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Especificando o conceito de valor para a discussão sobre família

Após a leitura cuidadosa até o momento, o leitor pode estar se perguntando o que seriam valores, conceito também importante para o presente trabalho. Esta não é uma fácil definição, uma vez que esse construto é passível de modificações a depender do contexto sociocultural. O conceito apresenta, porém, algum aspecto uniformizador. Entende-se como valores morais tudo aquilo que faz parte de um sistema simbólico compartilhado, socialmente valorizado em termos de estilo de vida, julgamentos e ações humanas para convivência social. Gouveia, Fonsêca, Milfont e Fischer (2011, p. 298), apoiando-se num trabalho de Kluckhohn,7 de 1951, afirmam que “um valor é uma concepção, explícita ou implícita,

7 KLUCKHOHN, C. Los valores y las orientaciones de valor en la teoría de la acción. In: PARSONS, T; SHILS, E. A. (orgs). Hacia uns teoría general de la acción. Buenos Aires: Editorial Kapelusz, 1951.

própria de um indivíduo ou característica de um grupo, acerca do que é desejável, o que influencia a seleção dos modos, meios e fins de ações acessíveis”. Os valores morais servem então para orientar condutas, selecionar alternativas em meio a várias possibilidades, e selecionar modos para atingir determinado fim.

Gouveia (2013) alerta para a possibilidade de que esse conceito pode ser confundido com vários outros por apresentar aspectos em comum, e, para uma melhor compreensão, deve ser diferenciado deles. Os valores não significam o mesmo que as atitudes, pois estas se referem a objetos específicos e por isso são em maior número; já os valores transcendem objetos específicos, constituindo-se como critérios gerais de orientação para condutas. Devem ser também diferenciados das crenças – ou pelo menos da definição de crença para o autor, já que este também utiliza uma definição bastante polêmica – na medida em que “enquanto os valores implicam em uma avaliação do desejável, expressando [também] um componente afetivo, as crenças são essencialmente cognitivas, refletindo pensamentos e idéias” (GOUVEIA, 2013, p. 121).

Apoiando-se na definição de Kluckhohn (1951/1968), Gouveia (2013) aponta que os valores são então mais abstratos e necessariamente têm uma conotação moral, avaliando o que é bom ou ruim, justo ou injusto, enquanto que as crenças envolvem a apreciação de se algo é real ou possível. Por essa definição percebem-se os construtos “valores” e “moral” como tendo aplicabilidade semelhante, enquanto distinta da ética, embora, por muitas vezes, no senso comum, moral e ética sejam utilizadas como sinônimos. Existem pelo menos duas diferenciações possíveis para os conceitos: a ética refere-se ao dever de ordem pública – “códigos de ética” profissionais, “ética na política”, “ética de uma empresa”, mas não seria uma expressão possível para o grupo familiar, pois não caberia falar em “ética familiar”; neste caso é utilizada a expressão “moral”. Outra possibilidade de distinção entre os dois construtos seria considerar que a ética trata de uma reflexão sobre a moral, sendo, portanto, um conceito mais abstrato. A moral são os valores, princípios e regras que uma comunidade ou indivíduo considera como princípios-guia, enquanto a ética se refere à reflexão sobre aquela. O plano moral possui, então, conotação de obrigatoriedade, enquanto o plano ético envolve a dimensão do desejável ou da felicidade. (LA TAILE, 2010; LA TAILLE; SOUZA; VIZIOLI, 2004)

Segundo Gouveia (2013), as normas sociais ou costumes também não são sinônimos de valores, uma vez que os primeiros são necessariamente grupais. Tendo uma natureza consensual, não englobam as singularidades de valores em cada pessoa, mas apenas servem como referencial para o comportamento dos indivíduos. O autor diferencia ainda os valores de

demais construtos, como representações sociais, ideologias, traços de personalidade, entre outros que não serão aqui explanados.

Gouveia (2013) defende que os valores humanos são universais e relativos, ou seja, existe um conjunto permanente de valores, que são rearranjados a partir das características pessoais e contextos sociais diversos. Pensando por esse prisma, baseado em Rokeach (1973)8 e Triandis (1995)9, o autor aponta dois tipos de valores como constituintes em todas as sociedades: sociais versus pessoais ou coletivismo versus individualismo. Variando em intensidades diferentes, as pessoas podem ser guiadas prioritariamente: por valores sociais ou coletivistas, motivadas principalmente por normas e deveres impostos pela coletividade, com foco interpessoal; ou por valores pessoais ou individualistas, motivadas por suas próprias preferências, necessidades e direitos sendo mais egocêntricas ou com foco intrapessoal. No segundo caso, a prioridade de metas seria definida preferencialmente por motivos pessoais, sobrepondo-se às metas do grupo (GOUVEIA, 2013; MIRANDA; HEDLER, 2011). Para fins deste trabalho, optou-se por denominar esta antinomia como individualismo versus familismo, colocando em destaque a família, já que a temática aborda mais especificamente esse grupo social. A utilização do termo familismo foi inspirada em autores como Vera e Diàz (2009) e Gheorghiu et al (2008), que o empregavam com propósitos semelhantes.

Em pesquisa transcultural realizada por Hofstede10 (1980 apud MIRANDA; HEDLER, 2011), o Brasil foi considerado um país onde predomina o valor do coletivismo, ocupando a 26ª posição entre 40 países. Porém, não se pode generalizar este achado, devido à grande variação cultural dentro do país, devendo-se levar ainda em consideração, numa mesma localidade, a classe social, a faixa etária, entre outros fatores.

Conforme já apresentado neste capítulo, as classes populares brasileiras em geral têm a prática de dividir recursos materiais e financeiros por falta de garantia do Estado, sendo um dos fatores que interferem para práticas predominantemente coletivistas ou familistas nesses contextos, em detrimento da classe média urbana, que costuma definir a família em menor número de integrantes, valorizando principalmente o individualismo, a privacidade e as relações afetivas entre esses membros (GOLDANI, 1993). Cabe, entretanto, a crítica levantada por Scott (2011), que considera somente o fator econômico insuficiente para definir práticas diferentes em classes sociais distintas, sendo contra a radical dicotomização da sociedade em classes sociais. Concorda-se com o autor quando ele questiona a tradição de

8 ROKEACH, M. The nature of human values. New York: Free Press, 1973.

9 TRIANDS, H. C. Individualism and collectivism.Boulder, CO: Westview Press, 1995.

10 HOFSTEDE, G. Culture consequences: internattional differences in work-related values. Beverly Hills: Sage, 1980.

relacionar necessidades econômico-produtivistas a estudos apenas sobre classes de trabalhadores, ignorando que tal elemento pode ser constitutivo de relações familiares também na classe média. Igualmente observam-se, nas camadas médias, crianças sendo cuidadas pela avó e o considerável número de separações e recasamentos – embora autores como Sarti (1996) e Fonseca (2005) defendam que a instabilidade conjugal é ainda mais comum nas camadas populares – justamente por motivos econômicos. Ainda assim, considera-se útil pensar que integrantes de um mesmo grupo na sociedade – neste caso, classe social – compartilham práticas e valores aproximados, por apresentarem visões de mundo e estilos de vida semelhantes.

Com relação à idade, Gouveia (2013) considera possível que os valores humanos modifiquem-se de acordo com o amadurecimento pessoal e não apenas na infância, quando ocorrem as primeiras socializações. Em outras palavras, os valores rearranjam-se na ontogênese humana, pois as necessidades do indivíduo e o seu papel na sociedade vão sendo modificados, conforme defendido na presente discussão. Desse modo, é esperado inclusive que, por terem funções diferentes na sociedade, pais e filhos apresentem valores relativamente diferentes.