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1. O ESTADO CIVIL

1.6 O Estado Civil

Estabelecidas as condições de instituição do soberano, surge, com o pacto, o Estado Civil, como sucedâneo inevitável dessa opção racional (resultado do cálculo!). O Estado Civil, portanto, não surge naturalmente, mas é construção artificial do homem, em função da sua racionalidade e do consenso que estabelece para sair do estado de natureza. Hobbes quer a paz e a segurança. Como afirma Heck (2002, p. 147), “o mandatário hobbesiano exerce o poder político voltado para uma única finalidade - a segurança”. Esse é seu primordial e prioritário objetivo. Para enfatizar isto, Hobbes se socorre de várias metáforas. A primeira delas, buscada na Bíblia Sagrada, mais precisamente no Livro de Jó, Capítulo 40, versículos 20 a 28 e Capítulo 41, versículos 1 a 25, utilizada para nomear sua principal obra, na qual expõe sua teoria do estado, é a figura do Leviatã, monstro bíblico contra o qual nenhum poder é suficientemente resistente. Este é o Estado Civil hobbesiano: um Estado contra o qual não há força suficiente que lhe possa resistir.

A capa da edição original do Leviatã traz um grande meio-corpo que se debruça sobre uma vila, surgindo atrás de uma colina. Como afirma Chevallier (1990, p. 65), “um gigante coroado”, que segura na mão direita uma espada, a qual simboliza o poder secular ou temporal, e na mão esquerda uma cruz episcopal, representando o poder religioso ou espiritual. Interessante ver que seu corpo é composto de inúmeras pessoas, todas voltadas para a face do Gigante – para a face do Leviatã. Elas são o próprio Estado e a figura representa o pacto de união e de submissão à autoridade que elas próprias criaram e instituíram. Como afirma Hobbes (2008, p. 147), “feito isso, à multidão assim unida numa só e mesma pessoa chama-se REPÚBLICA [...]. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes daquele Deus Mortal, ao qual devemos abaixo do Deus Imortal, a nossa paz e defesa”. A imagem é explicada pelo próprio Hobbes na introdução do Leviatã:

A arte vai mais longe ainda, imitando a criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele LEVIATÃ a que se chama de REPÚBLICA, ou ESTADO (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. [...]. Por último, os pactos e convenções pelos quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o

homem proferido por Deus na Criação (HOBBES, 2008, p. 11-12).

Mas por que a metáfora do Leviatã? Ela se dá em função desse Estado necessitar ser forte o suficiente para superar todos os conflitos e conduzir o povo à paz e, também, pela necessidade desse poder temporal se sobrepor ao poder espiritual, contra o qual Hobbes dirigirá muitas objeções, por entender que este não pode estar além do poder do soberano. É daqui que vem a metáfora hobbesiana, pois sobre tal figura na Bíblia (Livro de Jó - Capítulo 21, versículo 24) se diz que “não há poder sobre a terra que se lhe compare, pois feito para não ter medo de nada” (MATOS, 2007, apêndice). Parece clara a ironia hobbesiana, indicando subliminar e metaforicamente aos clérigos, tão criticados pelo autor, por meio dessa analogia retirada das próprias Escrituras Sagradas, apesar do interesse inconfesso dos clérigos em controlar o poder temporal, que este não pode sobrepor-se ao poder do soberano, ou seja, ao poder do Estado. Trata-se de fina ironia.

Apesar disso, a metáfora de Hobbes foi muito mal compreendida, pois, conforme Ribeiro (2006, p. 25), prefaciando obra sobre Hobbes, “a palavra Leviatã, ainda conota um poder cruel e despótico ou totalitário [...]”, mas isso se deve a terem sido acolhidas más interpretações a respeito de sua filosofia política. Entretanto, se sabe que “Hobbes escolheu o monstro citado no Livro de Jó, porque ele reina sobre os filhos do orgulho, e nós, humanos, somos antes de mais nada movidos por esta vaidade, pela noção vã que temos de nosso valor” (RIBEIRO, 2001, p. 09) e, também, por este sentimento ser “a terceira causa da guerra generalizada entre os homens, da ‘guerra de todos contra todos’” (2001, p. 09). O Leviatã deve ser forte o suficiente para impor seus ditames aos súditos, com finalidade de assegurar a paz, a harmonia e o desenvolvimento do ser humano. O Estado é um homem artificial, “produzido pela soma dos homens juntos” (MARTINS NETO, 2006, p. 110), ou seja, uma síntese do poder das pessoas que resignaram seu direito de natureza, de forma irrevogável, para que a vida em sociedade seja possível sem medo e com esperança. Hobbes (2008, p. 147)deixa claro o alcance desse poder no Leviatã:

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças ao fruto da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou assembléia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem como portador de suas pessoas, admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que assim praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns; todos submetendo desse modo as suas vontades à vontade dele, e as suas decisões à sua decisão.

Em consequência, ao soberano são atribuídos poderes ilimitados, pois apenas um poder irresistível, advindo das concessões mútuas, pode fazer frente à tarefa de impor a paz e trazer a segurança. A soberania é absoluta, não se admitindo que o pacto seja desfeito. Polin (1980, p.101) esclarece que “o soberano é então livre no sentido em que cada um o era no estado de natureza”, mas assevera que se deve compreender qual a espécie de liberdade do soberano no Estado Civil. Afirma ainda que o soberano é livre por não apresentar nenhum impedimento exterior; todavia, “o Soberano, que é a alma do corpo político, é, por excelência, dotado de palavra e capaz de cálculos teleológicos, enfim, capaz de razão. É por isso que a soberania não é o poder de fazer não importa o quê” (POLIN, 1980, p. 101). Portanto, a soberania é o poder decorrente dessas concessões mútuas a serem incorporadas a um único homem ou assembléia de homens, porém ele será sempre absoluto, pois absolutas são as transferências dos poderes individuais. Bobbio (1991, p. 46), ao esclarecer a soberania absoluta no Estado Civil, afirma que

uma das convicções hobbesianas mais freqüentemente reafirmadas é a de que o poder soberano é o maior poder que homens podem atribuir a outros homens. A grandeza deste poder reside precisamente no fato de que quem o detém pode exercê-lo sem limites exteriores; neste sentido tal poder é absoluto. No estado de natureza não há súditos e soberanos, ou melhor, cada um é soberano ou súdito conforme a situação em que se encontre de fato [...]. No estado civil, depois do pacto de união, o soberano é soberano porque, sendo agora o único a ter direito sobre tudo, que antes do pacto cabia a cada um, é sempre soberano e jamais súdito.

Cabe ainda entender qual a importância do princípio físico da inércia na impossibilidade de dissolução do pacto e do Estado, sem que um novo pacto, em condições especiais, surja. Uma vez que o Estado é um ser artificial e sujeito às mesmas leis que os demais corpos, nenhum novo pacto poderá prescindir desse Estado na sua formulação. E como o princípio da inércia prevê que tudo o que está

em movimento deverá permanecer em movimento, sendo o movimento inerente a todos os corpos, este corpo político agirá, pois dotado de vontade,24 para permanecer em movimento; logo, surge a impossibilidade de se eliminar o Estado depois de ele estar instituído, pois nenhum ser, consoante as leis de natureza, concordará com sua eliminação. Daí, pode-se inferir, que o Estado, depois de instituído, por ser uma necessidade de seres racionais, jamais terá como ser eliminado e jamais se poderá “retornar” ao estado de natureza, passando a ser o Estado uma realidade em si mesmo.

Desta forma, sendo o Estado um ente indissolúvel e perene, após a sua instituição, atribuir-se-á poder a um soberano (homem ou grupo de homens), o qual deverá exercê-lo de forma absoluta, mas não que isso se trate de algo despótico ou tirânico. Tal empreitada é necessária para a paz e a harmonia da sociedade. A segurança exige que todos se resignem e essa resignação constituirá o poder do soberano, que não apenas dará efetividade às leis de natureza, como instituirá a normatividade necessária ao exercício do poder e a manutenção das finalidades do contrato. Por fim, as leis, a serem instituídas no Estado Civil, devem propiciar a superação do conflito (estado de guerra), buscando a paz e a segurança dos súditos, a efetivação do poder absoluto do soberano, como única maneira de se garantir a paz, o desenvolvimento, comércio e etc., e a necessária submissão do poder espiritual (eclesiástico /ou clerical) ao poder temporal, uma vez que não há (e não pode haver) poder maior que o Leviatã. No Capítulo seguinte, discutir-se-á a instituição da normatividade e seus limites, bem como a importância do direito e das leis para o Estado Civil.

24

Hobbes explicando as características deste ser artificial, o Estado, afirma que “[...] a equidade e as leis são uma razão e uma vontade artificiais [...]”(HOBBES, 2008, p. 12).