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O ESPAÇO DA ÁFRICA PARA OS EUA NO CONTEXTO DA GUERRA FRIA

Ao final dos anos 1950, o reconhecimento, por parte dos EUA, da importância do contexto das lutas por independência que marcava o continente africano, bem como do próprio continente nas Relações Internacionais – especialmente à luz das disputas que caracterizavam a Guerra Fria – levou à criação, em 1958, no âmbito do Departamento de Estado, de um gabinete específico para tratar dos assuntos do continente, o que representou um primeiro passo no processo de “reconhecimento oficial” da relevância da África para a política externa estadunidense (WHITEMAN; YATES, 2013). O objetivo dos EUA, nesse contexto, era garantir a influência do país sobre as novas nações, em reação à percepção de uma crescente presença soviética no continente. A lógica do conflito bipolar, nesse contexto, passou a ser o elemento orientador da política externa estadunidense para a África (SCHRAEDER, 1994).

A influência soviética – que se dava, pelo estabelecimento de programas de ajuda ao desenvolvimento para os países africanos, bem como pela cooperação nos âmbitos político, militar e estratégico –, nesse contexto, era o grande obstáculo percebido pelo governo estadunidense (LAWSON, 1988). Diante disso, duas abordagens distintas foram adotadas para combatê-lo. Por um lado, foi criada, em 1961, através da assinatura, pelo então Presidente John F. Kennedy, do Decreto de Assistência Externa, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), por meio da qual o país passou a apoiar projetos de desenvolvimento econômico em países africanos. Por outro, o governo estadunidense passou a investir em assistência ao setor de segurança dos seus aliados no continente. Assim, em 1960 a CIA criou uma divisão específica para tratar de assuntos africanos no âmbito da Diretoria Adjunta de Operações (DDO), cuja missão – desde sua criação, até o início dos anos 1990 – era levar adiante a luta contra a URSS e o comunismo.33 O Departamento de Defesa, por outro lado,

estabeleceu, em 1982, um escritório de assuntos africanos, cuja principal função era garantir a estabilidade e manutenção dos regimes pró-ocidentais no continente (SCHRAEDER, 1994).

Apesar das iniciativas institucionais mencionadas, a presença estadunidense no continente era bastante reduzida, assim como o nível de atenção dispensado às questões africanas, o que era lamentado por diversos especialistas, tanto do meio acadêmico, quanto membros do governo. Em parte isso se devia ao fato de, no contexto do conflito bipolar, a

33 Nesse contexto, em alguns casos pontuais o DDO foi responsável pelo estabelecimento de agentes locais para a

montagem de operações encobertas, mantendo relações próximas com as forças de segurança dos regimes aliados aos EUA (SCHRAEDER, 1994).

França ter assumido a função de gendarme34 do Ocidente no continente africano, ocupando-se

mais ativamente do combate mais direto à influência e à presença soviéticas – o que permitia aos EUA um envolvimento mais indireto e uma menor presença no continente (LELLOUCHE; MOISI, 1979; SCHRAEDER, 2000; WYSS, 2013).

O governo dos EUA, nesse contexto, ainda que mantivesse duas linhas mestras de interação, uma ligada às questões econômicas e de desenvolvimento, e outra ligada às questões securitárias, atribuía ênfase bastante mais significativa à segunda. A preocupação, em termos de segurança, contudo, não estava relacionada a elementos de governança ou direitos humanos – nem mesmo com a paz e a estabilidade –, senão com a garantia de que os governos aliados não cairiam sob a esfera de influência soviética – o que tornaria legítimo (e aceitável) o uso de práticas repressivas e não-democráticas (WATTS et al, 2018; JONES et al, 2006). Nesse sentido, como destaca Elisabeth Schmidt (2013, p.197, tradução nossa),

Durante as quatro décadas da competição entre EUA e os soviéticos, nacionalistas anticolonialistas, ativistas pró-democracia e questões de boa governança e desenvolvimento foram ignorados ou opostos, caso interferissem nos interesses estratégicos dos EUA. Nenhum regime foi considerado corrupto ou repressivo demais para o apoio americano, desde que se aliasse aos Estados Unidos na Guerra Fria.

É interessante notar que essa abordagem essencialmente securitária aplicada às relações com o continente africano se manteve mesmo durante o governo de Jimmy Carter, que aumentou significativamente a importância atribuída às questões de direitos humanos na política externa dos EUA. A manutenção da assistência aos aliados africanos na tentativa de se contrapor à influência e à presença soviéticas, especialmente por meio da venda de armas, se deu a despeito da situação problemática, em termos de direitos humanos, de diversos dos parceiros do continente (ARLINGHAUS, 1984).

Ao longo de grande parte do período, o terrorismo no continente era associado, pelo governo dos EUA, aos grupos apoiados pela URSS, o que se inseria na lógica de macrossecuritização da Guerra Fria, identificando que o uso da violência em eventos caracterizados como terroristas eram produto da ameaça maior, o comunismo.35 Nesse sentido,

34 Além de manter tropas e equipamentos militares em diversos países da África – especialmente em suas ex-

colônias –, a França foi responsável, ao longo da Guerra Fria, por realizar diversas intervenções militares no continente, sempre garantindo apoio aos aliados ocidentais (LELLOUCHE; MOISI, 1979). A atuação francesa, nesse sentido, respondia de forma direta aos interesses de suas elites e de algumas elites africanas – a chamada

Françafrique –, mas acabava contribuindo para os objetivos ocidentais – especialmente dos EUA – no contexto

do conflito bipolar (VERSCHAVE, 2004).

35 Nesse sentido, por exemplo, o governo dos EUA via no governo da África do Sul, sob o regime do apartheid,

um importante aliado na luta contra o comunismo, identificando os grupos que lutavam contra o regime segregacionista como subversivos e terroristas (SCHRAEDER, 1994).

ainda que houvesse um reconhecimento da existência de atos terroristas no continente – ou originados a partir dele –, este era um fenômeno marginal e de importância reduzida, não sendo um elemento central para as relações dos EUA com o continente. O caso da Líbia, durante o governo Reagan é emblemático nesse sentido. Ao longo da década de 1980, diversos eventos terroristas foram associados, pelo governo dos EUA, ao governo líbio (o atentado à bomba em uma discoteca em Berlim e o atentado a uma aeronave da Pan Am, em Lockerbie, por exemplo), sendo respondidos por meio de retaliações (militares, políticas e econômicas), inclusive com a imposição de sanções ao país africano pela ONU (SCHMIDT, 2013). A despeito disso, e da inclusão da Líbia em uma lista de países patrocinadores do terrorismo, a questão não se tornou um elemento determinante nas relações estadunidenses com o restante do continente.

4.2 A ÁFRICA PÓS-GUERRA FRIA PARA OS EUA: SELETIVIDADE E FALTA DE