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1.3 – Espiritismo de esquerda: a tradição intelectual espírita de viés socialista

Iniciamos agora a apresentação de uma visão pouco comum acerca da coloração ideológica do Espiritismo. Embora, a primeira vista, o movimento espírita brasileiro nos dê a impressão de que a Doutrina Espírita é, em si, refratária a intervenções nas instituições sociais, às revoluções e, de um modo geral, aos movimentos sociais de esquerda, podemos verificar que esta presunção é apenas aparente. É bem verdade que mesmo dentre os pensadores espíritas que defenderam algum tipo de socialismo, muitos (senão a maioria) foram consideravelmente conservadores com relação a vários pontos cruciais da agenda de lutas da esquerda - como a necessidade de greves, para citar apenas um exemplo. Todavia, veremos (no segundo capítulo) que a leitura da Doutrina Espírita realizada pelo MUE demonstra a existência potencial de um “Espiritismo de esquerda”, isto é, um Espiritismo socialista e revolucionário.

Por outro lado, vale a pena ressaltar o fato de que desde os primórdios do movimento espírita até a atualidade houve autores (poucos, é verdade) que se posicionaram, de modo mais ou menos definido, a favor de algumas bandeiras caras aos grupos de esquerda. Em especial, o socialismo figura persistentemente como um ideário incorporado, no todo ou em parte, à reflexão filosófica de diversos intelectuais espíritas. Disso resulta que se pode afirmar a existência, de fato, de uma tradição intelectual espírita de viés socialista.

Notemos, com Artur Isaia, que o

Espiritismo surge (...) interagindo com uma rede bastante complexa de interesses, significados, transformações históricas e guardando um parentesco espiritual com uma constelação desigual de idéias que vão do liberalismo às utopias socialistas, passando pelo positivismo comtista. Tanto para os deserdados da sorte como para os

detentores do capital, a doutrina espírita passa a fornecer significados inteiramente articulados a suas vivências, carências, anseios. (ISAIA, 2004, p. 104)38

Para além de afirmarmos que o Espiritismo, como qualquer doutrina, corrente de pensamento, filosofia etc., se presta a múltiplas interpretações, queremos destacar que o seu corpus teórico possui laços de maior ou menor grau de afinidade eletiva identificáveis com específicas criações da cultura intelectual de seu contexto de nascimento. Não temos a pretensão de discutir qual seria a leitura mais correta da Doutrina Espírita, estabelecendo a sua ortodoxia, mas sim verificar as suas potencialidades discursivas tal como se manifestaram na história.

Assim, importa agora elencar os autores que encarnam a referida tradição de viés socialista. Porém, inicialmente, vale dizer que inclinamo-nos a classificar Allan Kardec como um “pensador burguês”, ainda que possam ser identificados alguns elementos progressistas e utópicos39 figurando ao lado de outros elementos conservadores e conformistas, num contexto em que já havia sido estabilizado o conteúdo burguês da revolução francesa. Como ponto de partida da nossa reflexão, julgamos útil trazer por extenso uma passagem de Immanuel Wallerstein em que disserta acerca do conservadorismo:

O ponto central do conservadorismo como ideologia moderna é a convicção de que os riscos de uma intromissão coletiva e consciente nas estruturas sociais existentes, que evoluíram lenta e historicamente, são muito elevados. No melhor dos casos, argumentam eles, a realização de mudanças é possível, desde que estas sejam primeiramente avaliadas com muita cautela e que sejam consideradas absolutamente necessárias. E

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Aubrée e Laplantine parecem ter uma compreensão semelhante: “Se, portanto, de um lado a construção doutrinal de Kardec pertence à família das ideologias do século XIX que pretendem por fim aos privilégios e fazer aceder os miseráveis da terra à dignidade humana, por outro lado ela desvia-os da revolta, e os burgueses, por sua vez, têm belos dias em perspectiva. Ora, esse tipo de tentativa de conciliação perpassa o conjunto do pensamento e do movimento espírita – um dos interesses residindo precisamente na sua lógica da contradição (AUBRÉE e LAPLANTINE, 1990, p. 80; livre tradução nossa).

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O lema da Revolução Francesa – liberté, igualité, fraternité – ecoa no pensamento de Kardec. Em Obras

póstumas afirma: “Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras constituem, por si sós, o

programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da Humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação” (KARDEC, 1984 [1890], p. 233; grifos no original). Segue refletindo sobre a articulação entre os três princípios e os obstáculos que a eles se opõe: “Considerada do ponto de vista da sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade está na primeira linha: é a base. Sem ela, não poderiam existir a igualdade, nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade é consequência das duas outras” (KARDEC, 1984 [1890], p. 233-234).

mesmo assim, é preciso que sejam introduzidas com enorme cuidado e muito gradativamente. Nessa doutrina conservadora, misturam-se as dúvidas teológicas sobre a correção da intervenção humana no mundo de Deus com um ceticismo sobre a capacidade que o ser humano tem de ser sábio ou, melhor ainda, a capacidade humana de tomar decisões coletivas que sejam bem pensadas e sábias.

Não há dúvida de que existem boas razões históricas para esse tipo de ceticismo. E é possível entender como pessoas inteligentes e bem- intencionadas podem chegar à conclusão de que, de um modo geral, é melhor ir devagar com as mudanças políticas, para evitar que as coisas possam ficar ainda piores do que estão no momento. O problema com esse tipo de conservadorismo honesto é que ele representa a posição (e os interesses) daqueles que, nesse momento, estão em uma boa situação tanto em termos de sua posição socioeconômica como em todas as outras questões relacionadas com qualidade de vida. No entanto, para todos aqueles em situações piores, e especialmente para aqueles cuja situação é realmente terrível, a única coisa que essa posição conservadora deixa é uma mera recomendação de que sejam pacientes, pois sua situação pode vir a ser amenizada por algum tipo de caridade imediata. No entanto, como, segundo a própria doutrina conservadora, essa paciência exigida não tem, em um certo sentido, quaisquer limites de tempo especificados (e conservadores geralmente têm o costume de falar sobre a inevitabilidade da hierarquia social e, portanto, também de aceitar uma permanente desigualdade social), ela oferece, para a maioria da população mundial, apenas a esperança de que uma melhoria ínfima possa vir a se concretizar em suas vidas, e de que, até mesmo nas vidas de seus filhos, muito pouco poderá ser concretizado. (WALLERSTEIN, 2003, p. 13-14)

Podemos completar o argumento de Wallerstein com o corolário do pensamento conservador na sua forma tipicamente religiosa – a promessa de felicidade na vida futura, após os sofrimentos vividos na Terra, como um substituto para a inquietação pela felicidade terrena. Tenhamos isso em mente ao examinarmos as ideias de Allan Kardec.

Ainda que consideremos Kardec, em linhas gerais, um burguês liberal (AUBRÉE e LAPLANTINE, 1990, p. 72), para melhor conhecer o seu perfil vale anotarmos o que dizem Dora Incontri e Alessandro Bigheto a respeito do educador lionês:

Kardec era um educador preocupado com as questões sociais, que militava pela educação popular. Já aos 24 anos de idade, escreveu brilhante ensaio Proposta para a melhoria da Instrução Pública (ver RIVAIL, 2000) e durante décadas deu cursos gratuitos, em sua própria casa, de química, matemática, astronomia, fisiologia, gramática... numa tentativa de democratizar o conhecimento.

Ao que parece, manteve relações com os socialistas (depois chamados de utópicos por Marx e Engels), pois em sua fase espírita, os

cita constantemente, entre eles, Fourier, e Saint-Simon. (Robert Owen, por sua vez, recebeu influência de Pestalozzi, pois o visitou em Iverdon e mais tarde tornou-se adepto do espiritismo). O pesquisador francês François Gaudin descobriu recentemente documentos ainda inéditos, revelando a parceria de Kardec com o amigo Maurice Lachâtre, conhecido socialista de tendência anarquista e editor das obras de Marx, em fascículos populares. Ambos tiveram um projeto economicamente fracassado de fundação de um banco popular, possivelmente nos moldes do que queriam os socialistas pré-marxistas e os anarquistas como Proudhon. (INCONTRI e BIGHETO, 2004, p. 2)

Ressaltamos, contudo, que é visível a oposição de Kardec às ideias revolucionárias de seu tempo e ao ativismo operário mais radical (ISAIA, 2004, p. 106). Na Revue Spirite, em um longo discurso de defesa à honra dos operários lioneses (e do Espiritismo) que frequentavam as reuniões espíritas, Allan Kardec transparece seu conservadorismo:

Esqueceis que são esses mesmos operários (...) que fazem a prosperidade de vossa cidade, através de sua indústria? Teriam sido criaturas sem valor moral os operários que produziram Jacquard? De onde saíram em bom número os vossos fabricantes, que adquiriram sua fortuna com o suor do rosto e graças à ordem e à economia? Não é insultar o trabalho comparar seus teares a forcas [potences, em francês] ignóbeis? Ridicularizai-lhes a linguagem e vos esqueceis de que o seu ofício não lhes permite fazer discursos acadêmicos. (...) fazei votos para que todos [os operários] o sejam [espíritas], uma vez que é no Espiritismo que eles haurem os princípios de ordem social, de respeito à propriedade e de sentimentos religiosos.

Sabeis o que fazem os operários espíritas lioneses, que tratais com tanto desprezo? Em vez de se desequilibrarem num cabaré, ou de se alimentarem em doutrinas subversivas e quiméricas, nessa oficina que por irrisão comparais ao antro de Trophonius, em meio a esses teares de quatro forcas, eles pensam em Deus. Eu os vi durante minha estada aí; conversei com eles e me convenci do seguinte: Entre eles muitos maldizem seu trabalho penoso; hoje o aceitam com a resignação do cristão, como uma prova; muitos viam com ciúme e inveja a sorte dos ricos; hoje sabem que a riqueza é uma prova ainda mais perigosa que a da miséria, e que o infeliz que sofre e não cede à tentação é o verdadeiro eleito de Deus; sabem que a verdadeira felicidade não está no supérfluo e que aqueles que são chamados os felizes deste mundo também padecem cruéis angústias, que o ouro não acalma. Muitos se riam da prece; hoje oram e reencontram o caminho da igreja, que tinham esquecido, porque outrora não acreditavam em nada e agora crêem; vários teriam sucumbido no desespero; hoje, que conhecem a sorte dos que voluntariamente abreviam a vida, resignam-se à vontade de Deus, pois sabem que têm uma alma, do que antes não estavam certos. Enfim, por saberem que estão apenas de passagem na Terra, e que a justiça de Deus não falha para ninguém.

(...) reclamais contra elas [o operariado constituído por pessoas honestas e laboriosas] os rigores da autoridade civil e religiosa, quando são pacíficas e compreendem o vazio das utopias com que foram embaladas e que vos metem medo. (Revista Espírita, out, 1860, p. 436- 437; grifos no original)

Parece evidente, portanto, que Artur Isaia tem razão ao afirmar que

A aproximação com a ascese laica weberiana aparece claramente no modelo de trabalhador proposto por Kardec, cumpridor de suas obrigações profissionais, familiares e civis, conformado ao seu destino, não invejoso da riqueza dos patrões, comprometido com o aperfeiçoamento contínuo de seu trabalho e refratário ao espírito de rebelião. Tanto o progresso material como o espiritual deveriam ser frutos do comprometimento individual do homem. (ISAIA, 2004, p. 106)

O problema da impossibilidade da injustiça é um dos elementos que mais chamam a atenção quando nos propomos a examinar o pensamento de Kardec. É lugar comum entre os espíritas creditar as “aparentes injustiças” ao resultado da “lei de causa e efeito”. Se hoje sofremos, é porque ontem (nesta ou em reencarnações passadas) fizemos sofrer, afirma-se costumeiramente. Já em Kardec pode-se perceber uma oscilação em seu entendimento do problema da justiça, do sofrimento, da provação e da expiação, isto é, do modo como se realiza a justiça divina. Se n’O Livro dos Espíritos há diversas passagens que afirmam que os sofrimentos não são necessariamente formas de expiação, apesar de servirem sempre como provações (ex.: questão 984), chama a atenção em especial a abordagem dada à questão por Allan Kardec no capítulo V – “Bem-aventurados os aflitos” – d’O Evangelho

segundo o Espiritismo, no qual considera que “a fé no futuro pode consolar e levar à

paciência, mas não explica essas anomalias que parecem desmentir a justiça de Deus” (KARDEC, 2000 [1864], p. 71). Neste capítulo, predomina o raciocínio de Kardec a partir do princípio de que “as vicissitudes da vida têm, pois, uma causa, e, uma vez que Deus é

justo, essa causa deve ser justa” (KARDEC, 2000 [1864], p. 71; itálico no original). No

item “Causas anteriores das aflições” Kardec parece negar a possibilidade da fatalidade, utilizando o princípio supracitado, expresso do seguinte modo: “(...) em virtude do axioma de que todo efeito tem uma causa, essas misérias são efeitos que devem ter uma causa e, desde que se admita um Deus justo, essa causa deve ser justa” (KARDEC, 2000 [1864], p. 74; itálico no original). No mesmo parágrafo está presente fortemente a ideia de que as supostas fatalidades em realidade são punições por erros cometidos em existências

pretéritas. É assim que, em seguida, afirma-se que “aquele que sofre, está expiando seu passado” (KARDEC, 2000 [1864], p. 74). Somente no item 9 é que Kardec traz um contraponto a todo o raciocínio que vinha desenvolvendo:

Entretanto, não seria preciso crer que todo sofrimento suportado neste mundo seja, necessariamente, o indício de uma falta determinada; são, frequentemente, simples provas escolhidas pelo Espírito para acabar sua depuração e apressar seu adiantamento. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas a prova não é sempre uma expiação. (KARDEC, 2000 [1864], p. 75)

Todavia, mesmo nessa passagem, está implícita a negação da possibilidade de injustiça por inferência do princípio de perfeição de justiça divina. O Espírito, ao passar por vicissitudes, ao sofrer, se não está expiando, está passando por uma provação definida por

escolha sua. O sofrimento ao acaso, por fatalidade, por injustiça decorrente de ações

humanas não determinadas pela providência divina, parece então inconcebível. O que dificulta ou mesmo impossibilita o reconhecimento da injustiça social.

Com isso vemos que a dificuldade da maioria dos espíritas em reconhecer ontologicamente a injustiça encontra esteio no pensamento de Kardec40. O que, de resto, é um problema de todo pensamento religioso ou filosófico que presuma a perfeição da justiça divina, pois se enfrenta o desafio de não entrar em contradição com esse princípio ao explicar o mal, o sofrimento e a injustiça manifesta no mundo.

Não obstante, para Aubrée e Laplantine, o Espiritismo é uma doutrina progressista e igualitária, que tenta conciliar o liberalismo com o socialismo utópico, preconizando uma revolução moral do indivíduo com consequências sociais (AUBRÉE e LAPLANTINE, 1990, p. 73-78). Esta tensão conciliatória parece manifestar-se com mais clareza n’O Livro

dos Espíritos. Vejamos algumas passagens ilustrativas:

717. Que pensar dos que açambarcam os bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, em prejuízo dos que não têm sequer o necessário?

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É curioso que Kardec, acostumado a raciocinar a partir da metáfora das dívidas e dos pagamentos, não tenha expressado (ao menos na passagem em foco d’O Evangelho segundo o Espiritismo) a possibilidade lógica de “equilibrar o déficit” causado pelos sofrimentos injustamente sofridos no presente apenas com a reparação ou compensação possibilitada pelo infinito da existência do Espírito, com múltiplas reencarnações e experiências a serem vividas. Em suma, raciocinando com o horizonte das “vidas futuras” e não com o subterrâneo das “vidas passadas” (sofrimento como expiação ou provação por escolha). A nosso ver, a razão dessa interessante ausência em Kardec mereceria um acurado estudo histórico e filosófico.

- Desconhecem a lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionaram. (KARDEC, 2006 [1860], p. 247; itálico no

original, indicando ser o texto dos Espíritos interlocutores de Kardec)

Aqui um claro problema de justiça na distribuição dos bens disponibilizados pela natureza. Já no capítulo IX – Lei de Igualdade, a tensão entre o pensamento liberal burguês e o socialismo é mais evidente. Comparem-se especialmente as questões 806 e 806a com as questões 811, 811a e 812:

806. A desigualdade das condições sociais é uma lei natural?

- Não; é obra do homem e não de Deus41. 806-a. Essa desigualdade desaparecerá um dia?

- Só as leis de Deus são eternas. Não a vês desaparecer pouco a pouco, todos os dias? Essa desigualdade desaparecerá juntamente com a predominância do orgulho e do egoísmo, restando tão-somente a desigualdade do mérito. Chegará um dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não mais se olharão como de sangue mais ou menos puro, pois somente o Espírito é mais puro ou menos puro, e isso não depende de posição social.

(...)

811. A igualdade absoluta das riquezas é possível e existiu alguma vez?

- Não, não é possível. A diversidade das faculdades e dos caracteres se opõe a isso.

811-a. Há homens, entretanto, que crêem estar nisso o remédio para os males sociais; que pensais a respeito?

- São sistemáticos ou ambiciosos e invejosos. Não compreendem que a igualdade seria logo rompida pela própria força das coisas. Combatei o egoísmo, pois essa é a vossa chaga social, e não correi atrás de quimeras.

812. Se a igualdade das riquezas não é possível, acontece o mesmo com o bem-estar?

- Não; mas o bem-estar é relativo e cada um poderia gozá-lo, se todos se entendessem bem.... Porque o verdadeiro bem-estar consiste no

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Na sua linguagem, Kardec parece alternar entre um pensamento naturalista e um pensamento teísta (em que Deus intervém no mundo através de sua providência). Assim, mesmo que as desigualdades sociais não sejam obra de Deus é possível Kardec perguntar, na questão 814: “Por que Deus concedeu a uns a riqueza e o poder e a outros a miséria?” (grifos nossos), obtendo a resposta “Para provar a cada um de uma maneira diferente. Aliás, vós o sabeis, essas provas são escolhidas pelos próprios Espíritos, que muitas vezes sucumbem ao realizá-las” (KARDEC, 2006 [1860], p. 273). Assim, o humano e o divino imbricam-se no raciocínio de Kardec relativo aos problemas sociais, o que dá azo a alguma forma de naturalização das desigualdades sociais.

emprego do tempo de acordo com a vontade, e não em trabalhos pelos quais não se tem nenhum gosto. Como cada um tem aptidões diferentes, nenhum trabalho útil ficaria por fazer. O equilíbrio existe em tudo e é o homem quem o perturba. (KARDEC, 2006 [1860], p. 272-273)

Se tomarmos o jogo de perguntas e respostas d’O Livro dos Espíritos como efetivo

diálogo42, então se torna possível até mesmo uma distinção entre o pensamento liberal burguês de Kardec e o raciocínio socialista dos supostos Espíritos comunicantes (ou, numa versão cética, simplesmente dos que se diziam médiuns)43. São exemplares nesse sentido as questões sobre a origem da desigualdade das riquezas44 e sobre o direito de propriedade. Na questão 808 Kardec pergunta: “A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros?” A resposta aponta para um tema clássico do socialismo, tornado célebre pela obra de Proudhon em que indaga O que é a propriedade? respondendo que é um roubo. Diz-se na resposta, constituída de uma pergunta retórica: “Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?” (KARDEC, 2006, p. 272 [1860]). Kardec segue interpelando na questão 808a de um modo afirmativo, dando a entender um efetivo debate: “Mas, a riqueza herdada, essa não é fruto de paixões más” (tradução nossa). E o retrucante insiste:

Que sabes disso? Remonta à origem e verás se é sempre pura. Sabes se no princípio não foi o fruto de uma espoliação ou de uma injustiça? Mas sem falar em origem, que pode ser má, crês que a cobiça de bens mesmo os melhor adquiridos, e os desejos secretos que se concebem de possuir o mais cedo possível, sejam sentimentos louváveis? Isso é o que Deus julga, e te asseguro que o seu julgamento é mais severo que o dos homens. (KARDEC, 2006 [1860], p. 272)

Já sobre o direito de propriedade pode-se interpretar as questões 880 a 885 como uma tentativa insistente de Kardec em defender a legitimidade do direito de propriedade

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E aqui, evidentemente, não vem ao caso a natureza das partes em diálogo. Se os espíritas chamam de Espíritos os interlocutores de Kardec, os católicos podem chamá-los de demônios e os céticos de inconsciente (ou consciente mesmo) dos supostos médiuns.

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Também se pode pensar simplesmente que Kardec estaria oscilante em suas ideias ou ainda que o contraste de opiniões se tratava de um artifício de exposição do pensamento filosófico kardequiano, tal qual fizera, por exemplo, Platão com seus diálogos conduzidos pelo protagonista Sócrates.

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Sobre a desigualdade das riquezas o texto mais conservador de Kardec encontra-se n’O Evangelho Segundo

o Espiritismo, capítulo 16 – Não se pode servir a Deus e Mamon, item “Desigualdade das riquezas”, no qual

legitima a concentração das riquezas nas mãos de alguns poucos como necessidade para o progresso e naturaliza a diferença entre ricos e pobres, pensando-a mesmo como justa através da reencarnação.

encontrando nas respostas uma espécie de relativização desse direito, subordinando-o aos critérios de justiça e de solidariedade. Destacamos as questões 881, 884 e 885: