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O momento em que Cecilia iniciava seu caminho de ingresso definitivo no candomblé coincidiu com anos de turbulência política e social, onde os referenciais africanos foram alvo, sobretudo, de intensa campanha negativa e aniquiladora sobre as religiões afro-brasileiras (Braga,1995).

Nesse contexto, suas práticas mediúnicas podem ser também compreendidas como reação contra-aculturativa e edificadora de uma nova identidade social permeada por aspectos multiculturais. As histórias que serão analisadas agora corroboram com essa interpretação. A primeira ocorreu e é mais uma vez Mãe Pastôra que relembra.74

Esse foi o momento de conflito na vida de Cecilia, mas também a ocasião em que passou a existir civilmente. A identidade civil (Vide Anexo 6) só foi expedida em virtude dessa ocorrência policial em que ela teve que prestar esclarecimentos na delegacia sobre uma consulta pessoal em que tinha adivinhado o furto de um objeto de ouro por uma pessoa de uma família nobre em Salvador, cuja culpa havia sido atribuída à empregada doméstica Quando se apresentou muito constrangida diante do delegado, cujo nome não foi possível descobrir, temendo as humilhações a que seria submetida, pois, naquela época, muitos praticantes tanto do espiritismo, como dos candomblés temiam confrontar-se com as autoridades e verem violados seus templos. Com veemência, Mãe Pastôra fala em “respeito à polícia”, mas esse respeito era muito mais medo da violência policial e do sarcasmo em relação às práticas de

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religiosidade. Certamente existiam os charlatões que abusavam da credulidade popular, o difícil era exatamente proceder a esta análise em virtude da carga de preconceito que justificava as perseguições e apreensões. (Braga, 1995).

Contrariando a primeira expectativa, Cecilia pôs-se altiva e apresentou-se imediatamente como uma “pessoa direita e honesta”, “mulher de uma palavra só”, no que o delegado ofereceu uma cadeira a ela, independente de solicitação, disse ao delegado “que não dizia mentiras e só falava a verdade, ele mesmo tinha uma doença incurável.” 75 A revelação surpreendia o delegado, pois se tratava de uma enfermidade que ele ocultava da própria família e não havia dividido o problema com ninguém, compreendeu, a partir daquele instante, que aquela senhora negra era especial. Encerrou de imediato a acareação e aquele constrangedor encontro: “Basta minha senhora, quanto a essa corja aí eu resolvo depois.” 76 Teria dito o delegado.

Sabendo que ela não tinha registro quando foi solicitada sua identidade civil, providenciou tirá-los, cinqüenta e seis anos depois da data aceita como nascimento, atrelada à data em que se comemora o dia de Santa Cecília padroeira da música77. O delegado, além de ouvir sua advinhação-denúncia passou posteriormente a seu cliente e amigo. Esta é a versão de sua filha Pastôra de Iemanjá, provavelmente a mesma história foi narrada por sua filha de santo, Alzira Santana Lacerda, informando mais detalhes curiosos como, o fato de quem se dirigiu à delegacia foi Maria Sofia, espírito que utilizava o corpo de Cecília para comunicar-se e do registro na polícia do Templo Espírita Maria Madalena de Jesus, sob sua direção, como determinava o Código Civil para as casas de culto espírita78. Maria Sofia, segundo Alzira, falava como uma africana, ou seja, se expressava semelhante a um escravo que tinha recentemente aprendido o português. O delegado teria perguntado como ela sabia do roubo, no que o espírito de Sofia respondeu que, “o cavalo dela olhava no copo e ela tinha consciência

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Entrevista concedida à autora por Mãe Pastôra, 2007. 76

Idem. 77

E contrariando o significado do nome Cecília, que segundo o livro dos nomes, quer dizer “ceguinha”, tratava- se de alguém com habilidades mediúnicas dada a objetividade dos dados informados aos consulentes.

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do que tava falando, mande em tal lugar assim, assim e veja se o objeto não está lá, aí foi à polícia com o fulano no lugar onde ela indicou e nisso encontrou o objeto”.79

O depoimento de Alzira é bastante interessante, por precisar o conflito que resultou no registro policial da sessão espírita de Cecilia, naquele momento da Liberdade.

O Templo foi denominado Maria Madalena de Jesus. A própria Alzira, teria preenchido a ficha de identificação e afixado na porta, o que evitaria constrangimento em outras averiguações policiais:

Ai fez o papelzinho registro para registrar a casa, que a casa agora ficou conhecida, quando cheguei achei lá o papel, preenchi e botei lá na porta, eu enchi o papel e botei. (idem)

Estamos nos anos 20/30 do século passado, quando as investidas policiais e as denúncias de charlatanismo ameaçavam as casas de cultos e sessões espíritas, que por sua vez buscavam legalizar-se através de registro policial, mas o que não evitava os constantes reclames da população sobre os abusos cometidos por charlatões, curandeiros e visionários e, ao mesmo tempo, corroboravam com o ideologismo de uma modernidade que se baseava na lógica do aniquilamento de práticas culturais populares e, sobretudo, que evidenciassem a matriz africana de sua população. 80

Outro aspecto foi o medo evidenciado e a tristeza com que Cecília recebeu a intimação policial para prestar esclarecimentos sobre o autor do furto. Enfatiza-se o fato de ela ter dito que nunca adentrou uma delegacia, à época, sinônimo de um ambiente para as classes baixas e moralmente depreciadas. Estar na delegacia, espaço da masculinidade e da ênfase dos estereótipos socialmente atribuídos a mulheres das classes populares, era humilhante para ela.

É interessante evidenciar que, na segunda versão narrada pela informante, Alzira, quem teria prestado esclarecimento foi o próprio espírito de Maria Sofia, que já havia se utilizado do corpo de Cecilia para indicar com precisão o local onde o objeto fora escondido. Talvez o fato

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Entrevista concedida em 1987.

80Durante os anos 20 e 30 do século passado, o jornal A Tarde publicou inúmeras noticias sobre denúncias e perseguições às práticas culturais e religiosas das camadas populares.

de Sofia ter-se apresentado reforçasse mais no plano místico-religioso os adjetivos por ela exaltados, como falar a verdade e honestidade. Após o ocorrido, o delegado convidou-a para com ele trabalhar, porém recomendando que não iria cobrar, uma alusão clara às denúncias de extorsões em que figuravam pessoas com habilidades semelhantes a dela. De forma muito inteligente “Maria Sofia” respondeu, inquirindo sobre o salário do delegado no desempenho da sua atividade. Dita a resposta, imediatamente retrucou com uma hábil e filosófica conclusão: “que preferia continuar trabalhando para o povo”.

Não se sabe ao certo quanto percebia o delegado, mas concluímos que o espírito ali comparava o trabalho enquanto missão espiritual, portanto gratuito, ao trabalho pela necessidade de sobrevivência material. Ainda que não estabelecesse valor para as consultas, todos os informantes lembraram-se de contribuições que lhe ofereciam em torno de hum mil réis considerado uma quantia ínfima, ou seja, não chegava a constituir-se num pagamento às consultas por ela realizadas. Neste sentido, Eulina Perez afirma:

... mas ela não cobrava, cobrava hum mil réis, um negocio que eu não sei nem dizer, um tostão, isso sei lá a quase quarenta anos atrás . Um negocio sério, eu dizia. Não pode não pode...81

E dessa forma, não se tratava de qualquer serviço comercializável que lhe conferisse uma renda regular.

Nessa versão, a narradora Alzira Lacerda omitiu ou não recordou do fato principal que Cecilia teria assegurado ao delegado que se tratava de uma mulher em cujas palavras podiam confiar e respeitar, até porque fez uma grande revelação sobre a saúde dele e passou a tê-la como amiga e consultora espiritual. “Olhando pra o delegado, ele continuou amigo da casa, indo à missa fazendo festa, fazendo tudo, levou muitos anos amigo da Casa.” 82

Esse delegado faria assim parte da rede de amigos e pessoas solidárias com as quais contou Cecília durante toda sua vida, o prestígio dessas pessoas assegurava a realização dos

81 Entrevista concedida em 1987. 82

rituais espíritas e sempre estavam de prontidão para solucionar possíveis conflitos que envolvessem a comunidade.

E mais uma vez, um caso envolvendo a polícia na vida de Cecilia. Nessa ocasião já havia se transformado em Cecilia do Bonocô, com terreiro estruturado. Estávamos em dezembro de 1964, dia das Águas de Oxalá, quando pela madrugada uma ronda policial, atendendo a uma denúncia anônima, apreendeu os atabaques, acusando-a de estar tocando sem pedir autorização na Secretaria de Segurança Pública, seguindo a recomendação que obrigava as casas de culto afro-brasileiro a solicitarem autorização para realização das cerimônias públicas83. A denúncia teria partindo de alguém afinado com a política que inibia e violava os objetos sagrados no candomblé ou simplesmente por alguém que se sentia incomodado pelos toques dos atabaques na madrugada, como é tradição nesse ritual.

Muito magoada pelo acontecimento, teria segundo nossos informantes, dito que “Não iria buscar os atabaques nem tocaria mais candomblé.”84 Coincidência ou não, no ano seguinte, na mesma cerimônia para Oxalá, morreu sem ter dado continuidade às festas públicas anuais. Seja como for, o orixá dela já havia anunciado publicamente que “até 21 anos ele garantia”.85Por diversas vezes, ela manifestada com Obaluaê, fazia previsões acerca dos acontecimentos e uma delas foi sobre o seu tempo de vida e prática religiosa no candomblé. Completaria 22 anos de vida religiosa em dezembro de 1965, conforme um papelzinho no qual foi registrado o recado da entidade e ainda é guardado como verdadeira relíquia. Vide documento abaixo:

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Segundo Mãe Pastôra, sua mãe estava em dias com a Polícia e comprovava com documento cedido pela própria Secretaria, tudo partia de uma falsa denúncia, pois os policiais levaram os atabaques, mas sem se darem conta de que se tratava da casa de Cecilia do Bonocô. Os atabaques foram devolvidos no mesmo dia, tendo ido buscá-lo seu amigo e cliente Umbelino Pereira que em entrevista (1987) confirmou esse acontecimento. O mesmo caso foi narrado por Mãe Irene Bamboxê.

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Conforme entrevista de Mãe Pastora 1985, Sr. Waldomiro Ferreira, (1919-1992), realizada em 1987, Irene Bamboxê, 2008.

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