, a leitura das mensagens do aplicativo WhatsApp foi a mais recorrente.

Quando questionados sobre suas práticas de escrita diária, eles relataram situações em que essa prática se insere em suas rotinas como: escrever mensagens no WhatsApp e facebook, preencher a comanda de pedidos de clientes nas lojas e fazer os exercícios da escola. Então indaguei porque não gostavam de escrever. Eles responderam que não gostavam de fazer redação na escola e justificaram dizendo que era chato, não sabiam o que escrever e doía o dedo.

Outro aspecto importante abordado diz respeito à importância da leitura e da escrita. Mesmo alguns tendo afirmado não gostar de ler e escrever, todos reconheceram que a leitura e a escrita são práticas importantes, mas por razões variadas como: falar e escrever melhor; ampliar o vocabulário; adquirir conhecimento; aprender coisas novas; resolver problemas do cotidiano e ser alguém. Esta última me afetou muito ouvir, mas reforcei a importância de cada um deles, enquanto seres únicos e especiais, independente de saberem ler ou escrever.

A importância que os alunos do TAP V atribuem à leitura e à escrita parece não ter ligação com o incentivo recebido de suas famílias, já que a maioria afirma não o ter recebido e aponta para a escassez de materiais para leitura em casa.

A referida roda de conversa foi importante para compreender a forma como leitura e escrita ocorrem nesse contexto, concordando com Souza e Vóvio (2005) ao afirmarem que as pessoas teriam suas práticas de leitura e escrita delimitadas por configurações singulares, dependentes de suas histórias de vida, das práticas e atividades de que tomam parte em seu cotidiano, circunscritas aos grupos sociais a que pertencem e à atividade a que se dedicam e, de modo mais abrangente, ao contexto sócio-histórico que emoldura sua existência.

A roda inicial também foi fundamental, na medida que serviu para os alunos reiterarem o interesse de escrever sobre suas próprias histórias, a despeito de terem

afirmado não gostar de escrever os textos solicitados na escola. Além disso, as rodas foram formadas para discussão e avaliação de algumas das etapas e serviram como momentos de interação e aproximação.

Como forma de avaliar a etapa, pedi a opinião dos alunos sobre a roda de conversa. Perguntei se tinham gostado e se gostariam de participar de outras atividades semelhantes. Eles afirmaram ter gostado muito do formato da aula porque todos puderam falar sem confusão. Assim, agradeci a participação e colaboração e finalizei a roda.

Conforme planejamento, a intervenção foi organizada nas seguintes etapas: apresentação da proposta ou motivação, contato inicial com o gênero, produção inicial, ampliação do repertório sobre o gênero, revisão da escrita inicial e reescrita. Foram etapas que tiveram os seus objetivos gerais e específicos elaborados na perspectiva de aprendizagem do aluno e que, de forma gradual, explorariam o gênero autobiografia, suas características próprias e aspectos de sua escrita antes de propor uma produção escrita final.

As etapas tiveram a finalidade de ajudar o aluno na construção de aprendizagens sobre o gênero autobiográfico e serviram também para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas. Mas, à medida que a intervenção foi ganhando vida, a sequência de aulas planejada adquiriu novos contornos e teve suas etapas flexibilizadas.

As anotações decorrentes das minhas observações, das rodas de conversa e das etapas do projeto foram feitas durante as aulas ou ao final delas, para que eu não corresse o risco de esquecer o que havia observado. Tive o cuidado, não só de registrar cada detalhe dos encontros e interações, no diário de campo sempre que chegava em casa depois das aulas, mas também de refletir sobre as pistas encontradas no trajeto, de forma que me possibilitou refazer a rota quando as descobertas apontavam para uma direção que não a traçada por mim, mas aquela que emergiu do processo de interação e compartilhamento do poder em sala de aula. Assim, entre o que se planejou e o que se conseguiu realizar, segue a narração do vivido ao longo do projeto de intervenção, entremeada com as teorias que fundamentaram cada ação e com as reflexões inerentes ao momento.

3.1 As etapas