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3.4 Análise: imagens verbais e imagens verbo-visuais

3.4.2 Alguns recursos reveladores da (re)construção intertextual do espaço

3.4.2.5 O espaço compondo perfis

No primeiro momento Alencar define as personagens e suas funções pela moradia, tal qual o faz Bengell n´O Guarani do cinema, comprovando que é o locus que referenda o status quo da personagem que o habita. Por isso, na casa “larga e espaçosa” vivem os representantes do rei de Portugal; na “senzala” estão os “aventureiros e encostados”, e na cabana de sapé

encontramos Peri. Todos evidentemente subordinados ao colonizador europeu e vistos como elementos componentes de um cenário perfeito para o desenrolar de fatos característicos da história ideal da colonização. Conforme Marco (1993, p. 44), “terminada a descrição da casa, [...] apresenta-se seu criador – D. Antônio de Mariz [...]”, resgatando a imagem do fidalgo português que, na ânsia de manter-se fiel à monarquia portuguesa, “transforma o Paquequer em espaço legítimo de extensão do reino [...]” (1993, p. 51).

A divisão da moradia atribui conforto e segurança aos primeiros, e os elementos da natureza compõem a habitat do índio, que, apesar de agregado da família, não se mistura aos habitantes da “senzala”, que estão alocados em armazéns espaçosos mas sem o conforto da casa grande nem a privacidade da habitação do herói.

Cada habitat representa um quadro da grande tela “pintada” pelo narrador de Alencar, idealizando um cenário propício para o desenrolar de uma trama que tem o colonizador como um dos elementos centrais. Ou seja, são os ideais do colonizador que conduzem as ações do herói indígena. Trata-se de uma subordinação que não exclui a existência de “dois blocos protagonistas da História do país – o do colonizador e o do nativo” (MARCO, 1993, p. 54).

No romance de Alencar, à semelhança dos textos de Ferdinand Denis, temos “a colonização como uma forma de intercâmbio benéfico [...]”, e a Europa como “difusora da civilização” (ROUANET, 1991, p. 211). Não foi à toa que Ferdinand Denis, no seu “programa nacional literário”, desejou “fornecer aos brasileiros os princípios a partir dos quais estes deveriam desenvolver a sua própria literatura e, juntamente com isto, revelar-lhe o Brasil que deveria ser visto” (p. 221, grifo do autor). Nesse contexto, Peri é o representante da natureza que serve de elo entre esta e o homem branco, “verdadeiro mediador entre a cultura e a natureza” (SANT’ANNA, 1973, p. 69).

Assim, as personagens estão fixadas, cada qual, em seu locus de origem e de direito. A família Mariz habita a “casa grande” da fortaleza. Os comandados de D. Antônio permanecem em alojamentos conjuntos chamados pelo narrador do romance de senzala ou armazém. Esses homens são caracterizados como rudes e não ultrapassam as fronteiras do pátio da fortaleza, a não ser com a permissão do velho fidalgo. Apenas Aires Gomes e D. Álvaro podem circular com liberdade pelos ambientes. O primeiro é o porta-voz do enviado do Rei e o segundo tem o direito natural atribuído à fidalguia. Peri oscila entre a fortaleza e a floresta, entre o amor e a liberdade, entre o desejo de estar com Ceci e o direito de pertencer à natureza. As mulheres estão no interior da residência: quando ultrapassam a saída da fortaleza estão sujeitas ao perigo.

É o que se percebe na décima terceira seqüência (25’ 19”) do filme e no capítulo “No banho” do romance, quando Cecília e Isabel são ameaçadas pelos aimorés, durante o banho no rio. Essa divisão espacial, apesar de inspirada num fato do romance, pode ainda reiterar a tese da existência de diferentes vozes ideológicas no filme, pois dentro de cada ambiente as personagens (fidalgos, indígenas ou homens comuns) são representantes de culturas distintas, agindo de acordo com sua formação sócio-histórico-ideológica, de maneira a constituir um aspecto que, no audiovisual, ganha uma amplitude maior, decorrente do despontar das vozes de Peri, de Isabel e dos aimorés.

Na seqüência em questão, o perigo é denunciado logo no primeiro plano, quando Peri, focalizado em plano geral, esgueira-se entre as plantas e árvores da floresta à procura de alguém, demonstrando desconfiança na fisionomia. Ao som da música de Carlos Gomes, que aprimora a atmosfera de suspense da cena, percebemos Isabel e Ceci banhando-se no rio. O plano geral das moças apresenta o ambiente em que se encontram: um rio de águas límpidas, cercado de pedras e flores silvestres. As ações do herói e as tomadas da câmara retomam com maestria a imagem descrita pelo narrador do romance. Um plano próximo do rosto de Peri é seguido de uma nova tomada do banho das moças, ainda em plano geral, a partir do qual a câmera vai se aproximando dos rostos de Cecília e Isabel, enquanto a música vai adquirindo um tom mais grave.

As tomadas seguintes mostram ainda o rosto preocupado de Peri, que é seqüenciado pela imagem subjetiva dos aimorés, visualizados em meio às árvores, em plano de conjunto.

Imagem 9: Close de Peri (25’52”) e plano médio dos aimorés (26’27”) Fonte: O GUARANI (1996)

A câmera mostra o perfil de um índio adulto e um menino de cerca de 10 anos, caminhando em direção ao local em que encontramos Ceci e Isabel. Eles armam o arco e a flecha. Um plano médio dos inimigos mostra Peri entrando na frente do arco empunhado. Em

novo foco temos um plano próximo de Peri, ferido, atirando com uma pequena pistola nos aimorés. O tiro espanta as aves silvestres, que saem em revoada, quando vemos Peri perseguindo o garoto aimoré, em plano médio. A tomada seguinte mostra Isabel e Cecília fugindo do rio. Um novo plano geral apresenta os índios reunidos em outra parte do rio, quando são avisados do ocorrido e iniciam um grito de guerra. No romance, os inimigos são representados por “dois selvagens, mal cobertos por uma tanga de penas amarelas [...]”, abatidos de uma só vez por Peri, e acompanhados pelo “vulto de uma índia que sumiu-se ligeiramente no mato [...]” (p. 63). Aqui, as sutis diferenças existentes entre a narração do romance e a apresentação das cenas do filme não alteram a suposta retomada da visão do índio e da natureza como exótico e pitoresco, confirmando a intertextualidade existente na adaptação do romance para o cinema. Ambos representam uma construção imaginária da figura do índio, a qual, segundo Novaes,

em vez de entrar no mundo dos gestos, signos e símbolos que permitiriam compreender o sentido e o poder da cultura e das instituições, dos mitos, dos símbolos e das palavras dos primitivos, o Ocidente apressou-se em desenhá- los como o bom e mau selvagem, o violento, o canibal, sem história, sem memória e sem formas de organização política (NOVAES, 1999, p. 10). Um close do rosto de Peri, escondido atrás de uma árvore, sugere que a cena anterior é vista por ele, com o espaço sendo mostrado com detalhes, e havendo uma grande incidência de panorâmicas que, associadas aos closes mencionados, mostram a beleza do local, repleto de flores e árvores silvestres. A inquietação do herói, por causa da presença das moças no mesmo local em que se encontram os índios aimorés – inimigos da família Mariz – reafirma a redefinição do espaço de acordo com a origem daqueles que o povoam.

De modo semelhante, o romance de Alencar também conserva as personagens restritas a seus espaços “de origem”. A apresentação dos espaços se faz pelas palavras do narrador, auxiliado pelas personagens e por acontecimentos específicos, como o de “No banho”, por exemplo.

A descrição espacial também comunga com a idéia de que o romance de Alencar e o filme de Bengell – respectivamente produzidos nos séculos XIX e XX – consideram a imagem de um espaço exótico e pitoresco, concernente à escola de Thevet e Lery e da tarefa de construir a nacionalidade, para a composição de um retrato do Brasil oitocentista. É dentro desse espaço “exótico” e “pitoresco” que Bengell dispõe suas personagens como detentoras de vozes ideológicas divergentes, configurando um contexto em que encontramos, em

primeiro lugar, três pontos de vista opostos que convivem aparentemente em harmonia: 1) o de D. Antônio, que sublinha a importância do Brasil como império colonial; 2) o de Peri, que, apesar de apresentar-se como amigo da família Mariz, tem consciência da importância da manutenção de sua cultura; e 3) o ponto de vista de Loredano e seus comparsas, apoiado na idéia do Brasil como um lugar “onde se pode ir viver e fazer fortuna [...]” (ROUANET, 1991, p. 97). A partir disso, poderíamos inferir, então, que três posições ideológicas despontam no filme de Bengell: a do colonizador, a do habitante indígena e a do explorador. Essa questão será estudada a posteriori, neste trabalho.