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Considerações iniciais sobre Base Industrial de Defesa e cooperação internacional

1.1. Panorama sobre a dinâmica armamentista

1.1.2. A essência da dinâmica armamentista de Barry Buzan e Eric Herring (1998)

Buzan e Herring (1998) tentam articular esses três modelos explorando seus méritos e limitações. Uma de suas primeiras proposições é a de situar a questão da segurança militar não exclusivamente sob o ponto de vista dos Estudos Estratégicos18, mas sim no contexto da política internacional, tendo o desenvolvimento tecnológico como pano de fundo. Resumidamente, esses autores buscam ―oferecer um quadro que conecte coerentemente a diversidade de temas atinentes à segurança militar, à tecnologia e à política internacional‖ (BUZAN e HERRING, 1998, p.1).

Os elementos teóricos profundos de ―Arms Dynamic‖ são provenientes da obra ―Security: a new framework for analysis‖ (BUZAN, WAEVER e De WILDE, 1998), na qual seus autores examinam as caracteristicas e dinâmicas da segurança em cinco setores: o tradicional militar, o político, o econômico, o ambiental e o societal. Desse modo, a abordagem multissetorial e a temática de securitização e de dessecuritização, elementos

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Sob o prisma dos Estudos Estratégicos, a RAM ―atual‖ pode ser simplificada no tripé emergência da qualidade sobre a quantidade, alta especificidade dos armamentos e importância de tecnologias comerciais com potenciais fins militares, como softwares, microeletrônica e Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC´s) em geral. Sobre essa questão, consultar BAYLIS et al (2002, pp. 242-251).

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A bibliografia sobre Estudos Estratégicos e seus autores clássicos é bastante extensa. Ver, por exemplo, PARET (1986), BAYLIS et al (2002), MAHNKEN e MAIOLO (2008) e, para uma perspectiva brasileira, PROENÇA Jr, DINIZ e RAZA (1999). Os Estudos Estratégicos são entendidos, em linhas gerais, como uma espécie de subcampo interdisciplinar dos Estudos de Segurança, inclusive por alguns dos seus principais autores (BAYLIS et al, 2002, pp. 11-13).

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marcantes da assim denominada Escola de Copenhage19 dos Estudos de Segurança20, fazem-se presentes ao longo da análise sobre o conceito de ―dinâmica armamentista‖, ou seja, o “conjunto de pressões que fazem com que atores, normalmente Estados, tanto invistam em forças armadas quanto modifiquem a quantidade e a qualidade das forças que já possuem” (BUZAN e HERRING, 1998, p. 79).

O termo dinâmica armamentista inclui a ideia de ―corrida armamentista‖, a qual seria algo específico, distinto das operações consideradas normais e regulares de manutenção, modernização ou aquisição de armamentos por parte dos Estados (IBIDEM, p. 79).

Buzan e Herring (1998, p.1) definem segurança militar como o modo pelo qual Estados, ou outros atores, securitizam (ou dessecuritizam) outros atores ou situações, definindo-os como ameaças existenciais que requerem medidas excepcionais. Já em ―Security: a new framework for analysis‖, seus autores detalham mais o conceito de segurança, que passa a ser entendido como o movimento que conduz a política além das regras do jogo estabelecidas e enquadra o problema como uma forma especial de política ou acima dela. A securitização pode, assim, ser vista como uma versão mais extrema da politização (BUZAN, WAEVER, DE WILDE, 1998, pp. 23-24).

Para os autores de ―Arms Dynamic‖, a grande identidade dos Estudos Estratégicos é a abordagem da segurança militar por meio da estratégia militar, isto é, definida, em linhas gerais, pelo estudo do uso ou ameaça do uso da força. No entanto, desde o advento das armas de destruição em massa (ADM´s) após a II Guerra Mundial, grande parte dos Estudos Estratégicos enfatizou excessivamente os instrumentos do uso da força em detrimento da estratégia propriamente dita, caminhando para a tentativa de consolidação de uma autonomia incapaz de se sustentar sozinha (BUZAN e HERRING, 1998, pp. 2-3).

Esse movimento de autonomização ganhou intensidade rapidamente de tal modo que, nos anos 60, já era possível ouvir estrategistas como André Beaufre (1902-1975) alertando sobre as consequências da excessiva concentração dos esforços em táticas e

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Termo derivado do fato de seus principais autores, como Barry Buzan, Ole Waever, Jaap de Wilde, entre outros, terem emergido dos trabalhos do Conflict and Peace Research Institute (COPRI), em Copenhague. Para maiores detalhes sobre a evolução dessa perspectiva em particular, ver, por exemplo, BUZAN (1991); BUZAN, WAEVER e De WILDE (1998); BUZAN e WAEVER (2003) e BUZAN e WAEVER (2009). Para uma síntese da abordagem, ver EMMERS (2007).

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Para uma introdução aos Estudos de Segurança como um todo, consultar, por exemplo, SHEEHAN (2005) e COLLINS (2007).

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materiais, resultado da ―supremacia do material sobre as ideias‖ (BEAUFRE, 1998, p.26). Essa tendência, entretanto, tinha algum fundamento e, até certo ponto, seu valor, na medida em que a crescente complexidade técnica adquirida pelos meios militares após a II Guerra impunham um alto grau de especialização e de prática, fruto da ascensão das estratégias nucleares na lógica reinante na Guerra Fria. Essa nova realidade ganhou forma nos anos 50 e se fortaleceu até praticamente a Queda do Muro de Berlim, refletindo-se também nas relações civis-militares. Segundo alguns autores, essa tentativa de especialização apenas teria reforçado o elemento político da guerra:

“O crescimento do poder destrutivo da guerra aumenta, antes que diminui, o envolvimento e as responsabilidades políticas das forças armadas. A solução de relações internacionais torna-se cada vez menos alcançável pelo emprego da força, e cada decisão tática e estratégica não é uma mera questão de administração militar, mas um índice das intenções e dos objetivos políticos” (JANOWITZ, 1967, p. 21).

Buzan e Herring (1998) extrapolam a dimensão dos Estudos Estratégicos ao considerarem o amplo espectro de elementos políticos, econômicos, sociais, legais, culturais e militares presentes na política internacional necessários à compreensão do fenômeno da guerra:

“O problema é que muitos dos elementos fundamentais da estratégia são difíceis de serem entendidos caso retirados dos contextos políticos e econômicos do sistema internacional. Poderíamos pensar, por exemplo, que o tema da guerra pertença claramente à segurança militar. É verdade que os Estados podem ameaçar uns aos outros com a guerra por meio do entendimento puramente militar de que cada um é um adversário em potencial do outro, mas a ameaça e o uso da força são normalmente motivos suficientes para evidenciar a rivalidade enraizada em considerações de poder, status, ideologia e riqueza. É,

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portanto, difícil entender as causas e as curas da guerra sem explorar profundamente a ampla área das relações internacionais "

(BUZAN e HERRING, 1998, p.3).

Seguindo esse raciocínio, a tecnologia poderia ser igualmente entendida em um contexto maior, marcado pelos efeitos, globais e domésticos, da Revolução Industrial e, mais recentemente, da Revolução das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC´s), do final do século XX (IBIDEM, p. 20). O aspecto tecnológico do ambiente estratégico global, portanto, seria reflexo do longo e gradual processo secular de desenvolvimento cientifico-tecnológico da humanidade, permeado de fatores históricos, políticos, sociais, culturais e econômicos, além de contar com contribuições puramente individuais e até mesmo do acaso.

É comum encontrar na literatura sobre Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) referências à importância do ―imprevisível‖ para descobertas científicas, como no caso das descobertas do Efeito Munroe-Neumann21, no campo militar. Paralelamente, é enriquecedor considerar, sempre que pertinente, a importância das personalidades, sejam elas do mais alto nível político-estratégico em períodos históricos decisivos, como Roosevelt, Churchill, Hitler e Stálin, sejam inventores ―oportunos‖ como Mikhail Kalashnikov22. Sem dúvida, tratando-se, mais adiante, de programas cooperativos internacionais de produtos de defesa, as questões do acaso e da personalidade dos líderes políticos, empresários ou mesmo dos gestores envolvidos nesses projetos podem decidir o seu sucesso ou o seu fracasso.

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Refere-se, grosso modo, aos efeitos da concentração parcial de energia em uma superfície, resultante da combinação entre uma carga explosiva e sulcos. Tal propriedade foi descoberta durante testes em laboratório pelo cientista americano Charles E. Munroe ao observar que as inscrições do fabricante de um explosivo ficavam impressas nas superfícies metálicas do anteparo após a detonação. Em 1910, o cientista alemão Egon Neumann estudou efeitos semelhantes em relação ao uso de cavidades cônicas. No entanto, só durante a II Guerra Mundial que surgiu sua aplicação em projéteis perfurantes de blindagens.

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Em 1941, Mikhail Timofeyevich Kalashnikov servia em um dos regimentos blindados soviéticos, na II Guerra Mundial, quando foi ferido em combate. Enquanto se recuperava no hospital, ouviu diversos relatos dos companheiros sobre o desempenho dos fuzis soviéticos, os quais o inspiraram a projetar uma nova arma. Em 1947, surgia o AK-47 (Avtomat Kalashnikova modelo 1947) que, em 1956, seria alçado à posição de armamento padrão do soldado soviético. O AK-47 é considerado tanto o fuzil mais simples e eficiente do século XX quanto uma das ―verdadeiras armas de destruição em massa‖ em ação nos conflitos armados e crimes violentos no mundo (IRIN, 2006). É interessante destacar que o AK-47 só foi possível graças à influência em combate de outra arma projetada pelos alemães, o Stg 44 (Sturmgewehr modelo 1944), cujo desenvolvimento, curiosamente, teria ocorrido quase à revelia de Hitler.

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Buzan e Herring (1998) conferem, ainda, especial atenção à importância de se analisar os processos pelos quais os reflexos das revoluções Industrial e da Tecnologia da Informação incidem sobre os espectros políticos e militares (IBIDEM, p.5) sem, no entanto, cair em uma lógica determinista (IBIDEM, pp.119-121). Para esses autores, as tecnologias militares seriam, ao mesmo tempo e em diferentes proporções, resultado e estímulo do avanço tecnológico como um todo, em escala global. Seriam, portanto, partes de um complexo arranjo de transbordamentos de tecnologias militares para aplicações civis (spin- offs) e tecnologias civis para aplicações militares (spin-ons).

Na referida obra, esse tipo de tecnologia é definida em grandes dimensões, a saber, “abrange, como a tecnologia em geral, tanto hardware quanto software. Inclui não apenas os instrumentos efetivos ou artefatos da operacionalização da guerra, mas também os meios pelo quais são projetados, desenvolvidos, testados, produzidos e supridos - bem como as capacidades organizacionais pela qual o hardware é absorvido e empregado” (ROSS,1993, pp. 110-111 apud BUZAN e HERRING, 1998, p.9).

Nesse aspecto, os referidos autores tecem duas ressalvas já razoavelmente consolidadas na literatura sobre Estudos Estratégicos: a importância do elemento humano bem capacitado e treinado (também denominado ―wetware‖ ou ―peopleware‖) e a dificuldade de se estabelecer uma fronteira entre tecnologia civil e militar na atualidade (KRAUSE, 1992; BUZAN e HERRING, 1998, p.33). Esta divisão, de acordo com os mesmos, teria começado a ruir logo no século XIX (IBIDEM, p.21).

Essa contínua transformação tecnológico-militar seria difundida pelo sistema internacional principalmente em função do comércio internacional de produtos de defesa, suportado pela necessidade de exportação por parte dos produtores e pela demanda dos não-produtores (IBIDEM, p.34). Conca (1997, p.8) denomina esse movimento de ―transnacionalização das indústrias de defesa dos países desenvolvidos‖, por meio do qual o ―Norte‖, incitado por uma variedade de motivos políticos e econômicos, teria abastecido a expansão industrial-militar do ―Sul‖ via mecanismos de produção sob licença, desenvolvimentos conjuntos, joint ventures e outros arranjos de transferência tecnológico- militar.

Historicamente, o resultado dessa difusão de tecnologias militares pode ser interpretado como uma espécie de hierarquia internacional dos países em função dos

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distintos níveis de capacidades de produção de tecnologia de uso militar. Desta forma, o mundo estaria organizado entre países produtores completos, parciais ou simplesmente não- produtores de armamentos.23

Dentro dessa lógica, segundo esses autores, o modelo de ação-reação e o baseado em fatores domésticos são mais úteis se vistos como complementares, com suas vantagens e limitações, tendo como pano de fundo o imperativo tecnológico mencionado acima (IBIDEM, p.119).

O modelo ação-reação pode ser enxergado, portanto, tanto como causa quanto como efeito do imperativo tecnológico. Por um lado, ele motivaria os Estados, por insegurança ou pela busca por poder, a investirem em tecnologias militares avançadas sob várias formas (desenvolvimento, parcerias, aquisições etc.). Ao passo que o nível tecnológico desses Estados avança, o incentivo à institucionalização de P&D militar se fortalece, a fim de diminuir laços de dependência político-tecnológica e/ou vislumbrar benefícios econômicos significativos (empregos, exportações, capacitação tecnológica etc) (IBIDEM, p.122). Por outro lado, uma vez estabelecidos esses setores produtivos e organizações permanentes de P&D militar, o ciclo seria fechado com a busca por mercados externos para esses produtos à medida que sua base industrial de defesa se expande, reforçada por fatores competitivos da política internacional (IBIDEM, pp. 21-22).

Já o modelo baseado em fatores domésticos atuaria como uma espécie de mediador entre o modelo ação-reação e o imperativo tecnológico. De fato, ―a presença dos fatores domésticos dilui a fronteira entre ação e reação, fazendo com que a reação seja um processo contínuo, além de reduzir a sensibilidade das ações uns dos outros‖ (IBIDEM, p.122). Essas estruturas domésticas, então, despejariam uma série de variáveis e consequências políticas nos processos de ação-reação (IBIDEM, p.123).

A abordagem proposta por esses dois autores para se compreender a dinâmica armamentista certamente pode ser considerada um avanço, mas, segundo os próprios, não resolve todas as dificuldades do fenômeno (IBIDEM, p.126).

Cabe destacar que nesse arcabouço teórico proposto por Buzan e Herring, a relação entre institucionalização de P&D militar e dinâmica armamentista tanto em países com baixa produção em armamentos quanto nos não-produtores é algo a ser aprofundado em

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futuras pesquisas, conforme eles próprios reconhecem (IBIDEM, p.123). Nesses países, os autores alegam existir uma dinâmica armamentista ―secundária‖ diferente da dinâmica armamentista primária em curso nos detentores de razoáveis bases industriais de defesa. Realmente, na falta de uma indústria militar significativa, não há P&D militar ou motivação empresarial suficiente para tal empreitada e tampouco há reflexo eleitoral ou tentativas de buscar eventuais benefícios econômicos com a indústria de defesa. Nos países não- produtores, além da forte dependência de importações de equipamentos militares, os desafios de segurança e de defesa geralmente não recaem em ameaças externas, mas sim em internas ou na própria atuação doméstica de suas forças armadas, ao contrário do que ocorre nos países desenvolvidos (JACKSON, 2007; JOB, 1992).

Portanto, o arcabouço teórico oferecido por Buzan e Herring (1998), apesar de ainda deixar importantes lacunas explicativas, possibilita traçar uma moldura ampla de atores, seus interesses e conflitos em uma tentativa de compatibilizar o melhor de cada um dos três modelos clássicos. Isso se torna importante ao se considerar a diversidade dos atores do setor de defesa, os quais dificilmente podem ser entendidos em sua riqueza sob perspectivas exclusivamente focadas no modelo ―ação-reação‖, na redoma do jogo dos fatores domésticos ou guiados meramente por motivações de raízes científico-tecnológicas.

Reconhecidamente, a dinâmica armamentista secundária, conforme descrita pelos seus autores, se apresenta como um desafio teórico importante e merecerá atenção ao longo deste trabalho, porém, haja vista o recorte da pesquisa escolhido, busca-se contribuir apenas marginalmente nesse certame.