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3 SOCIEDADE CIVIL E PARTICIPAÇÃO

3.1.2 Esfera Pública

Considerando que a sociedade civil no Brasil foi, mais ou menos consensualmente, definida como uma trama diversificada de atores coletivos, caracterizada pela autonomia e espontaneidade com que mobilizam seus recursos e que estes em geral são endereçados à comunicação pública com o objetivo de trazer à discussão as questões de interesse geral, interessa saber com que eficácia esse processo se realiza, ou seja, quão acertivo é no propósito de atingir a discussão pública dos problemas gerais. Para Avritzer (1994, p. 284) “o que caracteriza a sociedade civil brasileira é a procura pela autonomia de uma esfera de generalização de interesses associada à permanência de uma forma institucional de organização baseada na interação comunicativa”.

Em outras palavras a sociedade civil no Brasil padece da carência de uma caixa de ressonância idônea para a mediação de suas questões junto às esferas políticas, o que, é um indicativo da própria insipiência da sociedade civil no Brasil, já que a “existência de uma sociedade civil vitalizada [...] é apontada como garantia contra deformações da esfera pública e pressuposto da legitimidade dos consensos públicos que sejam consolidados nesse nível” (COSTA, 1994, p. 43).

7 Expressão da lavra de Sérgio Costa, cuja idéia básica é a de que a sociedade civil (como em Gramsci) se distingue das esferas do Estado e da economia, buscando-se, assim, a um só tempo, distinguir-se do liberalismo - no qual a integração social se encontra no mercado - e do estatismo - onde a sociedade civil aparece subssumida no Estado (COSTA, 1997).

A tal “caixa de ressonância” é a própria esfera pública ou espaço público de que temos falado, cujo conceito foi definido por Habermas (2003b, p.92) como

[...] um fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensar em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.

Note-se que o modus operandi dos Novos Movimentos Sociais (NMS) e suas variantes no cenário brasileiro, que serão abordados no Capítulo 4, se caracteriza por uma ritualística elaborada para, intencionalmente, atingir os meios de comunicação e a opinião pública e se fazer notar pela população em geral, “pois, para atingir o grande público e a ‘agenda pública’, tais temas têm que passar pela abordagem controversa da mídia. Às vezes é necessário o apoio de ações espetaculares [...] para que os temas consigam ser escolhidos e tratados formalmente” (HABERMAS, 2003b, p.116) de modo que se atinja o núcleo do sistema político, superando os programas dos partidos. Por isso se compara a esfera pública a uma caixa de ressonância onde os problemas a serem elaborados pelo sistema político encontram eco.

Nesta medida, a esfera pública é um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém sensíveis no âmbito de toda a sociedade. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebê-los e a identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar. E a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem que ser utilizada por um controle ulterior do tratamento dos problemas no âmbito do sistema político (Idem, p.91, grifos do autor).

Uma tal concepção de esfera pública traz dentro de si, segundo Costa (1997, p.182), os elementos necessários para entender a forma original como o autor lida com uma

questão clássica da sociologia: “como é possível a manutenção da ordem social num contexto secularizado, caracterizado pela ausência de ‘transcendência e tradição’”. Embora reconheça a força aglutinadora da coordenação sistêmica, a resposta para Habermas está

[n]o mundo da vida, caracterizado por ações orientadas para o entendimento. A imagem da esfera pública que resulta de tal constatação não é mais a de um simples palco para a encenação de atores estrategicamente voltados à manipulação das opiniões, pois para ela dirigem-se também fluxos comunicativos condensados na vida cotidiana que encerram questões relevantes para o conjunto da sociedade (Idem).

Sendo assim, a esfera pública é a mediadora entre o mundo da vida e os colegiados competentes institucionais. Sob ambos os enfoques, a formação da esfera pública no Brasil desde o encerramento do regime militar é, para o autor, democrática.

Ou, ainda, segundo explica Costa (1994, p.43) em outro momento: “conforme Habermas, a opinião pública só pode constituir-se como fator de legitimação de decisões públicas à medida que esta se forme espontaneamente”. Espontaneamente aqui tem um sentido relativo, quer dizer que, embora as opiniões públicas sejam manipuláveis, não podem ser fabricadas ou compradas e, mesmo a manipulação só pode atuar sobre estruturas que se tenham constituído e reproduzido autonomamente.

Se quiséssemos traduzir a tarefa atribuída aos Movimentos Sociais e às demais organizações da sociedade civil em uma frase de efeito, poder- se-ia formular que a contribuição diferenciada destas associações no processo de “democratização da democracia” deve consistir a um só tempo na busca da devolução do caráter privado às esferas privadas e da natureza pública às questões públicas. [...] Assim, tais associações devem buscar permanentemente assegurar publicidade (em ambos os sentidos: caráter público e divulgação) às suas mensagens, rejeitando as decisões e acordos intramuros” (COSTA, 1994, p.47).

Pois não estão afastadas as possibilidades de neocorporativismos e a tentativa de apropriação e obtenção de vantagens por grupos de interesse através da mera atualização de questões privadas por meio de esquemas clandestinos, não expostas à discussão e ao debate público, sob o risco de “feudalizar” o Estado.

A esfera pública parece mesmo apresentar uma ambigüidade que lhe é constitutiva: sua construção, ao mesmo tempo que amplia os espaços para a negociação política conspícua e para o entendimento social efetivamente comunicativo, faz crescer o risco de transformação do processo de legitimação democrática em mera questão de manipulação eficiente da política simbólica (HABERMAS, 2003, p. 192).

A importância dada ao processo de comunicação, à ação comunicativa, não parte da ilusão de que a simples disposição de trazer à discussão os problemas de interesse da sociedade signifiquem automaticamente o alcance de consenso ou, ainda, que a disposição das partes de se envolverem no debate signifique capitular de seus interesses pessoais ou de grupo. O dissenso é um componente fundamental da democracia8. Contudo a discussão joga luz sobre as posições iniciais, tornando-as

públicas, produzindo entendimento. É através desse entendimento, mais do que pela força da maioria que se produz a racionalidade das decisões coletivas. Ademais seria

[...] difícil imaginar uma ação política que não esteja vinculada a interesses. E é difícil imaginar uma interação política que não dependa do jogo dos conflitos e oposições que atravessam o espaço social. Mas se isso pode aparecer como algo diferente da simples defesa corporativa de interesses ou, ainda, se pode aparecer como algo diferente de uma fragmentação da vida social, depende da articulação de uma linguagem através da qual interesses e razões privadas podem ser, para usar a expressão de Hannah Arendt, desprivatizadas e reconhecidas publicamente sua legitimidade. Talvez nisso se possa identificar a eficácia propriamente simbólica dos direitos. É Lefort, sobretudo, quem enfatiza esta dimensão e é a leitura de seus textos que nos leva a pensar os direitos enquanto linguagem política que articula práticas individuais e coletivas num espaço comum de pertencimento (TELLES, 1990, p.44).

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