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O pai era muito exigente, bravo e chato – disso, ninguém discorda

4.3 Os dilemas e a moral da história sob o ponto de vista das crianças

4.3.1 O pai era muito exigente, bravo e chato – disso, ninguém discorda

Felipe (6 anos6), a criança mais nova que participou da pesquisa, posicionou-se dizendo não gostar do pai da história do filme porque ele era muito bravo e que não gostaria de ter um pai assim: “Não, que ele era muito bravo. Nunca queria ter um pai desse.” Ao ser questionado sobre o que achou do fato de o ratinho Rémy ter seguido seus sonhos mesmo contra o desejo claro do pai, a criança titubeou, ora considerando um fato negativo, ora dizendo que foi positivo.

P - Escuta, e o ratinho, ele... o pai não queria que ele fosse, mas ele foi, né? E - É.

P - E aí, que é que tu achou?

(O garoto emite um som e a pesquisadora interpreta) P - Assim, ruim?!

E - É (fala sorrindo) P - Isso é ruim?! E - Quer dizer, é bom.

P - É bom? É bom ou é ruim? E - Quer dizer, é ruim! P - É bom ou é ruim, rapaz? E - É ruim!

P - É ruim? [E - É.] Por que tu achou ruim? E - Desobedeceu.

P - Ele desobedeceu o pai, não foi? E - É.

O garoto facilmente se posiciona sobre a figura do pai na história, julgando-o como bravo. Sua avaliação sobre este personagem é semelhante a que seu pai, Cláudio (34 anos) trouxe na entrevista: é errado o comportamento paterno de causar medo em Rémy. Entretanto, Felipe parece ter dificuldade de se decidir acerca da postura do filho. Provavelmente porque percebe que está em um dilema: por um lado, Rémy deveria ir em busca de suas realizações pessoais, aproveitando e aperfeiçoando seu talento, pois além das informações retiradas do

6 Rigorosamente, no dia da entrevista com a pesquisadora, Felipe tinha 5 anos, 11 meses e 17 dias. Devido à proximidade dos 6 anos, a idade deste participante foi arredondada para 6 anos.

excerto acima, em outro momento da entrevista o garoto diz que o que mais gostou na história foi “que o rato ficou cozinhando”; por outro lado, o ratinho desobedeceu ao pai e a desobediência não é bem vista ou até mesmo deve ser reprovada socialmente.

Não se pode deixar de considerar que a pesquisadora é adulta, e que os adultos, de modo geral, exigem a obediência das crianças, independentemente de ser seu pai ou sua mãe. Portanto, Felipe pode ter avaliado como esperada uma resposta no sentido de considerar como errado a desobediência, tal como os adultos a ensinaram e constantemente reafirmam esse valor. Essa inferência passa a ter grande plausibilidade quando somada ao argumento de que esta mesma criança já tinha considerado o pai da história como muito bravo, ou seja, de alguma forma, a criança reprova o comportamento do pai de Rémy. Sendo assim, o garoto teria vacilado ao responder, diante do instigamento da pesquisadora que, de início, chama a atenção sobre esse fato ao dizer: “[...] o pai não queria que ele fosse, mas ele foi, né?” Felipe pode ter tido dúvida sobre como deveria respondê-la. Essa observação é pertinente porque não se pode assegurar que obedecer aos pais e seguir seu desejo de ser um cozinheiro constituía, de início, um dilema moral para aquela criança. Importante ressaltar que na continuação da entrevista, Felipe mantém seu posicionamento firmado no excerto anterior de que o filho estava errado em desobedecer ao pai, mesmo com a pesquisadora levantando outros aspectos para serem considerados.

P - Ele desobedeceu o pai, não foi? E - É.

P - Mas o pai não deixava ele ir também, num foi? E - É.

P - E quando o pai não deixa, pode ir [E - Não.] sem o pai deixar? E - Não.

P - Huum... Mas ele acabou virando um cozinheiro bom danado, num foi? E - Foi.

P - E se ele não tivesse desobedecido o pai, será que ele ia ser cozinheiro? E - Ia não!

P - E agora? Tu acha que ele fez certo ou errado? E - Errado.

P - Errado porque desobedeceu, é? E - É.

Por esse excerto, Felipe encontra-se de fato em um dilema gerado pelo filme e explicitado pela pesquisadora, por uma ou outra hipótese – ter reconhecido o dilema do filme, ou ter ajustado a sua resposta ao que supôs ser correto diante do adulto que o instava a um posicionamento – ou as duas hipóteses em interação. Em outros trechos da conversa, o entrevistado considerou bom o fato de o ratinho ter cozinhado e avaliou o pai como muito bravo, mas, mesmo assim, revelou a compreensão de que desobedecer a ordem do pai está errado.

Outra criança, Rodrigo (6 anos), considerou o pai como chato porque não deixava o filho sair de casa e o filho era “bem legal”. Sendo assim, foi bom o ratinho ter feito as coisas escondidas, “porque o pai nunca deixava ele sair”. Embora as duas crianças de mesma idade concordem em sua avaliação sobre o pai, o mesmo não se pode dizer no que diz respeito à forma como avaliam a decisão do filho de desobedecer ao pai.

Ronaldo (32 anos) tem um posicionamento diferente do seu filho Rodrigo ao considerar que em primeiro lugar deve-se obediência à autoridade parental. Este adulto avaliou o pai na história como correto no momento em que não permitiu que seu filho convivesse com os humanos. Apesar da dissonância entre julgamento de pai e filho em relação ao comportamento do pai do ratinho, não se pode afirmar que a criança dirvege de seu pai quanto à obediência à autoridade, pois as regras de comportamento para atingir princípios morais são circunstanciadas e tais circunstâncias levam à flexibilização ou adequação da regra.

Para Élida (7 anos), o pai da história era muito exigente e também estava errado, mas por outro motivo: apesar de dizer que não roubava, estava roubando. Já Rémy, na avaliação da garota, tinha razão, ao dizer que os ratos roubavam comida.

E - Que o pai era muito exigente.

P - O pai era muito exigente? Mas, tu achas que ele estava certo ou errado? E - Errado.

P - Errado?[E - Ou certo?] Ou certo. E - Errado!

P - Errado. Por que tava errado?

E - Porqueee... ele dizia que ele não tava roubando, que as pessoas não queriam mais o que eles pegavam, que... ah, por isso.

P - Hunrum. Certo. E o ratinho, o Rémy, o filho, tava certo ou tava errado? E - Tava certo.

P - Por quê? E - (silêncio) [...]

P - Por que ele tava certo?

E - É... porqueee... ele tinha razão que ele tava roubando [P – Hunrum.]... ééé... queee... ah, que eles tavam roubando... que (sussurros que não se consegue ouvir).

[...]

E - Eu achei que o pai tava muito exigente, que ele tava errado, porque... que ele tava errado porque tava dizendo que não tava roubando e que... e eles estavam roubando, que ele dizia também que todo mundo... que aquilo que eles pegavam, que, na verdade, era que eles roubavam, que eles diziam que não, era o que ninguém queria mais.

Nesta entrevista a criança se ateve mais à questão de estar ou não roubando comida. Sendo assim, o certo e o errado se referem respectivamente a falar algo verdadeiro ou algo que não corresponde à realidade. Em conversa com a pesquisadora, esta criança tomou outra perspectiva para avaliação e não se debruçou sobre o dilema esperado, qual seja, a decisão do ratinho em seguir um caminho diferente do planejado pela família ou ainda o fato de o pai no primeiro momento não concordar com o comportamento do filho e achar que sua escolha podia ser perigosa, passando a aceitar a decisão de Rémy somente no final da história. Por meio do exemplo de Élida, percebe-se a posição ativa das crianças de recontar e considerar os aspectos morais levantados no enredo, pois, ao assistirem às produções, elas valorizam aspectos diferentes dos considerados pelos pesquisadores. Esta interpretação ativa da criança será tema de discussão mais aprofundada no subitem 4.4.

Aliado ao fato de o pai estar errado por não dizer algo verdadeiro, ele também era muito exigente. Talvez essa perspectiva se aproxime da de Rodrigo e Felipe, quando diziam que o pai era muito chato e bravo, respectivamente.