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O espaço urbano e os fenômenos estéticos da Arte Visual Contemporânea

2. O ESPAÇO PÚBLICO URBANO E A ARTE VISUAL CONTEMPORÂNEA

2.4 O espaço urbano e os fenômenos estéticos da Arte Visual Contemporânea

A arte está fortemente associada ao espírito de sua época e ,muito embora pareça desvinculada de parâmetros, bem como norteada pela livre expressão, sua liberdade surge como consequência de um comprometimento com os valores que regem a época na qual está inscrita, tanto para afirmá-los quanto para questioná-los. As expressões artísticas associadas à Arte Contemporânea provocam intensa discussão relativamente a temas

desconsiderados pela tradição da arte. Assim, a intimidade do cotidiano, os sentidos que se dão pela territorialidade, a relação entre público e privado, dentre outros temas, afirmaram-se como problemas a serem pesquisados por propostas artísticas que privilegiam a experiência e o processo.

O espaço público aparece, neste contexto, como conteúdo, forma e suporte para estas expressões, exatamente em uma época em que passa a ser questionado como espaço de afirmação política. Saber o que se configura exatamente como espaço público e de que forma esse potencial espaço se diferencia do âmbito privado passou a ser de interesse da arte também. As cidades são construídas, modificadas e ocupadas a partir de uma relação de forças. E, neste contexto, intervenções e propostas artísticas apontam para outras possibilidades de arranjo urbano, tanto no que concerne ao construído, quanto ao que está relacionado a formas de ocupação dos espaços comuns, que geralmente são monitorados em função de uma organização que se dá a partir de princípios estéticos20. As intervenções urbanas parecem lidar com signos que promovem uma outra possibilidade de leitura acerca do que é vivido em comum no espaço da rua. Desta forma, podemos pensar em outros arranjos para a cidade.

Não só o homem, mas todo ser vivente se empenha em criar no espaço condições de existência para a continuidade da vida e da espécie. Porém, o homem parece ser o único a fazer da linguagem um processo de ressignificação de suas relações com o meio e com o outro. Neste sentido, a constituição de significados que se organizam por vivências e sentimentos impressos a partir do espaço habitado pode ser visto como próprio ao ser humano. Assim, iremos considerar o espaço urbano como categoria estética, ou seja, como suporte no qual as identidades se relacionam e se afirmam, evidenciando diferenças no que é vivido em comum.

Falando especificamente da arte que se realiza em espaços públicos, destacamos que ocorre para além dos aparelhos culturais constituídos em função da exposição de obras artísticas, tais como galerias e museus. Assim, a arte urbana desafia o poder de validação de espaços próprios ao mercado de arte . Suas propostas são pensadas para

20 As cidades modernas foram concebidas a partir de formas cujos princípios remetem à ordem e ao

equilíbrio, independentemente das condições naturais do espaço em que se encontram instaladas e organizadas por setores e classes. E esta ordem se estrutura a partir de princípios estéticos.

espaços nos quais as relações humanas ocorrem e podem ser chamadas de transgressoras ao instaurar lugares a partir de vivências comuns.

Vera Pallamin21 afirma que a arte urbana “é uma prática social relacionada a modos de apropriação do espaço urbano” (PALLAMIN, 2000, p.45), pois suas propostas remetem a significados sociais através de temas relativos à cultura e à política.

Perpassar a topologia simbólica da arte urbana é adentrar a cidade a partir de planos do imaginário de seus habitantes, incorporando-os, por princípio, à compreensão da sua materialidade. Deste modo, as referâncias urbanas são enfatizadas em sua dimensão qualitativa, abrindo-se à ambiguidade de seus sentidos. (PALLAMIN, 2000, p.24).

Pallamin observa que a concretização da arte urbana no espaço público ocorre por conflitos, contradições e interdições, que se dão entre grupos e espaços, bem como pela interpretação do cotidiano. Neste contexto, as criações perpassam o coletivo e se diferenciam de acordo com os arranjos sociais. A autora destaca questões como territorialidade e cotidiano. Para ela, territorialidade se refere a uma subjetivação relativa ao espaço, expressa tanto individualmente quanto através da coletividade. A territorialidade que se forma no espaço urbano ocorre nas relações qualitativamente, com abrangência material e imaterial: “Os significados de um lugar se alteram em decorrência das ações sociais que sobre ele se exercem”. (PALLAMIN, 2000, p.32). Assim, a arte, quando no espaço público, participa da sua construção, pois pode desestabilizar significados consolidados nestes espaços: “Enquanto ‘espaço de representação’, a obra de arte é também um agente na produção do espaço, adentrando-se nas contradições e conflitos aí presentes”. (PALLAMIN, 2000, p.45).

Especificamente com relação à cidade, Vera Pallamin destaca quatro tendências nos discursos que relacionam arte e cidade: a cidade como conteúdo da proposta artística, a arte na cidade, a cidade como obra de arte e o ambiente urbano como espaço de influência para a proposta artística.

A superação destas posições dá-se na compreensão de que a arte é social em primeira instância e sua significação social é dada pelo trabalho da obra,

21 Vera Pallamin é arquiteta com formação também em filosofia. Seus estudos sobre arte urbana e

entendido como sua historicidade, sua recepção, seus modos de presença/ausência, visibilidade/invisibilidade em público. (PALLAMIN, 2000, p.48-49).

Pallamin destaca a importância do cotidiano na concretização de múltiplos tempos sociais. Ela afirma que o tempo do cotidiano é tramado por "redes de lealdade e sociabilidade" (PALLAMIN, 2000, p,29), que possibilitam o compartilhamento de hábitos, mas também o enfrentamento de convenções. Na noção de cotidiano, a autora destaca a relação entre ações culturais, práticas sociais e o espaço onde ocorrem. Neste contexto, o espaço é visto por ela como uma dimensão constituinte, pois a cultura "é socialmente situada e espacialmente vivida" (PALLAMIN, 2000, p.29). A intervenção artística no espaço público, então, ocorre em articulação com esta trama.

Fora dos espaços institucionais, a substituição do espaço de passagem pelo lugar das significações modifica a relação entre espaço e tempo e torna necessária a diferenciação entre as noções de espaço e lugar. Assim, esta outra forma de vivenciar e caracterizar a arte aponta para a possibilidade de uma ressignificação do espaço público a partir da evidência de lugares vividos, oferecendo novas possibilidades de pensar e provocando possíveis posicionamentos. Mas, como será que a arte é percebida fora do contexto de um público seleto e especializado?

Segundo Pallamin, o público da arte urbana não é dado a priori, ele se constitui pela obra, mas não há garantias de seu envolvimento. Neste contexto, aspectos da memória social tornam-se importantes. Para a autora, o trabalho com a memória social envolve uma reconstituição de referências anteriores. Anne Cauquelin observa que o divórcio entre a Arte Contemporânea e seu público promoveu estudos em diversas áreas que podem ser classificadas em três tipos: a noção de modernidade, o mercado de arte e a recepção. No primeiro caso, temos as questões relacionadas à produção do artista, no segundo à mediação institucional necessária à arte e por fim ao público a quem a arte se destina. Considerando a produção do artista, as mudanças apontam para uma discordância acerca de uma continuidade ou ruptura com relação à Arte Moderna. Se, no entanto, o foco recair sobre o sistema da arte, temos, dentre outras, a presença do crítico juiz do gosto, intermediário entre o artista e o público, que conserva em parte os valores próprios à tradição do universo artístico. Por fim, ao considerar o público, que tanto pode ser aquele que consome economicamente quanto o que consome pelo olhar, Anne Cauquelin chama a atenção para a existência de um “não-público” que corresponde à massa móvel

e que deveria sustentar o mecanismo do sistema da arte, ao funcionar como medida para a formação da imagem do artista e sentido para as vanguardas. Esse “não-público” se volta para a Arte Moderna enquanto modelo e se recusa a levar a sério as obras de vanguarda: “A disseminação, a explosão em múltiplas galerias e a abundância de manifestações desencorajam em vez de aumentar o público”. (CAUQUELIN, 2005, p.51).

Para Cauquelin, a apreensão da arte como contemporânea exige o estabelecimento de certos critérios que vão além do conteúdo das obras e “os trabalhos que tentam justificar as obras de artistas contemporâneos são obrigados a buscar o que poderia torná- los legíveis fora da esfera artística” (CAUQUELIN, 2005, p.11-12). Assim, as questões que envolvem as artes visuais contemporâneas vão além daquilo que se convencionou chamar de obra de arte. Será que podemos mesmo dizer que esta ultrapassagem redimensiona a relação entre espaço e tempo a partir da vivência estética? A observação de algumas práticas artísticas contemporâneas apontam para uma resposta afirmativa.