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o espaço infinito, imutável e homogéneo da perspectiva, e o espaço psicofisiológico da visão

PersPectiva, a rePresentação clássica como herança do renascimento

2.3 o espaço infinito, imutável e homogéneo da perspectiva, e o espaço psicofisiológico da visão

a visão perspéctica do espaço, e não só a mera construção perspéctica, foi contestada, segundo Panofsky49, de dois lados bastantes diferentes: Platão

condenou-a, ainda nos seus modestos inícios, por distorcer as “verdadeiras proporções” das coisas, e substituir a realidade e a nomos (lei) por aparência subjectiva e arbitrariedade; enquanto o pensamento estético moderno a acusou, ao contrário, de ser a ferramenta de um racionalismo limitado e limitante. Para garantir um espaço totalmente racional, isto é, infinito, imutável e homogéneo, a perspectiva linear assenta em duas suposições tácitas, mas essenciais: a primeira, que vemos com um único e imóvel olho, e a segunda, que a secção transversal plana da pirâmide visual pode transmitir uma adequada reprodução da nossa imagem óptica. contudo estas duas premissas são

abstracções bastante distantes da realidade, se por “realidade” entendermos a nossa visão óptica, já que a perspectiva parece estar “menos preocupada com a racionalização da visão, do que com a racionalização da representação.”50

esta estrutura de um espaço infinito, imutável e homogéneo, em suma, um espaço puramente matemático, é bastante diferente da estrutura do espaço que Panofsky define como psicofisiológico. Para cassirer a percepção não conhece o conceito de infinito. ela está desde o primeiro momento confinada dentro de certos limites espaciais impostos pela nossa faculdade de percepção, e em coerência com o espaço perceptual não podemos falar de homogeneidade, tal

49 Ibidem, 71

como não podemos falar de infinito:

“o espaço homogéneo nunca é o espaço existente, mas um espaço produzido por construção; e de facto o conceito geométrico de homogeneidade pode ser expresso pelo postulado de que a partir de cada ponto no espaço será possível desenhar figuras semelhantes em todas as direcções e magnitudes. em nenhum lugar do espaço da percepção imediata este postulado pode ser cumprido. não há aqui homogeneidade rigorosa na posição e direcção; cada lugar tem o seu próprio modo e o seu próprio valor. o espaço visual e o espaço táctico [Tastraum] são ambos anisotrópicos e heterogéneos, em contraste com o espaço métrico da geometria euclidiana.”

[cassirer, 1955: 83]

a construção perspéctica exacta é um sistema de abstracção a partir da estrutura do espaço psicofisiológico, transformando este em espaço

matemático: “é a objectivação do subjectivo.”51 contudo, não vemos apenas com

um só olho fixo, mas com dois olhos em constante movimento, o que resulta num campo de visão esferoidal. a perspectiva “reduz aquele que vê a uma espécie de ciclope, e obriga o olho a manter-se num ponto fixo e indivisível, em outras palavras, obriga a adoptar uma postura que nada tem em comum com as condições efectivas da percepção.”52 neste sentido, Frade define a perspectiva

como um “um método de desumanização parcial do desenho na pintura”, prosseguindo um “processo de ordenação matemática do visível subordinado, no seu desenvolvimento, a uma representação matemática da ordem. É a partir de então que o olho e a representação são colocados sob a alçada de leis que se preocupam quase nada com quem vê e desprezam, igualmente, a natureza

51 Panofsky, 1991 [1927]: 66 52 damisch, 1994 [1987]: 35

daquilo que é visto.”53 numa tentativa de ilustrar o que o olho vê, ernst mach

desenhou o campo visual monocular (fig. 8), representando os limites do campo visual, supostamente desfocados. mas, segundo Wittgenstein, não faz sentido para o desenho ou para a pintura usarem os meios ao seu dispor para tentar reencenar uma imagem do modo como vemos, uma vez que a imagem criada será sempre ela própria, para a visão, vista como qualquer objecto do mundo visível, e, como tal, será sempre governada pelas regras da visão. “não se pode traduzir a imprecisão do fenómeno da visão, numa imprecisão no desenho. o espaço visual não é euclidiano.”54 Segundo damisch, se a perspectiva está ligada

à visão, esta relação não está na capacidade da perspectiva informar ou propor um modelo à visão: “a perspectiva não imita a visão, mais do que a pintura imita o espaço. Foi concebida como um meio de representação visual, e tem significado apenas na medida em que participa na ordem do visível, e como tal, torna-se atractiva para o olho.”55 e como meio de representação do visual,

a perspectiva, para Panofsky, sujeita o fenómeno artístico a regras estáveis e matematicamente exactas. embora, por outro lado, este fenómeno dependa do ser humano, uma vez que estas regras se têm de relacionar com as condições físicas e psicológicas da visão, e a forma como tomam efeito é determinada pela livre escolha de um ponto de vista subjectivo:

“a história da perspectiva pode ser entendida com igual justiça como um triunfo do sentido de distanciamento e objectivação do real; bem como a consolidação e sistematização do mundo exterior, como uma extensão do domínio do eu.” [Panofsky, 1991 [1927]: 67]

53 Frade, 1992: 66

54 Wittgenstein, Ludwig. Philosophical remarks, chicago: university of chicago Press, 1980 [1964]: 42 55 damisch, 1994 [1987]: 45

isto terá levantado um confronto constante na forma como colocar este método ambivalente em uso. deveria a construção perspéctica de um quadro ser orientada para o local onde o observador se encontrava ou, por outro lado, deveria idealmente o observador adaptar-se e reposicionar-se em relação à configuração perspéctica da pintura? Para Panofsky, a resposta a esta questão só se obtém envolvendo as grandes antíteses como: livre arbítrio versus norma, individualismo versus colectivismo, irracional versus racional.

Foram estes problemas da perspectiva moderna que levaram diferentes épocas, nações e indivíduos a tomar posições enfatizadas relativamente a tais assuntos. a perspectiva actuava não só de diferentes formas a nível geográfico, com repercussões no âmbito do visual,como também se estendia ao nível do discurso e das ideias:

“na charneira onde natural e artifício, arte e ciência, se confrontam, a questão do estatuto e funcionamento do paradigma da perspectiva permanece aberta, assim como a questão da natureza do seu efeito sobre a prática de pintores, geômetras, e mesmo sobre o discurso de filósofos.”

[damisch, 1994 [1987]: 4]

2.4 a influência da perspectiva no discurso ocidental e as diferentes