SUMÁRIO
GRANDES PROJETOS DE INVESTIMENTO HIDRELÉTRICOS: DEFINIÇÕES SOCIOESPACIAIS
1.2 Espaço, pessoas, território e GPIH
Para auxiliar na compreensão do “outro” que nasce do desencontro de interesses no encontro entre os GPI Hidrelétricos com as populações locais, cabe realizar algumas
reflexões que auxiliaram tratar a polêmica questão do que venha a ser a figura do atingido,
afetado, ou ainda do que seja o impacto e o efeito da construção de barragens.
Segundo Vainer (2011) a noção de “atingido” não pode ser meramente técnica- financeira-econômica, mas sobretudo de reconhecimento de direitos, sejam eles de
ressarcimento, indenização, reabilitação ou reparação pecuniária. Por isso o conceito de
atingido tem como gênese uma disputa. Como as disputas são resultados de jogos de
interesses, a noção de atingido é algo que se relaciona à noção de tempo e de espaço,
relacionando-se então a contextos políticos e culturais conflituosos que envolvem os sujeitos
onde se instala um projeto hidrelétrico. Assim, pode-se afirmar que a noção de atingido vem
se modificando rapidamente na mesma proporção em que se discute e se avança nas
questões de direitos humanos tanto no Brasil quanto no mundo e por isso a necessidade de
pesquisas que atualizem as áreas caracterizadas por conflitos dessa natureza.
Dessa forma, a noção de atingido tem incluído, nos dias de hoje, várias dimensões
como as da política, do trabalho, da sociedade, da cultura e do meio ambiente. Nesta
pesquisa que busca identificar o tipo de sustentabilidade que é ou não construída no
como será utilizado o conceito de atingido, inclusive tentando ampliá-lo e esclarecê-lo no
âmbito desta investigação. Para isso, torna-se necessária uma revisão de discussões
importantes que mostram a trajetória do conceito de atingido que até hoje é um desafio a
ser considerado e esclarecido nos ambientes de grandes projetos. O desafio se instala
porque falar de atingidos significa tratar da legitimação de direitos de pessoas e por isso, a
escolha de dialogar com os trabalhos de Vainer(2011) e Martins (1983) quando ressaltam a
importância de escrever a história das vozes silenciadas dos atingidos uma vez que eles,
submetidos à dominação e, por conseguinte, aos conflitos, fazem emergir espaços para a
legitimação de seus direitos. Pode-se mesmo dizer que o atingido de hoje extrapola a
condição humana e já atenta sobre a ética e o direito humano, sobre o direito dos outros
animais e até dos vegetais.
Ao longo dos anos, particularmente a partir da década de 1950, a estratégia utilizada
na opção pela construção de GPI Hidrelétricos, foi a territorial-patrimonialista, ou seja, o
empreendedor adquire o domínio do espaço de seu interesse ou, de acordo com as leis
brasileiras, se o uso da terra for de interesse público, faz-se a desapropriação e indeniza-se
os proprietários de áreas inundadas. Foi em função dessa dinâmica de tratamento de
território adquirido ou desapropriado, que surgiram questionamentos sobre a extensão do
impacto da grande obra sobre o lugar específico onde era erigida. Por isso, o impacto da
construção do GPI começou a ser visto como algo polêmico, pois dependendo da compra de
terras, de desapropriações e indenizações, implicaria em custos do negócio de energia
elétrica a ser consolidado.
Portanto, por longo período, pode-se afirmar que até hoje, o único problema para o
empreendedor na construção do GPI Hidrelétrico era patrimonial e fundiário. Para os GPI,
quaisquer que sejam as suas ocupações ou “desocupações” simplesmente não eram, e em muitas circunstâncias ainda não são considerados por parte do empreendedor. Vainer
(2011) diz que essa história é tão cultural que até hoje muitos GPI remetem o problema para
os departamentos empresariais que cuidam do patrimônio imobiliário, ou seja, o problema
do impacto, do atingido, do efeito e do afetado, é uma peça econômica mais do que social,
cultural e ambiental. Por isso assistimos com frequência as conduções de conflitos que
envolvem os GPI com os atingidos em que se opta por tratar os espaços de interesse apenas
como patrimônio territorial. Ou seja, reduz-se a possibilidade de identificar o que seja
impacto da obra e muito menos o que seja atingido, exceto por força da legislação atual. Na
prática o que se nota são relações empresariais que desconsideram as pessoas, as culturas,
os outros seres vivos vegetais ou animais. Enfim, se a prática é assim, a solução de conflitos
sobre a propriedade acaba privilegiando soluções benéficas ao empreendedor. Mesmo
quando o pequeno proprietário ou ocupante de terras com algum tipo de benfeitoria
acionam legalmente os GPI, via de regra, o poder econômico acaba vencendo legalmente a
ação jurídica e não indeniza de forma justa, aqueles que são atingidos, impactados. Na
medida em que ocorreram e se ampliaram as lutas sociais por direitos humanos e por
democratização no Brasil no final da década de 1970 e início da década de 1980, observa-se
que houve reflexo na elaboração de legislação que tratava dos conflitos envolvendo os GPI e,
particularmente a partir da Constituição de 1988, as Leis relativas aos impactos ambientais
reforçaram e melhoraram dispositivos de proteção e de direito não só do ambiente físico,
como também do direito social, na perspectiva de se garantir direitos aos menos
empoderados: os trabalhadores urbanos, rurais, indígenas, enfim os seguimentos
Conclui-se, assim, que na concepção territorial-patrimonialista, a população é vista
como obstáculo a ser removido para viabilizar o empreendimento. Em função dos custos e
de resistências das populações atingidas pelo impacto da obra de um GPI, surgiu mais uma
forma de tratar a questão, denominada concepção hídrica. Nela o que identifica o atingido é
a pessoa que tem as suas terras inundadas, sejam elas proprietárias ou não proprietárias, o
que é um avanço em relação à concepção territorial-patrimonialista. Na concepção hídrica
os não proprietários, na forma de trabalhadores rurais, de meeiros, posseiros, etc., são
considerados desde que moradores na área restrita à inundação e que, nesse caso, são
pessoas deslocadas compulsoriamente de seus lugares, de suas histórias de vida, para outros
lugares.
Entretanto, segundo Vainer,
ainda hoje, porém, em várias circunstâncias, assiste-se à permanência das concepções e estratégias territoriais-patrimonialistas, que buscam circunscrever o problema a duas e exclusivas dimensões: o território atingido é concebido como sendo a área a ser inundada e a população atingida é constituída pelos proprietários fundiários da área a ser inundada (VAINER, 2011, p.6).
Vê-se, assim, que a falta de humanização dos GPI privilegiando o interesse
econômico, o atingido e o impacto sobre as áreas e espaços que efetivamente são
inundados, ficam carentes de humanidade e por isso merecem a atenção de pesquisas que
identifiquem o tipo de tratamento que o empreendedor dá a essa concepção de impacto e
atingido.
Para Vainer (2011) as concepções territorial-patrimonialista e hídrica são muito
conservadoras por tenderem a tratar a questão do impacto e do atingido apenas na forma
de custos e pagamentos por perdas de propriedade e/ou de trabalho. Em movimento de
crítica a essas duas concepções no meio acadêmico, por demanda de setores da sociedade
identificam que os GPI Hidrelétricos causam impactos espaciais e temporais e por isso
instauram-se novas dinâmicas socioeconômicas, novos grupos sociais emergem na região de
implantação do projeto, novos interesses e problemas se manifestam. Esse raciocínio vai ao
encontro do pensamento de Martins em relação aos sujeitos históricos deflagradores de
interferência nos projetos econômicos do poder constituído, mas que em movimento
dialético também foi deflagrado pelo próprio capital. É justamente nessa concepção de
atingido e de impacto que se abrem espaços de diálogos com categorias de análise preciosas
para a Geografia para discutir como se constitui o território e suas territorialidades, como se
dão as desterritorializações e reterritorializações nas áreas de conflitos de interesses
provocados pelos GPI hidrelétricos, o que será explicitado mais adiante neste trabalho.
Nesse sentido, a concepção espaço-temporal sobre o conceito de atingido e de
impacto dos GPI Hidrelétricos introduz uma nova possibilidade para tratar a questão, que
pode ser mais justa e democrática, uma vez que seu foco não se restringe apenas às perdas
materiais, mas também às perdas imateriais, o que é difícil mensurar e valorar em moeda,
mas possibilita colocar em mesas de negociação aquilo que é impregnado de valor seja ele
material, afetivo, cultural.
Diante desse histórico de amadurecimento do conceito de atingido, Vainer (2011)
considera o posicionamento do International Financial Corporation (IFC) (2001), órgão do
Banco Mundial (BIRD), grande financiador de GPI, que pode configurar uma definição para o
conceito de atingido:
A contribuição mais rica é, evidentemente, aquela trazida pelo Manual da IFC. Em todo o caso, parece consensual entre as agências multilaterais que a noção de atingido remete ao conjunto de processos econômicos e sociais deflagrados pelo empreendimento e que possam vir a ter efeitos perversos sobre os meios e modos de vida da população. Não existe, em nenhum caso, qualquer definição a priori de circunscrições territoriais afetadas ou de influência, cabendo aos estudos e ao diálogo com as populações
interessadas a identificação dos impactos e daqueles que são negativamente atingidos (VAINER, Apud IFC, 2011, p.15).
Nota-se que para um órgão multilateral como o BIRD/IFC, a tentativa de definir o
atingido é bastante ousada e abrem-se espaços para fazer justiça aos atingidos por GPI, uma
vez que a partir de órgãos como esses, bem como os da ONU, a exemplo da World
Commission on Dams (WCD) (Comissão Mundial de Barragens), são boas as chances de se influenciar grandes empreendedores privados e públicos em suas relações e tratamentos
com os atingidos. Isso porque, o empréstimo de recursos financeiros é condicionado ao
atendimento das exigências dos referidos órgãos. De fundo o que preocupa esses órgãos são
os reflexos dos deslocamentos, sejam eles físicos ou de modos de vida, das pessoas atingidas
pelos GPI.
Mediante essa crescente presença de órgãos multilaterais com atuação global, bem
como a tendência da concentração de negócios de GPI nas mãos de grandes corporações,
como as citadas no Consórcio que construiu as barragens analisadas por esta pesquisa, é
possível indagar e necessário explicitar quais as relações do conceito de atingido e de
impacto, às noções de afetado e de efeitos socioespaciais. Estariam os conceitos de atingido
e de impacto limitados para as novas tendências conceituais e regulatórias para se tratar os
deslocamentos de pessoas, com a construção de GPI?
O impacto do GPI Hidrelétrico em um espaço gera um local atingido com todos os
seus componentes bióticos, físicos e sociais. A partir desse ponto de impacto/atingido, inicia-
se uma sequência de efeitos, que afetarão uma área, um território. Nesse sentido, falar de
efeito de um GPI Hidrelétrico, significa que ele se dá desde o ponto específico de sua
construção onde os efeitos são sentidos com mais força e que por meio da propagação
afetará uma área bem mais ampla do que o ponto central de seu impacto. Sobre o afetar, a
alguma doença por exemplo. Pode parecer estranho, mas pensando nos problemas e
conflitos oriundos de um GPI Hidrelétrico, faz sentido fazer referência aos efeitos e aos
afetados pelo empreendimento, que de fato traz o entendimento de que se “adoece” relações, realidades físicas, econômicas, culturais, identitárias, dentre outras “enfermidades territoriais”. Portanto, a intenção de se avaliar e analisar os efeitos socioespaciais relacionados às políticas de sustentabilidade do complexo hidrelétrico de Amador Aguiar I e
II é lidar com escalas de análise que não se restringem apenas ao conceito de impacto e
atingido, como também, os relacionados a ele, ou seja, o que gera efeito e afeta pessoas e
espaços mais distantes do ponto de impacto. Esse raciocínio se justifica uma vez que a
própria WCD, valoriza e orienta os empreendedores do setor elétrico mundiala incluírem a
dimensão temporal do empreendimento, considerando o antes, o durante das obras e até
depois de seu funcionamento. Além de considerar o que está tanto a montante quanto a
jusante da barragem, indicando que “Análises cuidadosas indicariam que, ao longo do ciclo do projeto, diferentes grupos e indivíduos são afetados, de diferentes maneiras” (VAINER, 2011, p.16).