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A ESPÉCIE COMO “REPLICADOR”

No documento Como Surgem as Espécies ? Gustavo Gollo (páginas 70-80)

Se analisamos a definição proposta anteriormente para “replicador” vemos que as espécies se encaixam perfeitamente neste conceito, pois elas produzem cópias de si mesmas (outras espécies), que têm o potencial para produzir cópias de si mesmas.

Anteriormente, (seção 3.a) , imaginamos um universo povoado por um único replicador e descrevemos a evolução provável deste universo até o seu povoamento por uma infinidade de tipos de replicadores. Se consideramos uma espécie como o replicador original deste universo, teremos, com o passar do tempo, um vasto conjunto de espécies descendentes da espécie original.

Como há uma correspondência de um para um entre as espécies e seus mecanismos de isolamento reprodutivo, podemos considerar estes mecanismos como replicadores.

Se supomos uma única espécie povoando um universo em um dado tempo, temos um único mecanismo de isolamento reprodutivo povoando este universo e, com o passar do tempo, um amplo conjunto de mecanismos de isolamento descendentes do mecanismo original. Um fato interessante em relação a isto é que podemos ver claramente que certos mecanismos de isolamento reprodutivo são mais aptos que outros.

Imaginemos duas espécies que sejam similares em tudo exceto pelos mecanismos de isolamento reprodutivo. Suponhamos que em uma das espécies o ritual de corte seja

constituído por um conjunto de manifestações visuais, acrescidas de um vasto conjunto de estímulos auditivos, olfativos, etc.. Neste caso, podemos dizer, com segurança, que a segunda espécie tem um mecanismo de isolamento reprodutivo mais complexo que o da outra. Além disto, as alterações possíveis no ritual de corte da primeira espécie são possíveis no da outra, mas, o inverso não é verdadeiro. É possível o surgimento de muitas alterações nos estímulos não visuais do ritual de corte, o que não é possível nos indivíduos da outra espécie. Como o surgimento de uma nova espécie exige alterações nos

mecanismos de isolamento reprodutivo da espécie ancestral, temos que, neste caso, a segunda espécie, a que possui os mecanismos de isolamento mais complexos, tem maior probabilidade de gerar uma nova espécie (analogamente, podemos pensar que o ritual de corte , ou, também, o mecanismo de isolamento reprodutivo da segunda espécie tem mais chances de gerar um novo ritual de corte ou novo mecanismo de isolamento reprodutivo).

Deste modo, podemos dizer que certas espécies têm um potencial de especiação maior que o de outras, e que esta diferença no potencial de especiação é dada, numa parte

significativa, pela complexidade dos mecanismos de isolamento reprodutivo.

Um corolário importantíssimo decorrente do fato de que as espécies têm distintas taxas de especiação decorrentes de propriedades inerentes da espécie ou de seus indivíduos é que, se em um dado instante, um universo está povoado por determinadas espécies, decorrido um longo tempo, este mesmo universo estará dominado pelas espécies descendentes das que possuíam o maior potencial intrínseco de especiação, ou seja, decorrido tempo suficiente, as espécies com maior taxa intrínseca de especiação terão deixado mais espécies descendentes que as outras. Notemos que as novas espécies tendem a

herdar o potencial de especiação de suas ancestrais, pois, mantêm padrões de isolamento reprodutivo bastante semelhantes aos delas.

Há uma analogia íntima entre o potencial de especiação de uma espécie e a

fecundidade de um indivíduo. Enquanto replicadores, a reprodução dos indivíduos eqüivale à especiação das espécies. Do mesmo modo, a extinção das espécies guarda um estreito paralelo com a morte dos indivíduos. Desta forma, se analisamos a evolução de um universo povoado por certas espécies, devemos considerar que, tanto o potencial de

especiação quanto o de extinção determinam a aptidão da espécie (no sentido literal em que certas espécies são mais aptas que outras. Não estou me referindo, aqui, à aptidão dos indivíduos).

Este fato importantíssimo para a descrição do nosso mundo real vem sendo esquecido. Quando perguntamos porque certos grupos são dominantes hoje, costumamos obter respostas que enfatizam a aptidão dos indivíduos de certos grupos. Deste modo, não nos surpreendemos com comentários acerca da maravilhosa virtude protetora da carapaça dos coleópteros que confere aos indivíduos deste grupo uma aptidão fenomenal que os torna tão numerosos. Não podemos duvidar do fato de que estes indivíduos são

surpreendentemente bem adaptados, como de resto, todas as espécies viventes. No entanto, sem negar a afirmativa ad hoc de que os grupos dominantes são os mais bem adaptados ao nosso mundo, gostaria de enfatizar que, havendo uma taxa de especiação intrínseca distinta entre as várias espécies que povoam o nosso mundo hoje (o mesmo vale para qualquer instante), no futuro haverá proporcionalmente mais espécies descendentes das que possuem os maiores potenciais de especiação (e menores potenciais de extinção), de modo que o perfil do nosso mundo em qualquer período de tempo é dado em larga medida pelo potencial de especiação das espécies viventes em um período anterior.

Podemos perguntar porque uma conclusão tão simples e tão relevante para toda a biologia tem sido ignorada até hoje ? Creio que a principal razão para isto foi a crença nos mecanismos de especiação geográfica. A descrição dos processos de especiação geográfica não envolve nenhuma característica intrínseca da espécie, mas releva em demasia o

mapeamento geográfico da espécie. Assim, de acordo com Mayr ( 1970 p. 367 )

“A taxa de especiação depende de três grupos de fatores: (1) a freqüência das barreiras, isto é, os fatores que produzem isolados geográficos; (2) as taxas em que isolados geográficos sofrem transformações genéticas e, mais especificamente, em que adquirem mecanismos de isolamento; e (3) o grau de diversidade ecológica oferecendo nichos ecológicos vagos à espécie em formação”.

Para Mayr, é natural que os fatores de distribuição geográfica da espécie

constituam o primeiro grupo de fatores a influenciar a taxa de especiação. A meu ver, no entanto, a taxa de especiação de uma espécie depende fundamentalmente de características intrínsecas da espécie, especialmente das características relacionadas aos mecanismos de isolamento reprodutivo. Os fatores listados por Mayr e citados acima, no grupo 3, de fato, não estão relacionados diretamente com a epeciação, entendida como a formação de um novo grupo reprodutivamente isolado de outros, mas, estão mais intimamente ligados à manutenção ou extinção das espécies. De acordo com este ponto de vista, não devemos esperar um aumento na taxa de especiação decorrente de um episódio prévio de extinção em larga escala. Se existiram momentos em que, por algum motivo, a vida na terra sofreu um forte abalo e muitos grupos de espécies se extinguiram quase que simultaneamente, podemos pensar que isto deixou o planeta com muitos nichos vagos, o que provavelmente evitou a extinção de muitas espécies incipientes. Assim, podemos dizer que a abertura de novos nichos decorrentes de uma extinção em massa diminui a taxa de extinção das novas

espécies, o que não corresponde a um aumento na taxa de especiação. De qualquer forma, a recolonização do planeta é feita, principalmente, através das espécies com maior potencial intrínseco de especiação, e este potencial é uma função do mecanismo de isolamento reprodutivo da espécie.

Deste modo, se queremos explicar o nosso mundo biológico atual e justificar a existência das espécies atuais não podemos nos basear exclusivamente na seleção natural.

Os seres vivos existentes hoje, distribuídos nos conjuntos de espécies atuais, assim se encontram, fundamentalmente, em conseqüência da seleção sexual.

3.5 Metaespécies

Qualquer coisa que, em algum sentido, se reproduza, pode ser considerado um replicador. Deste modo, o conceito de replicador pode ser estendido a vários tipos de entidades.

Quando ocorre o fenômeno da especiação, ou seja, quando uma espécie gera outra, podemos dizer que a espécie se reproduziu. Assim, podemos nos referir à espécie ancestral como “mãe” e, à outra, como “filha”.

Alguns grupos de espécies se caracterizam por uma alta freqüência de especiação gerada através de hibridização natural. Seguindo o raciocínio esboçado acima, podemos chamar as espécies geradoras de “pais” da espécie híbrida. Podemos também considerar que, no caso da especiação por hibridização, houve reprodução sexuada entre duas espécies gerando uma espécie filha que herda características de ambas as progenitoras.

Se aplicamos a definição biológica de espécie a esta situação descobrimos a existência de metaespécies. A situação esboçada acima caracteriza três espécies pertencentes à mesma metaespécie.

É provável que entre os animais a especiação por hibridização seja extremamente rara, se assim for, neste reino, as metaespécies são constituídas por uma espécie apenas, descortinando um panorama nada interessante. Entre os vegetais, ao contrário, é provável que vários grupos de espécies constituam metaespécies com populações (de espécies) relativamente elevadas. De acordo com Grant( 1971 )...

As relações filogenéticas sugeridas abaixo ( Futuyma 1986, p.243 ) exemplificam o fenômeno das metaespécies:

prostrata-26 purpurea-26 affinis-26 delicata-18 pulchella-12 BIORTIS similis-17 CONNUBIUM CLARKIA

breweri-7 9 9 deflexa-9 xantiana-9

17 concinna-7 epilobioides-9 FIBULA

tenella-17

davyi-17 unguiculata-9

rhomboidea-12

EUCARIDIUM 9 8 exilis-9

cylindrica-9 PHAESTOMA

bottae-9 virgata-5 dudleyana-9 mildrediae-7

lingulata-9 modesta-8

gracilis-14

MYXOCARPA biloba-8

lassenensis-7 PERIPETASMA

arquata-7 amoena-7 rubicunda-7 williansonii-9

nitens-9

imbricata-8 PRIMIGENIA speciosa-9

GODETIA

FIGURA: Relações filogenéticas inferidas entre as formas poliplóides no gênero de planta Clarkia.

Os nomes em letra maiúscula são seções do gênero e em minúscula são as espécies, com os números cromossômicos gaméticos indicados. Os números cromossômicos isolados representam ancestrais hipotéticos. Note que as formas poliplóides têm se originado por hibridização entre as espécies. (Segundo Lewis e Lewis 1955)

3.6 Porque Existem as Espécies ?

Em meados deste século, Dobzhansky (1935, p. 347, in ch.3 Endler, 1977) afirmou que “a tendência da vida em direção à formação de conjuntos discretos não é dedutível por nenhuma consideração a priori. É simplesmente um fato a ser considerado”.

De acordo com esta concepção, não devemos tentar responder à pergunta expressa no título desta seção: as espécies teriam se estabelecido por acaso (enquanto espécies distintas e discretas ) e não deveríamos esperar que o mesmo ocorresse em outros mundos possíveis.

Algum tempo depois, Mayr (1970) apresentou uma resposta que, para muitos, até hoje, parece satisfatória.

Para Mayr, o sentido biológico da espécie seria esclarecido ao se tentar imaginar um mundo povoado por indivíduos não organizados em espécies, todos pertencentes a um mesmo conjunto intercruzante. Em um mundo como este os indivíduos difeririam uns dos outros em graus variados e, de acordo com Mayr, “cada indivíduo seria capaz de se cruzar com os que fossem mais semelhantes a eles. Num mundo destes, todo indivíduo seria, por assim dizer, o centro de uma série de anéis concêntricos de indivíduos cada vez mais distintos”. Neste mundo, os casais reprodutores seriam, normalmente muito diferentes entre si, o que acarretaria a produção de indivíduos muito variados e distintos. Assim sendo, quando surgissem indivíduos extremamente bem adaptados a certos nichos eles não seriam capazes de se perpetuar, pois, a descendência destes indivíduos seria bastante distinta deles próprios. Deste modo, os bons genótipos seriam sempre destruídos, e não haveria

possibilidade de uma melhoria gradual de combinações gênicas.

Esta alegoria desvenda para Mayr o sentido da espécie.

“Seu isolamento reprodutivo é uma adaptação protetora, que a resguarda contra a destruição de seu sistema gênico bem integrado e co-adaptado. A organização da diversidade orgânica em espécies cria um sistema que permite diversificação genética e acúmulo de genes favoráveis e combinações genéticas, sem o perigo de destruição do complexo gênico básico.

Existem limites definidos para a variabilidade genética que pode ser acomodada em um patrimônio gênico único, sem a produção de uma proporção muito alta” (Mayr, 1970, p.21)

Mayr conclui, então, que a ordenação em espécies, ou seja, a organização de

patrimônios gênicos protegidos, impede que sejam ultrapassados os limites de variabilidade que produziriam um número excessivo de combinações inviáveis, e que, portanto, é por isto que existem as espécies.

2. Mais recentemente, surgiu uma outra resposta a esta pergunta. Templeton (1989) propõe que os mecanismos de isolamento reprodutivo surgem para facilitar a reprodução entre os membros de certa população. Deste modo, se consideramos que o surgimento de uma nova espécie se identifica ao surgimento de um novo mecanismo de isolamento reprodutivo temos, como conseqüência, que as espécies surgem para facilitar a reprodução entre os membros de certa população.

3.6.1 Um Outro Enfoque

A meu ver, os dois pontos de vista apresentados anteriormente são, de certo modo, complementares. Assim, considero, como Mayr, que em muitas situações a existência de mecanismos de isolamento reprodutivo confere uma vantagem seletiva aos indivíduos que os possuem. Também penso que, em certo sentido, não é errado dizer que os mecanismos de isolamento surgem para facilitar a reprodução, pois, como visto no capítulo 2 deste texto, muitas vezes, acabam tendo este papel. Há, no entanto, um terceiro enfoque complementar aos anteriores.

Podemos considerar as espécies como replicadores. Neste caso, vemos que as espécies se reproduzem, e, assim vão sucessivamente gerando novas espécies. Sob este ponto de vista, perguntar porque existem espécies eqüivale a perguntar porque existem indivíduos.

Do mesmo modo, podemos tratar dos mecanismos de isolamento reprodutivo como replicadores. Podemos também associar cada espécie a um mecanismo de isolamento reprodutivo, pois, se dois grupos compartilham os mesmos mecanismos de isolamento, eles intercruzam generalizadamente e constituem uma única espécie. Por outro lado, se um grupo possui dois mecanismos distintos (antagônicos) de isolamento reprodutivo, estes encontram-se reprodutivamente isolados e constituem portanto duas espécies.

Desta forma, podemos acompanhar um sistema evolutivo (como um conjunto de espécies pertencentes a um grupo de taxons) a partir do desenvolvimento dos mecanismos de isolamento reprodutivo destas mesmas espécies, pois, há uma correspondência, um a um, entre cada espécie e cada mecanismo de isolamento reprodutivo.

Sob este enfoque, tanto as espécies como os mecanismos de isolamento reprodutivo são replicadores, e, por isto, eles são tantos e tão diversificados. Este argumento não justifica o surgimento da primeira espécie capaz de promover reprodução sexuada e isolada

reprodutivamente de outro grupo (ou conjunto de grupos). Mas, de acordo com ele, uma vez surgida a primeira espécie ou o primeiro mecanismo de isolamento reprodutivo, a evolução futura do sistema em questão seria previsível no que se refere à multiplicação deste sistema e conseqüente formação de novas espécies correspondentes a novos mecanismos de isolamento reprodutivo.

Deste modo, contrariamente à afirmação de Dobzhansky enunciada anteriormente, podemos asseverar que, caso surja em um certo mundo uma espécie que pratica a

reprodução sexuada, dado tempo suficiente, haverá uma enorme multiplicidade de espécies.

No documento Como Surgem as Espécies ? Gustavo Gollo (páginas 70-80)

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