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Em relação ao filme O Guarani, destacamos algumas características específicas da produção de Bengell. A história de Alencar, relançada em 1996, é estrelada por Marcio Garcia no papel de Peri109; Tatiana Issa, como Ceci; Glória Pires como a mestiça Isabel; Herson Capri

faz D. Antonio; Marco Ricca, D. Álvaro; Tamur Aimara representa D. Diogo; e Imara Reis faz D. Lauriana. Destacam-se ainda as representações de Tonico Pereira, José de Abreu e Cláudio Mamberti, nos papéis de Aires Gomes, Loredano e Mestre Nunes, respectivamente. A escolha dos atores, em sua maioria pertencentes ao elenco da Rede Globo de televisão, sugere que o envolvimento da TV com a produção cinematográfica faz do filme uma suposta extensão de suas produções mais típicas.

Dirigido e produzido por Bengell, com roteiro de José Joffily, direção de fotografia de Antônio Luiz Mendes, direção de arte e cenografia de Alexandre Meyer, o filme apresenta

109 É importante notar que o porte físico do ator traz à tona, no filme, características do herói de Alencar; forte,

alto e belo, compondo um perfil mais europeu que indígena e comprovando a retomada de alguns aspectos do romance no filme.

algumas paisagens do interior do Brasil associadas a pontos turísticos, como o convento da Penha, de Vila Velha, no Espírito Santo; o Forte do Imbui, na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro; e o Parque Nacional do Ubajara, no Ceará, como cenários da residência de D. Antônio de Mariz. Destaca-se, ainda, a boa caracterização dos índios, o que atribui mais verossimilhança à trama e confirma a intertextualidade entre o filme e o romance, trazendo à tona um dos elementos marcantes da idealização da nacionalidade proposta pelos autores românticos. A descrição dos indígenas apresenta sutil deslocamento de sentido, opondo-se à adjetivação do narrador de Alencar. A câmera mostra os índios inimigos de Peri e de D. Antônio como entidades culturais da nação brasileira e não mais como “selvagens”, “sem fé, sem lei e sem rei”.

Outro elemento interessante para a verossimilhança é o figurino de Kika Lopes, que torna bem acabadas as representações das imagens dos desbravadores do Brasil. É relevante destacar ainda o bom trabalho dos atores coadjuvantes, que, em perfeito estado catártico, parecem os verdadeiros desbravadores, que, sem nenhuma educação, supostamente serviram aos colonizadores da região, em 1600, o que contribui decisivamente para o desempenho positivo da trama e para a descrição de um cenário ideal do Brasil colonizado. Nesse sentido, a produtora recria uma certa identidade nacional pautada em imagens das florestas e do desbravador da terra recém-descoberta conforme os ideais de Alencar. “Para ele, a natureza não era apenas fonte do instinto da pátria, como sugeria Chateaubriand, mas o próprio elemento inspirador das qualidades que diferenciam seus habitantes e, nesse sentido, definem a particularidade nacional” (MARTINS, 2005, p. 246).

Merece destaque a escolha da composição do elenco, com as presenças de Marco Ricca no papel de Dom Álvaro e de Glória Pires como a mestiça Isabel. Sabemos que ambas as personagens são secundárias na trama de Alencar; entretanto, ganham relevância no filme de Bengell, o que se torna fato comum quando a força dramática das cenas contribui para o destaque de “estrelas globais”, como os atores em questão. Tal constatação também pode nos levar a uma ligeira ampliação do tema da nacionalidade, posto que Álvaro e Isabel, apesar de terem um final trágico, formam um par amoroso ideal para a representação da junção do indígena com o português.

A adaptação do romance para o audiovisual leva em conta os elementos componentes de uma dada nacionalidade brasileira como composta de descrições da floresta, dos habitantes, dos hábitos e da história narrada pelo autor romântico como a história da nação, mantendo claramente a diferença de linguagem relativa aos dois tipos de texto – filme e romance.

Em O Guarani de Bengell, entretanto, não encontramos todos os elementos da fórmula hollywoodiana capazes de dar ao filme maior suspense e emoção. O herói é um mártir do amor que nunca é abandonado por seus auxiliares, tendo o constante apoio de D. Álvaro, Ceci e D. Antônio. Se em alguns episódios do audiovisual é rejeitado por D. Lauriana ou pelos agregados, rejeição que também se dá no romance, os seus auxiliares estão sempre prontos para saírem em sua defesa, mostrando que sua conduta jamais poderá ser questionada. Mesmo na cena em que D. Antônio decide que Peri deve partir, o herói não é desprezado pelos coadjuvantes. Em nenhum momento da trama o espectador sente que ele corre o risco de perder sua amada ou de ser desprezado pelos seus entes queridos. Nesse sentido, a produção não segue o princípio hollywoodiano de partir do sofrimento para a conquista da glória. Peri foi sempre glorioso e invejado, o mais forte dos fortes, o herói dos indígenas e dos colonizadores. Sem dúvida, uma imagem ideal do indígena brasileiro trazida das páginas do romance para as telas do cinema, preservando o “olhar embelezador” do narrador de Alencar, com a super-estimação da força do herói e com a ampliação do auxílio de Ceci, D. Antônio e D. Álvaro.

Devemos citar ainda que a utilização de multiplots também distancia a narrativa de Bengell do estilo hollywoodiano de fazer ficção. Apesar de apresentar Ceci e Peri como o centro das ações, o filme propicia uma divisão quádrupla de acontecimentos associados ao movimento central da narrativa. O amor de Ceci e Peri; o amor de Álvaro e Isabel; a traição de Loredano; e a guerra contra os aimorés são fatos em destaque na seqüência narrativa do filme. A partir desse movimento, pensamos na possibilidade de relacionar os vários plots ligados a um elemento primordial que, a nosso ver, conduz o foco da ação: o espaço. Consideramos espaço da ficção audiovisual aquilo que consiste na fortaleza dos Mariz e na natureza que a circunda. Essa relação se faz possível porque é em virtude da exploração da terra que os colonizadores povoam o local. A partir da intromissão do homem branco na natureza se torna possível a realização de todos os acontecimentos, conforme podemos visualizar a seguir:

Amor de Isabel e Álvaro Ĺ

Amor de Ceci e Peri ĸ Colonização ĺ traição de Loredano Ļ

Tendo em vista esta sugestão de análise, pensamos que a fórmula do romance, apesar de ter Peri como herói, circunda os ideais de D. Antônio de Mariz como representante do colonizador da terra, enquanto no filme são enfocados os ideais indígenas e os do colonizador, o que poderia sugerir uma ampliação do conceito de nacionalidade idealizado pelos românticos e trabalhado diferentemente no romance e no filme. Tal fato também distancia o filme de Bengell da produção hollywoodiana padrão, posto que o narrador-câmera deixa ver os pontos de vista de heróis e de vilões, divididos entre os amigos e os inimigos de Peri.

Um outro elemento que também nos leva a crer que o filme foge em alguns aspectos do esquema hollywoodiano é a inexistência do suspense, que, a nosso ver, torna o filme uma produção pouco atraente para o público espectador. A presença constante de Peri, espreitando todos os passos de Cecília, é patente no audiovisual, e elimina a surpresa e a tensão alcançadas no folhetim de Alencar. Sem pretensões a subjugar o potencial do filme ou dos produtores, acreditamos que, nesse aspecto, a produção não atentou para a necessidade de seguir o formato holywoodiano, que contém os seguintes elementos: introdução; dados do equilíbrio inicial; ruptura; purgatório; encontro providencial/retorno; suspense; final feliz.

Apesar de nossas observações acerca do estilo do filme, vale dizer que a história do país narrada por Alencar foi bem aproveitada no filme de Bengell. O roteiro de Jofilly trouxe à tona toda a força dramática das personagens de Alencar, atribuindo heroísmo a alguns colonizadores e aos primeiros habitantes do Brasil. Tudo isso confirma que o tema e a fórmula do autor oitocentista continuam apropriados para os filmes romanescos e de aventura, tanto quanto na época da primeira adaptação de O Guarani, em 1916.