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2. O ESPAÇO PÚBLICO URBANO E A ARTE VISUAL CONTEMPORÂNEA

2.2 O espaço público urbano

Ao longo do desenvolvimento do período moderno no ocidente, considerando a historia europeia como eixo central, temos a constituição de uma sociedade industrial e, consequentemente, o deslocamento de trabalhadores da zona rural para as cidades. Estes trabalhadores deixam para trás suas tradições culturais, passando a constituir o espaço da cidade como mundo humano. Assim, em bairros e locais de trabalho, os operários e suas famílias foram criando uma cultura e uma arte próprias – a arte popular. Por outro lado, passaram a fazer parte, cada vez mais, da grande massa de consumidores dos produtos industriais. Estes produtos se caracterizaram pela reprodução em larga escala de versões simplificadas e das criações da cultura e da arte consideradas de elite. Desta forma, a divisão de classes sociais que se organiza a partir do desenvolvimento das cidades corresponde a uma forma de se organizar o gosto. A reprodução simplificada das obras eruditas, bem como a divulgação da arte popular, deram origem ao que viria a ser conhecido como cultura de massas. Para Hannah Arendt, a sociedade de massa se depara com o imenso apetite da multidão e usa toda a cultura passada e presente, alterando este material para que ele se torne propício ao consumo fácil.

As cidades crescem e passam a ser pensadas a partir de um modelo ideal de urbanidade, conceito que vai se firmando associado a concepções racionalistas e cientificistas presentes no modernismo 19. Enfim, elas se transformam em grandes centros urbanos que são, ao mesmo tempo, centros da cultura. O geógrafo Yi-Fu Tuan considera que uma cidade concentra significados e possui símbolos visíveis. Relativamente à cidade, Tuan considera que:

A cidade tradicional simboliza primeiro a ordem transcendental e feita pelo homem em oposição às forças caóticas de natureza terrena e infernal. Segundo, representava uma comunidade ideal. (TUAN, 2013, p.211).

Segundo Henri Lefebvre, a cidade assume o papel de grande laboratório do homem, substituindo a Terra, que sempre ocupou este lugar. Assim, o fenômeno urbano desafia a reflexão teórica, a ação prática e a imaginação. Além disso, a problemática urbana concentra a questão relativa ao processo de industrialização:

Pode-se dizer que a sociedade industrial acarreta a urbanização. Essa constatação e essa fórmula tornaram-se banalidades. Todavia, é menos banal perguntar se as consequências do processo, ou seja, a urbanização, não se tornam rapidamente mais importantes que sua causa inicial: a industrialização. (LEFEBVRE, 2016, p.76).

Para Lefebvre, a sociedade urbana é o sentido e a finalidade da industrialização. E neste contexto, a arte “dirige-se para um novo destino, o de servir à sociedade urbana e à vida cotidiana nesta sociedade”. (LEFEBVRE, 2001, p.7). Segundo o autor, as questões relativas à cidade não assumiram plenamente sua importância política e significado ideológico. Para abordar o problema urbano, o autor parte do processo de industrialização que “é motor das transformações na sociedade”. (LEFEBVRE, 2001, p.11). Mas ele observa que, embora a industrialização funcione como um ponto de partida para pensar sobre nossa época, a cidade preexiste a ela.

19 Segundo Edward Relph, “os projetos modernistas, em suas formas mais triviais e uniformes, eram

especialmente convenientes para corporações multinacionais porque tinham aparência de progresso e eram ao mesmo tempo baratos; as logomarcas poderiam distinguir os edifícios das diferentes empresas e nenhuma outra forma de identificação era necessária. Como resultado, os anos de 1950 criaram paisagens sem-lugar, nas quais as diferenças foram relacionadas às marcas, não às localidades”. (RELPH, 2014, p.20).

A partir das concepções de Lefebvre podemos definir sociedade urbana como a realidade social que está à nossa volta, em meio à crescente preocupação com a temática do urbano. A partir de uma análise das cidades antigas no que concerne a suas formas de produção e organização em classes, o autor observa que as cidades sobreviveram ao feudalismo e começaram a acumular riqueza obtida pela usura e pelo comércio. Neste contexto, não é a agricultura que prospera, mas o artesanato. As cidades passam a ser: “centros de vida social e política onde se acumulam não apenas as riquezas como também os conhecimentos, as técnicas e as obras (obras de arte, monumentos)”. (LEFEBVRE, 2001, p.12). E, para ele, esta obra caracteriza-se pelo valor de uso, sendo que o uso principal da cidade é a festa:

As cidades medievais, no apogeu de seu desenvolvimento, centralizam as riquezas; os grupos dirigentes investem improdutivamente uma grande parte dessas riquezas na cidade que dominam. Ao mesmo tempo, o capitalismo comercial e bancário já tornou móvel a riqueza e já constituiu circuitos de trocas, redes que permitem as transferências de dinheiro. Quando a industrialização vai começar, com a preeminência da burguesia específica (os “empresários”) a riqueza já deixou de ser principalmente imobiliária. (LEFEBVRE, 2001, p.12).

Assim, o autor observa que surgem as redes de cidades sobre as quais o Estado, enquanto poder centralizado, se levanta e entre as quais a capital predomina. Estas redes foram, então, constituídas pelo conjunto da “sociedade”, que compreendia a cidade, o campo e as instituições que regulam suas relações. Entre as cidades componentes da rede passou a ocorrer uma certa divisão de trabalho técnica, política e social. Lefebvre afirma que este quadro não chegou a se instalar como sistema urbano. Podemos dizer, a partir do autor, que a cidade passa a ser símbolo de pertencimento de todas as classes e palco do conflito de classes. Ele observa que, neste contexto, os termos “sociedade”, “Estado” e “cidade” se distinguem. Assim, “os conflitos entre os poderosos e os oprimidos não impedem nem o apego à Cidade, nem a contribuição ativa para a beleza da obra”. (LEFEBVRE, 2001, p.13). Segundo Lefebvre, este contexto reforça a tese do valor de uso relativamente à cidade e à realidade urbana:

O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios de valor de uso, embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso. (LEFEBVRE, 2001, p.14).

Podemos então dizer com Lefebvre que o conflito entre valor de uso e valor de troca equivale ao conflito entre território dominado e necessidade de organização deste território dominado pela cidade. Esta dominação se traduz em proteção constituída pelas corporações, que se relacionam como um conjunto orgânico: “o sistema corporativo regulamenta a divisão dos atos e das atividades no espaço urbano (ruas e bairros) e no tempo urbano (honorários, festas)”. (LEFEBVRE, 2001, p.14).