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2.2.3.1 Partindo a caminho da “terra prometida”: A normalização.

O caminho acima referido inicia-se com aquilo que na história da educação dos alunos com NEE se designa por normalização (Bueno, 1993; Gofredo, 1997; Hegarty e Alur, 2002; Melro, 1999; Karaginis, Stainback e Stainback, 1999; Katoda e Miron, 1990; Pereira, 1993, 1998, 1998a, 1999). É nela que a polémica em torno da inclusão ou

exclusão dos alunos com NEE no ensino regular se inicia. Até então, estas pessoas eram abandonadas à sua sorte ou entregues a instituições filantropas,

“Cuja principal preocupação era garantir que grupos marginais, não ameaçassem (…) os valores (…) vigentes na época. (…) A maior parte dos indivíduos colados em instituições de reabilitação era considerada como integrante de vários grupos justapostos: indigentes, pessoas com comportamentos fora dos padrões, pessoas com deficiência visível, minorias e muitos imigrantes recém-chegados” (Karaginis, Stainback e Stainback, 1999, p. 37).

Segundo Sassaki (1997) a prática da integração social das pessoas com deficiência iniciou-se através de dois processos:

“1. Pela inserção pura e simples daquelas pessoa com deficiência que conseguiram e conseguem, por méritos pessoais e profissionais próprios utilizar os espaços físicos e sociais, bem como, seus programas e serviços, sem nenhuma modificação por parte da sociedade, ou seja, da escola comum, da empresa comum, do clube comum etc;

2. Pela inserção daqueles portadores de deficiência que necessitavam ou necessitam de alguma adaptação específica no espaço físico comum ou no procedimento de actividade comum afim de só assim poderem trabalhar, estudar, ter lazer, enfim, conviver com pessoas não deficientes” (p. 34).

Tais processo tinham por base a crença de que a deficiência, por si e em si mesma, era o eixo que definia e dominava toda a vida pessoal e social dos sujeitos, não se tratando, por isso, de um processo educativo mas sim “de um vulgar processo clínico”, cujo objectivo seria o de reabilitar (curar) as pessoas, tornando-as deste modo iguais aos considerados “normais” (Skliar, 1997, p. 9).

O conceito e a prática educativa da normalização aparecem associados ao movimento promovido pelas associações de pais em 1940, na Dinamarca, contra as escolas segregadoras que, seguindo o modelo médico-pedagógico da primeira metade do século XX, excluíam do sistema educativo todas as crianças portadoras de deficiência física ou mental. Este movimento recebe, pela primeira vez, em 1959, apoio e suporte legal do governo dinamarquês, incorporando na sua legislação o conceito de normalização definido por Bank-Mikelsen (1969, cit. por Niza, 1996). Por normalização, Bank-Milkelsen entendeu “a possibilidade de o deficiente mental desenvolver um tipo de vida tão normal quanto possível” (cit. por Niza, p. 141). Este representa o “primeiro passo a caminho da desinstitucionalização das pessoas com deficiência” (Niza 1996, p. 141). Desde então, passa a ser adoptado pela maior parte dos países europeus e da América do Norte. Contudo, só na Suécia, em 1976, com Nirje (1969) é que este conceito sofreu novos desenvolvimentos, deslocando-o dos resultados obtidos para os meios e os métodos (Niza, 1996). Nesse sentido, Nirje (1969) definiu a normalização como a forma de proporcionar às pessoas deficientes mentais o padrão e

as condições de vida quotidiana tão próximos quanto possível das normas e padrões da sociedade em geral.

Katoda e Miron (1990) consideram que tal princípio visava garantir aos indivíduos portadores de deficiência mental, de entre outros, os seguintes objectivos:

“ (1) Um ritmo diário normal; (2); uma rotina de vida normal; (3) um ritmo normal ao longo do ano, com férias e dias familiares com significado pessoal; (4) oportunidade de ter experiências de desenvolvimento ao longo do seu ciclo de vida; (5) o respeito e a consideração tão próximo quanto possível pelas escolhas e desejos das pessoas com deficiência; (6) viver num mundo bissexual; (7) aplicação de padrões económicos normais; (8) padrões normais de facilidade físicas, por exemplo, hospitais, escolas e casas” (p. 129).

Sofrendo as influências da normalização levada à prática nestes dois países escandinavos, Wolfensberger (1972) publica, no Canadá, um trabalho pioneiro sobre o princípio da normalização. Este autor atribui-lhe um significado mais abrangente, passando, por um lado, a ser alargado e aplicável não apenas às crianças portadoras de deficiência mental, mas a qualquer pessoa com deficiência e, por outro, a pôr a tónica na prestação dos meios culturais o mais normalizante possível. Assim, a normalização passa a ser definida como “o uso dos meios o mais normalizantes possível do ponto de vista cultural, para estabelecer ou manter comportamentos e características que sejam, de facto, o mais normal possível” (Wolfensberger, 1972, p. 29).

De acordo com Janial e Manzini (1999), a normalização tem sido um termo utilizado para identificar uma série de acções que propiciariam ao indivíduo portador de deficiência as mesmas oportunidades que são oferecidas aos indivíduos tidos como normais. No entanto, o autor adverte para os riscos que este termo corre ao ser utilizado muitas vezes como revelando desejo de querer, através dele, transformar o indivíduo portador deficiência num indivíduo normal. Neste equívoco residirá a divisão de opiniões sobre a conceptualização e sobre as práticas da normalização expressas nas palavras de Coll et al (1995), no contexto quer do que se entende por “deficiência” quer por “fracasso escolar”:

“A deficiência não pode ser vista como uma categoria com perfis clínicos estáveis, sendo estabelecida em função da resposta educacional [cpmo pretendia a normalização]. O sietema educacional pode, portanto, intervir para favorecer o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos com algumas características ‘deficitárias’. (…) O conceito de “fracasso”, cujas causas, embora pouco precisas, situavam-se prioritariamente em factores sociais, culturais e ducacionais, reavaliou os limites entre a normalidade, o fracasso e a deficiência, e como consequëncia disto, entre alunos que procuram a escola regular e alunos que vão a uma unidade ou escola de educação especial” (p. 10).

Rodrigues (2001) considera a normalização, do ponto de vista da problemática da diferença e da deficiência, como um dos movimentos que visava não tanto normalizar,

mas “proporcionar às pessoas com necessidades as condições de desenvolvimento, de interacção, de educação, de emprego e de experiência social, em tudo semelhantes às que essas pessoas teriam se não tivessem sofrido uma condição de deficiência” (Nirjke, 1969). Gribich e Sykes (1992) referem que as diferentes opiniões sobre a normalização podem sistematizar-se da seguinte forma: (1) direito à autodeterminação individual e pessoal, manifesta na facilitação dos padrões de vida das crianças e jovens deficientes idênticos aos disponíveis para os restantes indivíduos e na acomodação social dentro de um amplo leque de diferenças; (2) maximização das semelhanças comportamentais dos indivíduos com deficiência e comportamentos e atitudes dos indivíduos ditos normais, que constituem as maiorias socioculturais, passando esta pela construção de uma imagem que minimize as diferenças de atitudes e comportamentos entre os indivíduos portadores de deficiência e os indivíduos tidos como normais.

Do ponto de vista da integração escolar, a normalização veio trazer uma significativa mudança qualitativa na forma de entender e lidar com os alunos com deficiência, nomeadamente: (a) a colocação das crianças com deficiência dentro das escolas; (b) a preparação destas crianças para acederem, dentro do possível, às normas e valores da sociedade maioritária.

Para Cardoso (1996), a normalização pode corresponder, em termos de políticas educativas multiculturais, ao que o autor designa por modelo assimilacionista. Este modelo representa a primeira etapa do multiculturalismo que tem caracterizado as políticas educativas das sociedades actuais. Teoricamente, o assimilacionismo implica uma completa conformidade dos membros dos grupos culturais e etnicamente minoritários à cultura dominante, excluindo-se qualquer aceitação da sua cultura nativa: parte do pressuposto de que as minorias e os grupos marginalizados não têm os conhecimentos e competências necessárias para a sua inserção satisfatória na sociedade em geral, e em particular, no sistema económico, pelo que estão impossibilitados de melhorar as suas condições de vida. Nestas circunstâncias:

“Não tinha sentido que o governo e a escola promovessem a manutenção das culturas de origem das minorias, mas, pelo contrário, deviam dar-lhes oportunidades educativas, no âmbito da escola e currículos existentes, que permitissem a sua integração no sistema social e económico da cultura dominante. Mas, na realidade, o carácter monocultural do currículo escolar e a sua estrutura meritocrática, ajustadas aos alunos[das maiorias], reduzem as possibilidades de sucesso educativo das crianças pertencentes às maiorias e as chances de terem igualdades sociais e económicas” (Cardoso, 1996, p. 11).

Neste sentido, Sartre (s/d) diria que, na mormalização, a essência precederia a existência, porque uma vez deficiente, deficiente para sempre. Assim, para a

mormalização, a existência dos indivíduos estaria total e completamente determinada e condicionada pelas suas características individuais ou sociais. Para a normalização, as diferenças não são tanto produto das circunstâncias, mas sim da essência, da natureza dos indivíduos delas portadores (Janial e Manzini, 1999; Karaginis, Stainback e Stainback, 1999; Mittler, 2002, 2003).

Talvez, por isso, a educação dos então denominados “especiais” (não por o serem de facto e de direito, mas porque não se encaixavam nos padrões educacionais, físicos e sociais dominantes) circunscrevia-se às escolas especiais, separadas do sistema de ensino regular, justificada pela visão determinista e fatalista da deficiência (Atkins e Litton, 1994; Barton e Oliver, 1992; Billington, 2000; Brown et al., 1979; Casanova, 1990; Croll e Moses, 2000).

Na verdade, a normalização, fundada numa visão médico-pedagógica e, por consequência, curativa e correctiva da deficiência, considerava que os efeitos das deficiências físicas e sensoriais eram deterministicamente atribuídos ao próprio indivíduo. Assim, qualquer criança ou jovem com marcadas dificuldades físicas, sensoriais, mentais, comportamentais ou de comunicação, era claramente considerado como qualitativamente diferente do resto dos alunos, com características consideradas inalteráveis e permanentes e, como tal, fazia sentido a existência de um sistema educacional separado do ensino regular (Dessent, 1987; Gaspar, 1989; Matos, 1979; OCDE, 1994), responsabilizando os ditos deficientes pelos próprios problemas que apresentavam. Neste sentido, Mallin (1994) afirma que,

“Se por um lado, o discurso dominante em reabilitação enfatiza a necessidade de se incrementar as capacidades restantes do cliente [leia-se, das pessoas ditas com deficiência], por outro lado, a sua análise revela um enfoque no distúrbio, na doença, na deficiência. è o modelo médico aplicado à reabilitação. Existe o diagnóstico, o tratamento e a ‘cura’, como se a complexa questão da integração social das pessoas deficientes pudesse ser resolvida por uma operação, uma prótese, ou seja lá o que for” (p. 171).

Do ponto de vista educativo, o monoculturalismo e o etnocentrismo presentes no assimilacionismo e, consequentemente, na normalização, apresentam duas consequências dignas de registo: (1) ser pouco desafiador, uma vez que as práticas pedagógicas dos professores subjacentes ao assimilacionismo não requerem alterações significativas das práticas pedagógicas tradicionais; (2) criar currículos especiais e programas compensatórios assentes na ideia de que os alunos pertencentes às minorias (sejam elas de que ordem for) não conseguem acompanhar o currículo único devido a características biológicas ou psicológicas próprias, perpetuando-se, desta forma, as

assimetrias sociais e culturais (Andrews e Lupart, 2000, 2000a; Aranha, 2000; Barton e Oliver, 1992; Cardoso, 1996; Mittler, 2002, 2003; Rodrigues, 2000; 2001; Simon, 2000).

Para os defensores da normalização, ter dificuldades equivale àquilo que poderíamos designar por ausência de ser ou, como refere Simon (2000), por “a coisificação do indivíduo”, já que, como refere Rodrigues (2001), “a simples integração física não significa necessariamente que se estabeleçam contactos com a comunidade. Encarado desta forma, o conceito de “normalização” é bastante menos dinâmico e mais conservador do que o conceito de “valorização da função social” (pp. 23-24).

A normalização não aponta para um facto que será crucial para a inclusão efectiva dos alunos com deficiência no ensino regular: Um contexto de igualdade de oportunidades entre os alunos com e sem deficiência. Pelo contrário, o princípio da normalização diz respeito a uma colocação selectiva dos indivíduos portadores de deficiência na escola regular. Neste caso, por exemplo, o professor da classe comum não terá de receber um suporte do professor da área de educação especial – como acontece na filosofia inclusivista. Deste ponto de vista, o processo de normalização não é tanto um processo interno da escola, mas do aluno, uma vez que é este que precisa de mostrar que é capaz de nela permanecer (Andrews e Lupart, 2000; Hallahan e Kaufman, 1991; Westmacoft, 1996; Winzer, 1997).

É neste contexto que Bautista (1997) afirma, em jeito de crítica à normalização, que:

“O princípio da normalização leva implícito, como referente, o consceito de normalidade. A normalidade é um conceito relativo sujeito a critérios de tipo estatístico. [Porém,] o que hoje é normal pode não ser o ter sido ontem e não sabemos comos era amanhã; o que aqui é normal pode ser anormal noutro lugar ou vice-versa. De tal maneira que o normal e o anormal não se encontram dentro da pessoa mas fora dela; é aquilo que os outros percebem na pessoa. Por isso, é fundamental mudar a atitude da sociedade perante o indivíduo mais ou menos diferente, e não mudar a pessoa, o que por outro lado, não é muitas vezes possível” (p. 27).

Simon (2000) considera que apesar da normalização ter contribuído, de certo modo, para a colocação de alunos portadores de deficiência nas escolas do ensino regular, também nos diz que esta questão não é pacífica nem consensual. Assim,

Os partidários da integração [leia-se, normalização] avançam essencialmente com a necessidade de contactos sociais com as crianças comuns, com a vida quotidiana real. Os adversários avançam com a necessidade de métodos especiais, de cuidados particulares, de aparelhos diversos e frequentemente dispendiosos que não se pode encarar adquirir em cada escola. Como pano de fundo, perfila-se muitas vezes o receio da perda do emprego – para certos adversários da integração ou a diminuição dos custos para certos adversários da

institucionalização. (…) A escola, por si só, raramente obtém [os sucessos desejáveis] (p. 22).

No entanto, se pode ser considerado verdade que a escola por si só não garante a satisfação das necessidades educativas e sociais dos alunos com NEE, nomeadamente, em casos mais extremos e extremados de deficiência, também não pode ser considerado menos verdade:

“Que as instituições para deficientes (…) constituiem um meio artificial (…) que não é provavelmente o mais propício ao desenvolvimento de uma personalidade que deverá (…) fazer frente a uma sociedade (…) que não é muito tolerante quanto às diferenças” (Simon, 2000, p. 23).

Klein (1993) considera que o que subjaz à filosofia da normalização é a ideia de se estabelecer a partir do controlo, da regulação da população, ou seja, através do que Foucault (1997) chamou de “biopoder”: O interesse numa população “saudável”, perfeita, normal, ao mesmo tempo que incide numa questão mercantilista de produção, em que os sujeitos são governados e adestrados para a produção e para o consumo, contraria a formação de cidadãos críticos e interventivos, isto é, de pessoas conscientes da sua singularidade e do exercício dessa mesma singularidade, sendo que é injusto e inadequado sermos categorizados, a qualquer pretexto (César, in press; Leclerc, 2002; Ndayisaba e Grandmont, 1999; Rodrigues, 2001; Werneck, 1997, 2001, 2002)!

A normalização que prometera pôr termo à exclusão e segregação do “diferente” não passou disso mesmo: Uma promessa por cumprir. E não foi cumprida sobretudo porque insistiu na catalogação e na categorização do que não pode ser catalogado ou categorizado: O ser humano. Pelo contrário, a normalização fez carregar ao “diferente” pesados rótulos e carimbos que este acabou por interiorizar, pensando tratar-se de um ser menor e menorizado, porque incapaz de ser aquilo que nunca poderá ser: Uma cópia, que qual clone, teria de ser e de estar como a maioria, tida para si mesma como “normal”. Ou seja, para anormalização “a deficiência é vista como um ‘problema’ do indivíduo e, por isso, o próprio indivíduo terá que se adaptar à sociedade ou ele terá que ser mudado por profissionais através da reabilitação ou cura” (Fletcher, 1996, p. 25). E, no entanto, como pode um surdo ser e estar no e com o mundo do mesmo modo que um ouvinte? Como pode um cego ser e estar no e com o mundo do mesmo modo que um visual? Como posso ser e estar eu e estar no e com o mundo do mesmo modo que o outro?

“Se o critério para afirmar a singularidade educativa desses sujeitos é o de uma caracterização excludente a partir da deficiência que possuem, então não se está falando de educação, mas de uma intervenção; se se acredita que a deficiência, por si mesma, em si mesma, é o eixo que define e domina toda a vida pessoal e social dos sujeitos, então não se estará construindo um verdadeiro processo educativo, mas um vulgar processo clínico” (p. 9).

A este propósito, gostaríamos de relembrar as palavras de Freire (1983, 1987), por nos parecerem exprimir aquilo que a normalização esqueceu: O educador não pode dicotomizar. Pelo contrário, ele deve dialogar, fundando o seu fazer

“ [numa] praxis na qual a acção e a reflexão, solidárias, se iluminam constante e mutuamente. Na qual a prática, implicando a teoria da qual não se separa, implica também uma postura de quem busca o saber, e não de quem passivamente o recebe” (1983, p. 80),

pois, só “através do diálogo, reflectindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos, a seguir, atuar, criticamente, para transformar a realidade” (Freire, 1987, p. 123).