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Em primeiro lugar, é de registar o elevado grau de concordância dos peritos em relação à definição utilizada como referencial para a entrevista, baseada no Programa Nacional de Cuidados Paliativos (2004) e nos princípios defendidos pela Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Contudo, as reflexões produzidas, para responder às questões colocadas nos diversos blocos do guião, permitiram aprofundar outras dimensões do conceito, sobretudo no que se refere à sua operacionalização prática. Na verdade, foi o trabalho reflexivo conduzido ao longo da entrevista que permitiu ultrapassar a dificuldade inicial

que os peritos tiveram em identificar, de modo coerente, o que fazia a especificidade deste tipo de acções.

Um conceito-fronteira

Analisando com cuidado os exemplos que foram dados e as justificações que serviram de base às argumentações utilizadas (ver em particular as categorias A, B, C, G) é possível identificar dois tipos de lógicas distintivas que fazem da acção paliativa um conceito que faz fronteira, por um lado, com as boas práticas médicas e de enfermagem, em geral, e por outro lado, com as práticas estruturadas e específicas de cuidados paliativos.

No primeiro caso, de acordo com a interpretação que foi possível fazer do discurso dos entrevistados, a fronteira (embora muitas vezes ténue) é marcada essencialmente pelo critério da intencionalidade. De facto, para que uma acção seja considerada paliativa, é preciso que ela resulte de uma intenção deliberada e reflexiva, por parte do profissional de saúde, com vista ao apoio e promoção do conforto do doente em fim de vida. Este critério distintivo faz com que, muitas vezes, as acções paliativas dependam mais do contexto pessoal que as determina, do que da natureza da própria acção que é praticada (que pode ser em tudo semelhante a outras acções desempenhadas por médicos e enfermeiros no quadro geral da sua actividade).

No segundo caso, a fronteira, embora mais nítida, pode ser fonte de alguma ambiguidade, pois as “acções paliativas” são vistas como o nível de diferenciação mais básico que antecede os “cuidados paliativos” propriamente ditos. Em todo o caso, as opiniões recolhidas junto dos peritos, a este propósito, são mais conclusivas (de acordo aliás com a definição dada pelo Programa Nacional de Cuidados Paliativos), uma vez que põem em evidência o carácter básico, pontual e individual das “acções”, por distinção com o carácter estrutural, continuado e multidisciplinar dos “cuidados”. Importa referir, ainda, que, de acordo com os dados obtidos, esta “autonomização” das acções paliativas pode ter efeitos positivos ou negativos em relação ao desenvolvimento de uma rede de cuidados paliativos. Sobressai neste contexto

o sentimento contraditório face à possibilidade de as acções paliativas poderem ser consideradas um agente promotor ou inibidor dos cuidados paliativos. Por um lado, as acções paliativas podem servir para reforçar a consciência dos profissionais de saúde para a necessidade de uma alteração das suas atitudes e práticas em relação aos doentes em fim de vida. Por outro lado, pode induzir, sobretudo nos responsáveis políticos (e na opinião pública), a ideia que não é necessário investir na criação de estruturas próprias para o desenvolvimento de cuidados paliativos, uma vez que “já se fazem acções paliativas” em contextos indiferenciados.

Factores pessoais/profissionais e factores organizacionais

Finalmente, e em relação ao tópico desta primeira conclusão, importa registar que os dados obtidos permitem identificar dois tipos de factores que reforçam a “especificidade” das acções paliativas: um factor pessoal/profissional e um factor organizacional.

O factor pessoal/profissional decorre do facto de elas serem o resultado de uma decisão individual apoiada numa atitude favorável a este tipo de actuação. Mais do que serem prescritas através de um qualquer código de procedimentos elas resultam de um juízo que o profissional deve fazer, caso a caso, tendo em conta a situação específica em que se encontra. Como vimos, existe uma panóplia muito ampla de acções paliativas que podem ser executadas (ver categoria B), mas as suas características fazem com que a aplicação resulte sempre de uma decisão informada que o médico ou o enfermeiro deve tomar, no âmbito da sua responsabilidade individual e da sua competência profissional.

Quanto ao factor organizacional, ele resulta do facto de, apesar das acções paliativas serem individuais e, eventualmente, pontuais, beneficiarem da articulação entre os diferentes profissionais e de uma perspectiva de continuidade e interdependência, não devendo ser segmentadas por critérios de natureza profissional. As características e competências que distinguem a profissão de enfermagem, nomeadamente o facto de os enfermeiros estarem mais tempo com os doentes, vem constituir um factor preponderante para, por um lado, justificar o favorecimento que este grupo profissional tem para o

desenvolvimento de acções paliativas em unidades de internamento de agudos, mas, por outro lado, vem também justificar as vantagens da interdependência entre médicos e enfermeiros para o desenvolvimento destas práticas. Apesar de haver uma autonomia funcional, a própria natureza das acções paliativas induz a possibilidade de se desenvolverem como uma acção integrada, global e complementar que torna difícil o seu isolamento. Neste sentido, o desenvolvimento de acções paliativas precisa de um contexto organizacional favorável ao trabalho em equipa e que esteja imbuído de uma “filosofia” de cuidados propícia às intervenções paliativas. E isto é tanto mais difícil quanto elas se desenvolvem em contextos hospitalares que são marcados, tradicionalmente, pelo predomínio da medicalização e institucionalização da morte e do morrer.

Em síntese

Tendo em conta os objectivos desta pesquisa, podemos dizer que os dados obtidos com as entrevistas aos peritos confirmam a pertinência da distinção conceptual que é feita, em Portugal, das acções paliativas e justificam que elas sejam consideradas como uma actividade específica no contexto das práticas profissionais gerais de médicos e enfermeiros que lidam com doentes em fim de vida.