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A tecelagem é, em geral uma prática solitária, construída num intenso contacto com materiais, técnicas e ensinamentos num processo dinâmico de melhoria, de novas invenções e reinterpre- tações. Sennett afirma que “o trabalho artesanal cria um mundo de habilidade e conhecimento que talvez não esteja ao alcance da capaci- dade verbal humana explicar, mesmo o mais profissional dos escritores teria dificuldade de descrever com precisão como atar um nó corrediço.” {Sennett, 2009, p. 11}

Numa visão integradora, arriscámos breves intromissões na es- fera familiar das tecedeiras e nos seus espaços de trabalho. À semelhança de outros contextos sociais observámos que o des- tino da mulher era, após o casamento, tornar-se subserviente ao marido que, por condição, sustentava o agregado familiar. A actividade profissional das tecedeiras sempre se caracterizou pela sua flexibilidade e pela sobreposição de trabalhos. Apesar do trabalho árduo enunciado por todas, a casa permite uma aná- lise integral sobre a actividade. Ao longo dos anos o tear sempre teve lugar nas casas de Almalaguês, instalado na loja (cave), ilu- minado apenas por um pequeno postigo, muitas vezes em terra batida, ao lado das alfaias agrícolas, das arcas do feijão e do mi- lho, do tanque e das pipas de vinho.

Em tempos idos era de tal forma a quantidade de tecedeiras, que todas as entrevistadas referiram que o bater dos teares era presença constante em todas as ruas dos lugares. Ao lado do

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tear estava o pequeno postigo, por onde se conversava com os transeuntes e se cruzavam os primeiros olhares e as primeiras conversas com os rapazes.

A loja é a oficina da tecedeira e os sinais da actividade estão, ainda hoje, presentes ao seu redor: os rolos da linha, as lissei- ras nas paredes, a burra, os sacos com os desenhos, a arca dos trabalhos e as amostras dos motivos. As casas são também os locais privilegiados de ensino familiar e profissional. As aprendi- zas, oriundas de famílias mais pobres, instalavam-se em casa da mestra e ajudavam nas tarefas domésticas, na limpeza da casa, no tratamento das roupas, nas tarefas agrícolas e até no auxílio à educação das filhas ou das netas da mestra.

Nos últimos anos, algumas tecedeiras têm usufruído de um outro lugar para aprendizagem e comercialização das suas obras. Na antiga escola primária de Anaguéis tem funcionado, desde 2010, a Associação Heranças do Passado, que determi- nadamente resiste ao abandono das técnicas artesanais e de forma resiliente assume o papel cimeiro na promoção des- te ofício. Além da formação e da divulgação da tecelagem, a sua principal função é criar condições para que as tecedeiras possam, entre as suas actividades profissionais e domésticas, realizar os seus trabalhos de tecelagem.

Figura C. 2. 31

Loja

Fonte: António Gomes

Figura C. 2. 32

Mantas

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Encontrámos diferentes formas de vivenciar estas duas esferas: num primeiro momento as mulheres solteiras trabalhavam quase exclusivamente nas tarefas da tecelagem, embora fos- sem chamadas à realização de pequenas trabalhos domésticos e trabalhos agrícolas sazonais como o semear e apanha das ba- tatas, o descamisar do milho e todas as outras que requeriam mais mão de obra. Num segundo momento, após o casamento, ressalve-se que os casamentos eram realizados entre os dezano- ve e vinte e dois anos, passariam a assumir a tecelagem como actividade complementar.

A casa permanecia sempre sob o seu domínio e nela transparecia o lado feminino da relação, objectivado na decoração do ambien- te, nos arranjos florais, na limpeza, organização dos espaços, no cuidado das roupas e na relação com os filhos. Estas tarefas, andaram sempre lado a lado com o trabalho de tecer e sem- pre tiveram de forma mais ou menos pacífica o consentimento masculino. Nesta sociedade rural o sustento da casa provinha do trabalho do homem, contudo aqueles que não eram assala- riados, que viviam de tarefas agrícolas tinham longos períodos de abstinência laboral, sobretudo no Inverno, tornando-se a mu- lher, de uma forma marcadamente antecipadora de movimentos posteriores, o esteio da vida em comum.

Figura C. 2. 33

Cartaz da Romaria

Fonte: António Gomes

Figura C. 2. 34

Associação Hernaças do Passado

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Nas nossas visitas, no espaço íntimo da casa, encontramos varia- das formas de relações e aprovações do homem relativamente ao trabalho da mulher. A Mestra Alcina afirma que o marido nunca gostou que ela se dedicasse quase em exclusivo à tecelagem, po- rém é peremptória ao afirmar que foi com as receitas desta acti- vidade que criou, educou e vestiu os filhos após a morte precoce do seu marido aos 34 anos. Licínia descreve que nos anos 70 o marido teria comprado uma motorizada e que a acompanhava na entrega das encomendas às freguesas. Todavia, todo o traba- lho da tecelagem era realizado de madrugada, antes do levanto da família, logo após a preparação do almoço e da marmita para o marido e de preparar e alimentar os filhos. Afirma que a acti- vidade se desenrolava nestes intervalos, contudo sendo proprie- tária de uma quantidade significativa de vinhedos, reitera que as tarefas domésticas e agrícolas vinham em primeiro lugar. Esta forma de vivenciar a actividade é lugar comum em todas as tece- deiras com quem dialogámos.

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