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Considerações iniciais sobre Base Industrial de Defesa e cooperação internacional

1.2. As transformações tecnológicas e programas cooperativos internacionais de produtos de defesa

1.2.1. O imperativo tecnológico e algumas de suas consequências

Como vimos anteriormente, um modo possível de se pensar a tecnologia militar é a enxergando dentro de um contexto maior de desenvolvimento histórico científico- tecnológico da humanidade (BUZAN e HERRING, 1998, p.20), por mais abrangente que tal ideia possa parecer em termos metodológicos.

Nessa direção, as tecnologias militares seriam parte indissociável desse contexto de desenvolvimento tecnológico composto por um complexo arranjo de transbordamentos de tecnologias militares para aplicações civis (spin-offs) e tecnologias civis para aplicações militares (spin-ons).

Dos bem protegidos guerreiros hoplitas gregos à utilização dos primeiros canhões contra fortalezas, passando pelo advento do estribo e do arco-e-flecha, todos podem ser vistos como efeitos do longo progresso científico-tecnológico humano (MCNEIL, 1982). Todos possuem uma miríade de conhecimentos implícitos ao longo de seu desenvolvimento e utilização, inclusive em torno de processos organizacionais, conceituais e sociais específicos. Todavia, foi a partir da aceleração da Revolução Industrial no século XIX que esse desenvolvimento ganhou força, contribuindo para a maior frequência de novas tecnologias com aplicações militares.

A relação entre tecnologias civis e militares durante a Revolução Industrial pode ser verificada com relativa facilidade. Os princípios da metalurgia, da engenharia e da química utilizados nos campos de batalha, por exemplo, eram os mesmos aplicados nos cada vez mais eficientes motores a vapor para navios, ferrovias, indústrias e vice-versa (BUZAN e HERRING, 1998). Da mesma forma, a ferrovia e o telégrafo ―civis‖ foram fundamentais, juntamente com a invenção do fuzil, para as campanhas prussianas do general Moltke contra os franceses na Batalha de Sedan (1871) (HERRERA, 2004). Algumas inovações na

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indústria naval, representadas pelos navios a vapor SS Arquimedes (1839) e SS Great Britain (1845), só seriam adotadas e aperfeiçoadas para a guerra vários anos mais tarde (BUZAN e HERRING, 1998, p. 22). O avião, dos irmãos Wright, de Santos Dummont e de Clément Ader, só foi utilizado seriamente nos campos de batalha a partir de 1914.

Mais adiante, na II Guerra Mundial, vários países investiram maciçamente em um determinado grupo de tecnologias, e seus ramos associados, considerados vitais naqueles campos de batalha, com destaque para as indústrias automobilística, naval, aeroespacial, nuclear e as áreas mais gerais da química moderna, da energia elétrica - seus sistemas e subprodutos - e da eletrônica. Essas tecnologias compuseram a ―onda de expansão econômica‖ do início do século XX (SCHUMPETER, 1984), tendo o resultado desses investimentos transbordado (spin off) de propósitos preponderantemente militares para diversos segmentos civis.

O advento dos grandes bombardeiros influenciou a aviação comercial que, por sua vez, foi catalisada pelos desdobramentos dos motores a jato alemães, os mesmos que preocupavam os pilotos aliados no final da guerra29. A energia nuclear, as derivações do transistor e os subprodutos da corrida espacial são outros exemplos emblemáticos do período.

Assim, dentro da lógica bipolar e armamentista da Guerra Fria, muitas tecnologias viriam a ser exploradas e aperfeiçoadas seguindo o paradigma spin off. A articulação das forças armadas com o sistema produtivo e, principalmente, com as universidades originava um modelo de Ciência & Tecnologia (C&T) altamente valorizador da Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) de origem militar, o qual viria a ser adotado por vários países, inclusive pelo Brasil (CAVAGNARI, 1993).

No final do século XX, no entanto, o fluxo de inovações se fez paulatinamente mais presente do setor civil para o militar (spin on) (SPEAR e COOPER, 2007, p. 315; TAYLOR e TATHAM, 2008, pp. 33-34) graças, por exemplo, aos avanços da informática e da microeletrônica, bem como às tecnologias da informação e da comunicação em geral.

O processo de globalização teve papel fundamental nesse contexto, diluindo fronteiras tecnológicas e integrando muitos outros aspectos da vida em sociedade.

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Os alemães são considerados um dos grandes pioneiros nesse campo, graças às experiências com a aeronave civil Heinkel 178 (1939) e a militar Me262 (1943).

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Entretanto, o paradigma de transbordamento de tecnologias militares para o setor civil (spin off) ainda permanece bastante forte no imaginário de vários atores importantes do setor de defesa em muitos países, entre eles o Brasil (DAGNINO, 2010).

“Há quarenta anos, a pesquisa e desenvolvimento no Ocidente era dominada pelos gastos militares. Hoje, não é mais o caso. O avanço tecnológico em muitos setores – incluindo a informática, a tecnologia de informação em geral e a biotecnologia – é quase inteiramente liderado por gastos civis. Mesmo no Reino Unido, onde a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em defesa é significativamente importante quando comparada a outros membros da UE (com exceção da França), a defesa é responsável por apenas 10% do esforço nacional de P&D‖ (TAYLOR e TATHAM, 2008, p. 33).

E, ainda:

“Houve uma clara e significativa transformação qualitativa na natureza da tecnologia devido ao fato de a tecnologia civil ter se tornado cada vez mais importante para sistemas de armas. Isso levou a uma crescente importância das TIC´s e das empresas associadas ao segmento eletrônico, frequentemente oriundas do meio civil, no setor de defesa, bem como a um aumento no número de companhias civis nas cadeias logísticas de grandes empresas voltadas para o campo militar. As demandas da "guerra global contra o terrorismo", dos EUA, reforçaram essa tendência. Enquanto no passado o spin-off da tecnologia militar para o setor civil tendia a ser um argumento importante para a valorização da produção militar, o foco agora está mais próximo das reverberações da tecnologia civil para o segmento militar (spin-in). Além disso, o uso de componentes de origem comercial na indústria de defesa é uma tendência crescente: muitos elementos de grandes sistemas de armas são produtos comerciais de prateleira (off-the-shelf), produzidos por fabricantes que não se

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consideram parte da indústria de armamentos. As maiores empresas do setor de defesa têm se tornado cada vez mais integradoras de sistemas ao mesmo tempo em que mantêm as características de firmas especializadas em defesa (SIPRI, “Long-term trends in the arms industry”).30

Portanto, mais do que discutir o predomínio do “spin off” ou do “spin on” em determinados momentos históricos ou buscar definir a abrangência das denominadas ―tecnologias duais‖31

na atualidade, torna-se muito mais relevante observar o impacto do aspecto tecnológico no ambiente estratégico global. No que se refere especificamente às tecnologias militares, certamente poucas aplicações civis podem ser encontradas em metralhadoras, obuseiros e mísseis ar-ar, mas mesmo aqui a diferença entre os setores civis e militares é mais uma questão de grau do que de tipo de tecnologia (BUZAN e HERRING, 1998, p.22). Afinal, ―mesmo as tecnologias mais distintamente militares são apenas variações de grandes áreas nas quais diferentes níveis de conhecimento e habilidade podem ser encontrados na sociedade como um todo” (IBIDEM, p.22).

Hoje, supercomputadores são utilizados tanto em pesquisas e previsões climáticas, passando por experimentos de física quântica e simulações de protótipos de aeronaves em ―túneis de vento‖, quanto em testes nucleares e no controle de qualidade da produção de batatinhas Pringles32. Softwares como o popular Windows são encontrados com relativa facilidade nos computadores de controle de missão das mais modernas aeronaves de combate (KRAMER e CITTADINO, 2005, p. 6) e estima-se que 95% das comunicações militares norte-americanas trafeguem por redes de telecomunicações e satélites de origem comercial (SINGER, 2009, p. 200).

Tal interdependência civil-militar tem levantado substantivas preocupações em relação, por exemplo, à salva-guarda de tecnologias sensíveis (ex: biológicas, químicas,

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Disponível em < www.sipri.org/research/armaments/production/researchissues/long-term_trends >, acesso em 12/02/11).

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Compartilha-se do entendimento de que o termo ―tecnologia dual‖ demande algumas ressalvas na medida em que pode abranger, de fato, supercomputadores, satélites e várias tecnologias aeroespaciais, mas também fabricantes de uniformes militares e coturnos. Embora não se negue o valor destes e por mais que lhes sejam incorporados vários aperfeiçoamentos tecnológicos, eles ainda estão em um patamar totalmente distinto de supercomputadores e de satélites, por exemplo.

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―A new arms race to build the world´s mightiest computer‖. The New York Times, 19/08/05. Disponível em < www.nytimes.com/2005/08/19/technology/19super.html >. Acesso em 17/09/10.

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nucleares e missilísticas) e à crescente importância da dimensão cibernética. Esta tem ganhado considerável espaço nas estratégias de defesa ao redor do mundo, já sendo possível ouvir relatos sobre aeronaves de dezenas de milhões de dólares ou porta-aviões de centenas de milhões de dólares fora de ação por conta de linhas de programas viróticos.33

Duas consequências dessa fronteira incerta entre as mais sofisticadas tecnologias militares e civis para a base industrial de defesa podem ser salientadas. Em primeiro lugar, torna-se mais comum a oportunidade de maximizar os investimentos em P&D utilizando-se da complementaridade entre, por um lado, as restrições políticas e a irregularidade de demanda do mercado internacional de defesa e, por outro, a competitividade exacerbada do dinâmico mercado civil. Em segundo lugar, o esforço exigido para se acompanhar o desenvolvimento tecnológico em escala global, bem como para garantir a lucratividade dessas empresas e atender aos interesses políticos de seus países, transformou as parcerias em uma interessante possibilidade. Essas seriam algumas das razões para a forte origem europeia desses programas.

1.2.2. O caso europeu: a origem dos programas cooperativos “regionais” de produtos