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Do esquecimento ao desvelamento e afirmação do surdo como pessoa: Um pouco de história.

QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO

5. Sinais de alerta, identificação e meios técnicos de ajuda às pessoas surdas

2.1.2. Educando os surdos: Dilemas, concepções e perspectivas.

2.1.2.1. Do esquecimento ao desvelamento e afirmação do surdo como pessoa: Um pouco de história.

Se, nos dias de hoje, o direito à educação nos parece ser um direito inalienável de todo e qualquer ser humano, o mesmo não acontecia em outras épocas históricas. No que diz respeito à educação dos surdos, este direito foi-lhes constante e insistentemente negado por se considerar que eram incapazes de ser ensinados, porque de autênticos seres menores se tratavam. Pobres imbecis, a quem, quais seres dignos de piedade, quando não de repulsa, era recusado estar na escola e, por consequência, ser na sociedade.

Griffith (1985), Goffman (1982), Sánchez (1990) e Ventosa e Marset (2003) referem que, durante épocas a fio, não foi só a educabilidade das pessoas deficientes que foi posta em causa, como também outros direitos considerados fundamentais para o desenvolvimento bio-psicossocial de todo e qualquer ser humano: O direito à sexualidade, à maternidade/paternidade, à família, à posse ou herança de bens, entre outros.

A este propósito – dentro do contexto legislativo espanhol actual (que, diga-se de passagem, se adequa largamente ao nosso2

“Quando uma pessoa é dada como incapaz, o seu estado civil sofre alteração. A incapacidade e a limitação da sua liberdade de actuar deverá ser completada, em função do

) – dizem-nos Ventosa e Marset (2003) que:

2

Veja-se a título de exemplo o Decreto-lei Nº 329-A/95 de 12 de Dezembro e o Decreto-lei Nº 131/95 de 6 de Junho do Código do Processo Civil (Rodrigues, 2001).

grau de incapacidade que determine a sentença de interdição ou inabilitação, por outra pessoa ou entidade pública ou privada, que será constituída como tutor ou curador do incapaz. (…)

[Por exemplo] no âmbito patrimonial, e salvo se a sentença determinar outra coisa, a capacidade de actuar é completamente nula e o incapaz não poderá fazer contratos. (…) [e no que diz respeito ao matrimónio] um inabilitado está absolutamente impedido de casar seja com quem for” (pp. 133- 134).

No que diz respeito à educação dos surdos, Griffith (1985) e Sánchez (1990, s/d) reforça a ideia de que até ao final do século XV, os surdos eram considerados atrasados mentais e postos à margem pela sociedade e pelas instituições sociais, nomeadamente pela escola, que lhes recusava qualquer tipo de educação, uma vez que não os considerava com direito a tal.

Historicamente, a situação da educação dos surdos começa a sofrer algumas alterações, ainda que de modo lento e gradual, no início do século XVI. Apesar de não existirem ainda qualquer tipo de escolas especializadas para a educação dos surdos, esta, no entanto, passa a ser-lhes facultada por diversas personalidades ouvintes como, por exemplo, o italiano Giralamo Cardamo – que utilizava sinais e linguagem escrita – e o espanhol Pedro Ponce de Leon que, para além de utilizar sinais, treinava a voz e a leitura labial.

Desta esta data até ao século XX, autores como Sánchez (1990, s/d), Gomes, (1998), Taylor (1994) e Widell (1992) destacam algumas personalidades que, um pouco por todo o mundo considerado até então civilizado, se dedicaram à educação dos surdos. São disso exemplo, o espanhol Ivan Pablo Nonet, o francês Abbé Charles Michel de l’ Epée, os alemães Samuel Heinicke e Moritz Hill, o americano Alexandre Gran Bell e o belga Ovide Decroly e os portugueses Teresa de Saldanha e Jacob Rodrigues Pereira.

Se sobre a educabilidade dos surdos já se vislumbrava algum consenso, o mesmo não se poderá dizer no que concerne aos métodos dessa educabilidade – questão, aliás, ainda colocada nos dias de hoje (Bueno, 2001; Corker, 1990; Fernandes, 1990; Freire e César, 2002; Lacerda e Góes, 2000; Souza, 1998). Assim, se uns acreditavam que o melhor método de educar os surdos seria o denominado “Método Oral Puro” – onde é dada primazia à oralização – outros defendiam que o melhor método seria a utilização da língua gestual – já conhecida pelos alunos – outros, ainda, na tentativa de conciliar estes dois métodos, sugeriam o “Método Combinado”, consistindo este tanto na utilização da linguagem oral como gestual, isto é, aquilo a que hoje se chama de bilinguismo (Almeida, 2000; Botelho, 1998; Melo et al., 1984; Quadros, 2002, Sánchez, 1990, s/d; Widell, 1992.).

Pensamos ser importante referir também o Congresso Mundial de Professores de Surdos, que teve lugar em Milão, em 1880, que veio a pôr cobro à convivência, mais ou menos tolerada, mais ou menos pacífica, entre a língua falada e a gestual, estipulando-se que todos os surdos deveriam ser ensinados pelo “Método Oral Puro” o que, no entender de Sánchez (s/d), de Brito (1993), de Sá (1999) e de Skliar (1997a, 1998, 1999), se constitui num autêntico genocídio, porque tal postura acarretou graves consequências no desenvolvimento da pessoa surda, nomeadamente ao nível da linguagem, do raciocínio e do pensamento abstracto, assim como da convivência social

Subjacente a esta ideia, estaria o medo da diferença (Estébanez e Valmaseda, 1995; Marchesi, 1995; Sánchez, 1990, s/d; Skliar, 1997a; s/d), ou seja:

“A ideia era fazer com que a surdez se tornasse invisível na sociedade, que os surdos, sem usar sinais parecessem ‘seres normais’. A filosofia que guiava os oralistas era a da eugenia, ou seja, a ideia de que existiam condições propícias para o ‘melhoramento’ da raça humana. A mesma ideia foi uma das molas mestras do nazismo de Adolf Hitler” (Sánchez, s/d, p. 15). Desde o referido congresso, passou quase um século para que se pusesse uma pá de cal sobre o oralismo (Sánchez, s/d), isto é, para que fosse respeitada a pessoa surda na sua singularidade e especificidade, olhada como um indivíduo que tem uma língua e uma cultura próprias, como os demais cidadãos. Tal significa que devem ver garantidas as condições para o seu desenvolvimento enquanto pessoas, nomeadamente, para comunicar através de uma língua organizada e natural que, no caso, é a gestual, tendo como resultado a afirmação de pessoas preparadas para a convivência e intervenção social, isto é, cidadãos de direito e de facto (Couto- Lenzi, 1997; Griffith, 1985; Lane, 1997; Sacks, 1998; Skliar, 1998, 1999). Convém, contudo, não esquecer que a comunicação exige reciprocidade, pelo que os ouvintes deveriam estar preparados para comunicar com os não ouvintes.

Talvez seja por isso que educar deva ser sempre educar para a cidadania (Figeiredo, 2001; Fonseca, 2001; Martins, 1991; Paixão, 2000), isto é, pensar o indivíduo na sua singularidade, mas também como fazendo parte de uma sociedade, de uma cultura, o que implica não só saber mais e melhor sobre si, mas também mais e melhor sobre o outro (Aranha, 2000; Rodrigues, 2001, Touraine, 1998), até porque:

“Saber mais sobre o outro é contribuir para sabermos mais de nós próprios, para desenvolvermos o domínio de nos mesmos e para nos comprometermos no aperfeiçoamento da sociedade. Veja-se a nossa própria história – sempre que nos abrimos ao exterior e aos outros ganhámos, sempre que nos ficámos perdemos e ficámos mais periféricos e marginais”. (Martins, 1997, p. 130)

No que diz respeito a Portugal, o “esquecimento” dos surdos enquanto pessoas e, por conseguinte, educáveis, prolongou-se até 1823, altura em que, por iniciativa de D. João VI e de sua filha, a Infanta D. Isabel Maria, surge o primeiro instituto de surdos, sedeado em Lisboa e dirigido pelo Per Aron Borg, fomentando a língua gestual na educação dos surdos (Gomes, 1998; Martins e Amaral, 1984).

Ribeiro de Castro (2002), no seu estudo sobre Teresa de Saldanha, sugere que esta tenha sido, em 1868, pioneira na inclusão de alunas surdas nas escolas do ensino regular quando, a pedido de uma família de Lisboa para que educasse uma menina surda-muda, pediu a duas das suas religiosas que obtivessem formação no ensino de surdos Foi com base nesta formação na Irlanda que as duas religiosas educaram a referida menina, consistindo esta educação em lições particulares baseadas no método aprendido na Irlanda e em aulas do ensino regular e no convívio com as restantes alunas no recreio.

Martins e Amaral (1984) e Gomes (1998) referem outros nomes e instituições relevantes para a compreensão da evolução da educação de surdos (em regime segregador) em Portugal: Pedro Maria de Aguilar, Eliseu de Aguilar, Miranda de Barros e a fundação do Instituto Araújo Porto, em 1893.

No século XX, devido, sobretudo, aos movimentos cívicos e dos direitos humanos, reconhece-se a necessidade de garantir a todos o direito à educação. Surgem na Europa e na América do Norte os movimentos de normalização e de integração de pessoas deficientes, aumentando por toda a parte o número de escolas especiais para surdos, assim como a integração dos mesmos nas escolas do ensino regular, culminando no movimento da escola inclusiva, entendida como uma escola que garanta a todos os alunos, independentemente das suas características físicas e sociais, o direito a uma educação que satisfaça as suas necessidades educativas (Ainscow, 1997, 1998; 1999, 2000; Costa, 1991, 1996, 1999; Hopkins, West e Ainscow, 1996; Giangreco, et al., 1993; Moen, 1997; Niza, 1996, 1999; Tilstone, Florian e Rose, 2000).

Este movimento, no entender de Costa (1996, 1999), Baptista (1999), Bairrão (1998) e de Silva (1987), deve-se em parte à organização a nível mundial das diversas minorias, nomeadamente das pessoas portadoras de deficiência – agora denominadas, sobretudo no meio educacional, por “pessoas com necessidades educativas especiais” (NEE) – que, mais do que o direito à igualdade, reivindicam o direito à diferença, exigindo, por isso, a garantia dos seus direitos enquanto cidadãos. No que diz respeito aos surdos, é exigido o respeito pela sua identidade linguística e cultural, garantindo, deste modo, um ensino de qualidade que lhes possibilite as mesmas oportunidades

sociais (Bueno, 2001; Costa, 2000; Freire e César, 2001; Griffith, 1985; Quadros, 2002; Reis, 2002; Skliar, 1997a, 1998, 1999), sem que sejam alvo de piedade ou de políticas e práticas educacionais de sucesso escolar facilitista.

No que concerne a Portugal, é em 1913 que se desenvolve o ensino especial de surdos, pela mão do director da Casa Pia, Aurélio da Costa Ferreira, que organiza um curso de formação para professores do ensino de surdos, culminando este na criação do Instituto Jacob Rodrigues Pereira, o qual, ainda hoje, constitui uma referência importante na educação de surdos (Gomes, 1998; Martins e Amaral, 1984).

Gomes (1998) e Martins e Amaral (1984) referem ainda outras instituições que se dedicaram ao ensino de surdos, como o Colégio S. Francisco de Sales, o Instituto de Surdos do Porto e o Instituto de Surdos de Beja. No entanto, só nos anos 70 do século passado se verificam efectivamente as primeiras tentativas de integração de alunos surdos nas escolas do ensino regular. Refira-se ainda a importância que o associativismo teve na história da educação de surdos, nomeadamente pela criação da Associação de Pais para a Educação de Crianças Deficientes Auditivas, em 1973 (Gomes, 1998).

Os anos 80 são marcados, em Portugal e não só, pela discussão em torno da modalidade de educação de surdos (escolas especiais versus integração no ensino regular) e pelo modo de os educar (gestualismo, comunicação total e bilinguismo), resultando daqui a ideia de que não devem ser apenas os surdos a adaptarem-se ao mundo dos ouvintes, mas também estes ao mundo daqueles (Mollo, s/d, Monreal et al., 1995; Moores e Meadow-Orlans, 1990). Nesta linha foi, por exemplo, criada uma metodologia de ensino bilingue, onde a Língua Gestual Portuguesa é considerada a língua materna das pessoas surdas e a Língua Portuguesa a segunda língua, tendo sido a primeira reconhecida na Constituição Portuguesa apenas em 1997 (Antunes, 2000).

Um marco importante na educação não só dos surdos, mas de todas as pessoas portuguesas portadoras de deficiência, é a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (1986), que reconhece a todos o direito à Educação, assegurando “às crianças com necessidades educativas especiais, devidas a deficiências físicas e mentais, condições adequadas ao seu desenvolvimento e pleno aproveitamento das suas capacidades” (Ministério da Educação, 1986, Lei de Bases do Sistema Educativo, art. º 7).

Um outro marco importante na educação dos alunos considerados agora já não apenas como deficientes, mas como tendo determinadas necessidades educativas especiais, é a publicação do Decreto-lei 319 de 23 de Agosto de 1991. Segundo Costa

(1996), Correia (1997) e Gomes (1998), a publicação deste Decreto-lei veio possibilitar às escolas um suporte legal para optimizar o funcionamento no atendimento a crianças com NEE. Tal representa, por parte do país, o assumir dos direitos que este deverá garantir à população escolar com e sem NEE, devendo concretizar os grandes princípios subjacentes à escola inclusiva subscritos em diversos documentos internacionais (Amnistia Internacional, 1996; ONU, 1999, 2003; UNESCO, 1994, 1996, 1998, 2000).

Contudo, e apesar de Portugal ter adoptado medidas legislativas e subscrito diversos documentos internacionais que visam a garantia da educabilidade de todos, a experiência mostra que ainda há um hiato entre o legislado e o aplicado, entre os princípios e as práticas, entre a utopia e a realidade (César, in press; Cortesão, 2001; Costa, 1996; Freire e César, 2002; Melro e César, 2002).

Em jeito de conclusão, e para que a história das pessoas surdas – e com ela a da restante humanidade – seja marcada por momentos de maior realização e felicidade, convém não esquecer que:

“A acção humana pode ser comparada com um jogo colectivo, em que os participantes constróem e aprendem as regras. A nossa tarefa é de inventar novas formas de acção colectiva, novos modos de jogar em que todos possam ganhar” (Canário, 1997, p. 141).