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Os materiais assumem um papel importante nos rituais, nas ac- tividades económicas e no seu significado cultural. Deveremos então detectar alguns dos elementos que singularizam esta acti- vidade das demais actividades da tecelagem presentes no nosso país. Afirmamos que a tecelagem de Almalaguês é o produto de um território vasto e fértil, alimentado pelos três rios que o circundam e pelas imensas ribeiras que o atravessam. Nos vales descendentes, caindo em cascatas de socalco em socalco, des- ciam as águas que formavam as ribeiras que fluíem até às mar- gens do Ceira e do Dueça e os dois rumavam ao Mondego. Numa sociedade marcada por uma economia de subsistência e de fraca circulação monetária e por uma multiplicidade de outros fac- tores, despontaram por quase todas as margens das ribeiras e rios centenas de moinhos e engenhos hidráulicos, importantes pilares deste tipo de economia. As características propícias do terreno dos vales e a antiguidade da tecelagem cruzadas com os registos históricos relativos ao cultivo do linho na região de Coimbra levam-nos a crer que o linho era cultivado em todos os baixios, mais húmidos e mais afagados pelo sol.

Por outro lado, tanto nos cumes como no sopé da Serra da Lousã há muito se vive a actividade dos lanifícios. Na fronteira entre o distrito de Coimbra e Leiria, na outra aba da Serra da Lousã a pender para Castanheira de Pêra, surge o primeiro documento conhecido relativo à importância dos lanifícios na região, atra- vés de uma sentença de D. Afonso V que se referia aos baldios

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do Coentral como território de pastoreio (1467). Havia, portanto, pastagens, rebanhos, lãs, água, lenha e gente que sabia tosquiar, fiar, cardar, tecer e pisoar.

Ainda que a lã e o linho fossem as matérias originais, presumi- mos que durante o século XVIII/XIX o linho tenha sido trocado pelo algodão. Os trabalhos de trapo existem em menor quantida- de e estão localizados temporalmente desde o século XIX, embora julguemos que poderão ser anteriores. Outrora, em tempos de carestia, as roupas velhas eram cortadas em tiras (trapos) sendo reutilizados por todas as tecedeiras na feitura das mantas e ta- petes de trapo. Várias tecedeiras informaram que com a entrega das peças novas, parte do pagamento era feito em trapos já no- velados. Para a sua fabricação utilizavam juta grossa e resistente, empregando os seus fios na teia ou na trama dando-lhes maior resistência e durabilidade. Apesar da sua presença em todos os lares da região, da sua beleza, originalidade e durabilidade, des- de sempre foram considerados de qualidade inferior, de mais fácil execução e nunca adquiriram o estatuto dos trabalhos ricos em bordados produzidos em linho, lã e algodão.

Sendo o linho, a lã e o algodão as matérias primas mais utili- zadas durante séculos, constatámos que sempre existiu grande diversidade e qualidades de linho e de lã e que eram divididas em

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Tapete de trapo

Fonte: António Gomes

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Tapete de trapo com puxados

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duas grandes categorias: aquelas com fibras que são mais finas e longas eram destinadas aos trabalhos de maior minúcia como os trabalhos de “puxados finos”, e portanto de maior qualidade e de preço mais elevado; as outras, as mais grossas e brutas, eram utilizadas em trabalhos de “ponto graúdo” para peças com fun- ções menos nobres.

Apesar da longa tradição da técnica dos puxados de Almalaguês em linho, trapo, lã e algodão não podemos precisar com certeza quando é que se formou a especificidade deste tipo de puxado, visto não existirem registos escritos e as peças perderam-se no tempo, no entanto Ana Pires refere que existe, pelo menos, des- de o início do século XVIII {Fonseca & Pires, 2007, p. 18}. Quando questionamos algumas das tecedeiras mais velhas, Ana Lousã de 97 anos, Alcinda de 87 e Maria do Carmo de 86, acerca da realiza- ção do ponto miúdo em linho as respostas parecem consensuais: o ponto miúdo era muito mais difícil de fazer em linho que em algodão. Ana Lousã afirma que não se lembra de ter tecido em linho porque era um material muito caro e as suas encomendas eram todas em lã e algodão. Alcina afirma que na sua juventude fez ponto miúdo em linho e que, apesar de ser mais difícil de fazer o puxado de uma forma correcta e acertada, os trabalhos saíam com perfeição. Afirma, ainda, que quando as gentes da redondeza deixaram de cultivar e tratar o linho, o material que

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Tapete com puxado (lã)

Fonte: António Gomes

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Colcha com puxado (algodão)

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surgiu foi ao que chama de “linho industrial” sendo muito duro e pouco flexível, de menos nobre condição e sem a qualidade necessária para fazer o bordado no tear.

A confirmar este facto, Arménio Simões constata no seu livro que a última seara de linho nesta região foi semeada em 1925 e Lucília Caetano, ao entrevistar as tecedeiras mais idosas em 1988, relata que o linho deixou de ser semeado no início do sé- culo passado. Contudo Maria do Carmo, tecedeira e moradora na Trémoa, afirma que até meados dos anos quarenta, todos os anos os seus pais semeavam uma seara de linho. Licínia recorda- -se do linho e afirma que com ele se fazia todo o enxoval no tempo da sua avó e da sua mãe.

Todas as tecedeiras entrevistadas afirmaram que os trabalhos realizados desde a sua juventude foram os trapos, a lã e o al- godão e ocasionalmente, quando o cliente trazia o material, o linho. Corroborando esta informação relatamos o que nos foi dito quanto a algumas das encomendas efectuadas por motivos religiosos ou de cerimónias de casamento. Algumas das tece- deiras recordam-se que aquando da encomenda dos enxovais, sobretudo das colchas de casamento, alguns clientes pediam que fossem bordadas as letras iniciais dos noivos e a data da ce- rimónia. Embora grande parte dessas peças fossem registadas

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Colcha com puxado e franjas

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em bordado manual, outras houve em que a data era bordada no próprio tear. Encontrámos uma colcha, propriedade de uma tecedeira local, que data de aproximadamente 1875 toda ela realizada em algodão. Podemos também depreender, em con- fronto com outras feitas em linho, que o algodão permitiu que o puxado se tornasse mais nobre e elaborado devido à finura e resistência do algodão.

Até meados do século XX o linho foi cultivado por toda a região do vale dos rios Ceira, Mondego e Dueça, assim como nas ime- diações e nos terrenos aluviões de várias ribeiras da região e sempre representou uma grande parte das matérias têxteis em- pregues nesta tecelagem. O linho é provavelmente a planta mais utilizada no fabrico de fibras têxteis e o seu cultivo foi, durante séculos, uma importantíssima actividade dentro das comunida- des rurais contribuindo não só para a sua subsistência finan- ceira, mas também devido às suas inúmeras aplicações na vida rural. Não podemos registar o contributo do linho sem elencar a sua relação com a lã e as sementeiras.

Nestas aldeias sempre existiram famílias abastadas que deti- nham o poder da aquisição das terras, das máquinas agrícolas e dos animais. Todos estes lugares eram divididos em gran- des quintas, pertença dos mais abastados, que permitiam aos mais pobres, sem terras, o cultivo e preparação de parcelas em troca de um quinhão das colheitas. Parte integrante do processo cíclico da agricultura, a fertilização realizava-se com o estrume dos animais e com os rebanhos que faziam tran- sumância entre as serras e as regiões onde houvesse pasto fresco {Simões, 2013, p. 85}.

As terras húmidas junto às ribeiras e aos rios, e existem mui- tas em todos os vales eram gradadas e estrumadas no início da Primavera e o linho cultivado entre os meses de Abril e Maio. Depois de amadurecido, o linho era arrancado pela raiz de modo a aproveitar todo o comprimento dos seus caules, e de seguida era atado em molhos e transportado em carros de bois para as eiras onde era ripado para largar a baganha (pequenos casulos

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que continham a semente designada por linhaça) e que, depois de seca, servia para a nova sementeira. De seguida, era atado em molhos e colocado na água. Depois vinha a seca natural nas eiras, a trituração e a espadela. Depois de sedado separava-se a estopa do linho e era grupado em estrigas, passando finalmente a ser transformado em fio e em meadas.

Do mesmo modo a lã aparece presente em registos locais desde o século XIII e é também um dos materiais basilares para a realiza- ção da tecelagem. Em Castanheira-de-Pêra, António Alves Bebia- no, regressa do Brasil em 1868 e decide investir toda a sua fortuna (500 contos) numa fábrica de lanifícios pretendendo transformar os tecidos, até então “de grosseiro burel e áspera saragoça” {David, 2003}. Supõe-se que, durante os finais do século XIX, o fio de lã podia já ser adquirido nas fábricas de tratamento de fibras de Cas- tanheira de Pêra e também na região de Coimbra. Desde o início do século XX outras formas de adquirir o material se desenharam, nomeadamente através das fábricas da Lousã e de Miranda-do- -Corvo e do comércio de linhas vindas da Guarda e da Covilhã que viam na região de Almalaguês e nas suas centenas de tecedeiras a oportunidade de criar bons negócios. Algumas das tecedeiras afirmam que eram tantas as tecedeiras e os teares que as fábricas passaram a produzir fios de algodão e de lã específicos para este tipo de actividade. Relatam também que sobretudo nas últimas

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Colcha com puxado em lã

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três décadas estes fios desapareceram e que procuram outros ti- pos de linhas que se adaptem aos teares, informando que outrora eram muito mais resistentes e fáceis de trabalhar.

Outra das queixas apresentadas, é respeitante à lã que parece degradar-se mais depressa e que “ganha borboto”. Em tempo de pobreza extrema, as peças têxteis adquiridas tinham um uso diário e uma grande longevidade. Verificamos como adjuvante a este facto que, repetidamente, encontrámos peças com mais de 100 anos que continuam a ser utilizadas frequentemente. “Isto dura uma vida” foi uma das frases mais repetidas pelas pessoas com quem falámos. Licínia, mostrou-nos peças com mais de 50 anos usadas no enxoval dos seus dois filhos, como uma peça que deixou de ser manta de aquecimento e ocupou outras fun- ções na decoração da casa; António mostrou-nos colchas com mais de 100 anos que já percorreram três gerações e que conti- nuam como novas; Rosa, de 62 anos, tem peças da sua avó que continua a usar diariamente. As tecedeiras do Museu de Torre de Bera afirmam ter peças com mais de 200 anos. No terreno observámos que estas obras começavam os seus dias como col- chas, tapetes ou passadeiras primeiras que orgulhosamente se mostravam aos domingos e nos dias de festas, depois com o pas- sar dos anos, passavam a ter funções mais terrenas e utilitárias como passadeiras de entrada, mantas de cobrir sofás, esteiras de cobrir o chão, até terminarem os seus dias como coberturas de arcas agrícolas onde, teimosamente, a única coisa que as parece destruir são os ratos.

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