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1. O ESTADO CIVIL

1.4 O Estado de Natureza

Como decorrência lógica e geométrica dos postulados anteriormente expressos, Hobbes, após expor sua “antropologia”, define como esse homem se relaciona com seu semelhante, já que a sociedade é uma opção e não um evento natural e, igualmente, de que maneira poderia ele viver (ou viveria), a partir de paixões tão exacerbadas e com uma visão de convivência humana tão autointeressada. Antes, todavia, deve-se refletir sobre outra premissa básica de Hobbes, a igualdade dos homens. Ora, se “a natureza fez todos tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito” (HOBBES, 2008, p. 106), faz-se necessário verificar como essa igualdade, que, para Hobbes, é absoluta, pois o filósofo considera que “a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que um deles possa com base nela reclamar algum benefício a que outro não possa igualmente aspirar” (HOBBES, 2008, p. 106), irá condicionar as relações entre os indivíduos.

A noção de individualismo humano permeia os conceitos de Hobbes sobre relações interpessoais. Sua visão da condição humana relaciona-se com a ideia de a natureza ser a responsável pelo homem que existe antes do Estado e da sociedade. Para Hobbes, a sociedade não é um ente natural que surge junto com a convivência política, como em Aristóteles, mas artificial, determinado por criação do

próprio homem. Contudo, os homens se encontravam na natureza (fora da sociedade civil) em determinada situação, denominada por Hobbes de “estado de natureza”, que nada tem de histórico ou antropológico, pois trata-se de um pressuposto do qual a razão parte para iniciar seu cálculo na justificação racional do Estado Civil. A maneira como o homem se “encontraria” no estado de natureza é, para Hobbes, uma situação de grande insegurança. Essa insegurança, que advém da possibilidade de um homem matar outro homem (em função da igualdade dos homens), é definidora do que Hobbes chamará de estado de guerra. O estado de natureza é, então, definido como um estado de conflito, de guerra permanente, estado de “guerra de todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 2008, p.109), onde a paz não seria possível, em função das condições de seus indivíduos e de como estes que se encontrariam na natureza. Esta idéia, Hobbes já desenvolve no The Elements of Law, quando afirma que

considerando então a ofensividade da natureza dos homens uns contra os outros, deve-se acrescentar um direito de todos os homens a todas as coisas, segundo o qual um homem invade com direito, e outro homem com direito resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência, e estudam como devem se preocupar uns com os outros. O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado de guerra (HOBBES, 2002b, p.96).

E é ainda mais clara no De Cive e no Leviatã. No primeiro, Hobbes define o estado de natureza como aquele em que se adiciona a “propensão natural de ferirem uns aos outros” a uma “vã estima de si mesmo” e “o direito de todos a tudo” (HOBBES, 2002a, p. 33), concluindo que “o estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida social, não passava de guerra, e esta não ser uma guerra qualquer, mas uma guerra de todos contra todos” (2002a, p. 33). No Leviatã, Hobbes retoma esses mesmos conceitos, acrescentando, entretanto, a “esperança de atingirmos nossos fins” (HOBBES, 2008, p. 107), concluindo, de igual forma, como no De Cive, que o direito de todos a todas as coisas, derivado da igualdade dos homens, servirá como fomento para a guerra de todos contra todos. Tanto num, quando noutro, Hobbes (2002a, p. 34) conclui que a “guerra perpétua é inadequada e adversa à conservação” do homem e que

[...] numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o futuro é incerto; conseqüentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que

precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta (HOBBES, 2008, p. 109).

A formulação hipotética do estado de natureza é construção extremamente engenhosa, que prepara a realização do pacto e a justificação do Estado Civil. No estado de natureza, não existe moralidade, certo ou errado, justo ou injusto, em razão de todos os homens, por serem iguais, terem direito a todas as coisas. Há ausência de normatividade que defina ou determine como o homem deva agir ou quais condutas deva evitar, possuindo o homem, nesta situação, o chamado direito de natureza, definido por Hobbes como a ”liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, a vida” (HOBBES, 2008, p.112). Enfatiza-se que essa “possibilidade” ou “poder” de ter direito a todas as coisas não tem nenhuma conotação negativa no estado de natureza e decorre da própria necessidade de sobrevivência. Onde não há normas a limitar15 direitos e impor ou desautorizar condutas, não há certo ou errado, justo ou injusto; logo, tudo pode acontecer e a ética é diversa da existente no Estado Civil, sendo o homem autorizado, pois já o é, desde sempre, a fazer tudo o que entenda necessário fazer para garantir sua segurança e autopreservação, mesmo que isto importe em acúmulo desmedido de poder e agressão aos outros homens. Conforme Hobbes (2002a, p. 32-33):

A natureza deu a cada um um (sic) direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja, antes que os homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter. Ora, [...], o direito de natureza permite que sejam feitas ou havidas aquelas coisas que necessariamente conduzem à proteção da vida e dos membros – de tudo isso então decorre que, no estado de natureza, para todos é legal ter tudo e tudo cometer. E é este o significado daquele dito comum, ‘a natureza deu tudo a todos’, do qual portanto entendemos que, no estado de natureza, a medida do direito está na vantagem que for obtida”.

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Aqui se usa direito na concepção hobbesiana, pois, para Hobbes, direito é liberdade de ação, sendo que a lei tem função de impedir essa liberdade. Contudo, a noção hobbesiana é inversa à que se tem atualmente, quando, ao se falar em direitos, se refere a direitos e garantias que integram o patrimônio jurídico de seu titular, que podem ser exercidos contra qualquer outra pessoa, inclusive o Estado. Parece que Hobbes percebeu o direito apenas na sua dimensão objetiva e não a existência do chamado direito subjetivo. Mas ele tem as suas razões. Retomar-se-á este tema no segundo Capítulo.

Apesar dessa possibilidade não ser negativa, é aqui que surgem os dois elementos, já referidos, fundamentais na dedução racional: o medo e a necessidade de autopreservação. Isto faz com que Hobbes aduza que das paixões humanas – mesmo que estas também sejam as geradoras da “luta de todos contra todos”16 – surgirá a que será responsável por induzir os homens à paz, que é o medo. Medo da morte violenta. E neste medo, entendem alguns comentadores, está o centro do pensamento hobbesiano.17 Como assevera David Johnston (1989, p.34), Hobbes afirma que o “medo da morte é o mais poderoso de todos os motivos [...]”.18 Com efeito, se existe o risco da morte violenta, junto com o medo que lhe é inerente, a busca pela autopreservação constitui-se em fator preponderante da vida individual e coletiva. Importante, ainda, perceber que Hobbes não aduz apenas o medo (e a consequente busca de autopreservação) como a única paixão capaz de conduzir à paz, mas também o desejo de uma vida confortável e a esperança de alcançá-la por meio do trabalho.

Como afirma Ribeiro (1999), comentando a metáfora autobiográfica do próprio Hobbes, que afirma ter nascido gêmeo do medo,19 este gêmeo pode ser a esperança, pois “nascer gêmeo do medo é dizer-se portador da esperança” (RIBEIRO, 1999, p. 22). Ora, a esperança, no pensamento hobbesiano, se transforma no sucedâneo do medo e real motivador do homem na busca da paz, pois a exclusiva “paralisação” resultante do medo não poderia gerar estímulos positivos nesta busca. O medo hobbesiano, existente no estado de natureza, tem, portanto, dupla função: tirar o homem do estado de natureza e conduzi-lo à paz,

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Transcreve-se importante passagem do Leviatã sobre o tema: “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais. [...] Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre meu e teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de o conservar. É pois nesta condição miserável que o homem se encontra, por obra da simples natureza, embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões e em parte na sua razão” (HOBBES, 2008, p.111).

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“E que medo é este que Strauss encontra no centro do pensamento hobbesiano? É o medo da morte” (POGREBINSCHI, 2003, p.55). “O medo é estratégico nos itinerários do filósofo [...]. Mas não serve o medo de cifra apenas em sua vida [...], é a chave também de sua obra” (RIBEIRO, 2002, p. 20).

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No original: “Hobbe’s claim that fear of death is most powerful of all motives [...]”.

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Referente a afirmação de Hobbes ser “gêmeo do medo”, tal assertiva se refere ao grande medo existente na Inglaterra em 1588: o medo da invasão da temida armada espanhola, fato que ocorreu na mesma época em que a mãe de Hobbes lhe dera à luz (RIBEIRO, 1999).

mas, também, ser o estimulador da esperança, que permitirá vislumbrar a solução dessa guerra de todos contra todos com a criação do Estado Civil.

Afora o medo e a esperança, se o homem, no estado de natureza, pode realizar qualquer coisa de forma justa, sendo ele também proprietário de tudo que existe, “até mesmo aos corpos uns dos outros” (HOBBES, 2008, p. 113), deriva disso que a insegurança individual e coletiva integra a vida das pessoas. Mas, se o direito de todos a tudo acaba por ser inútil, uma vez que “os efeitos desse direito são os mesmos, quase, que se não houvesse direito algum” (HOBBES, 2002a, p. 33), faz-se necessário estabelecer as condições para a busca da paz, visto que a natureza colocou o homem em estado de guerra generalizada. Logo, se o direito a todas as coisas significa, pragmaticamente, não se ter direito à coisa alguma, em face da insegurança e do medo generalizado, será racional que se busque uma opção que resolva tal situação. Essa solução será uma convenção, um acordo entre os indivíduos que possa pôr fim à “guerra de todos contra todos”, preservando os homens da morte violenta e fortalecendo a esperança de que se retire o homem da condição miserável em que está “por obra da simples natureza” (HOBBES, 2008, p. 111).

Importante salientar que não é do medo ou da esperança que se deduz a necessidade de instituição do Estado. Esses elementos induzem o homem hobbesiano na busca de uma solução racional para a insegurança; eles subsidiam a elaboração geométrica e a dedução racional. Hobbes realiza um “cálculo de conseqüências”, isto é, um exercício de lógica. Ele deduz a necessidade da instituição do Estado como resultado desse cálculo de conseqüências, em razão e a partir das premissas expostas, sendo o medo e a esperança elementos integrantes desse cálculo. Como esclarece Luiz Eduardo Soares (1995, p. 230-231):

A atividade humana tem caráter reativo: os homens realizam a guerra generalizada que esperam. Sendo assim, a sociedade é sua expectativa. Realizá-la depende da inversão do padrão de expectativas, representado pela idéia do estado de natureza [...]. O medo e a autoconservação evidentemente continuam a ditar limites – o que, aliás, é decisivo para a própria concepção do pacto, em momentos diversos – porém não mais absorvem todo o espectro da vontade. O que pode determinar alteração assim drástica das expectativas? O simples curso natural do cálculo, acessível a todo indivíduo racional imerso na situação dramática do estado de natureza e, portanto, generalizável como perspectiva consensual, [...]. O

curso do cálculo incorpora, portanto, (a)indesejabilidade da situação natural; (b) conveniência de sua modificação; (c) reconhecimento da insuficiência de (a) e (b) para a efetivação da mudança; (d) consciência de que os enunciados (a), (b) e (c) são compartilhados por todos os parceiros de infortúnio, isto é, por todos os inimigos. O quinto enunciado (e) estabelece a conveniência de uma solução que responda a dupla função: (e-1) ofereça roteiro para implementação do fim consensualmente desejado; (e-2) faça-o sem ferir quaisquer interesses [...].

O cálculo racional conduz a uma contradição na busca pela preservação da vida: a razão infere a morte certa e, portanto, somente a razão poderá, também, encontrar uma solução para essa contradição. E a encontra mudando as premissas, instituindo leis (premissas) racionais, sendo que, agora, as leis de natureza passam a ser ditadas pela razão e, doravante, ditarão os novos princípios para o cálculo que conduzirá, então, a uma nova conclusão: a necessidade do Estado político. Infere- se, dessa maneira, que as leis de natureza, agora leis racionais, utilizem o termo “natureza” por se referirem à “natureza humana” e, portanto, apenas a razão humana poderá ser a condutora dessa solução racional (até porque em relação aos animais isso não se aplica). O cálculo conduz, necessariamente, a duas conclusões inevitáveis: a morta certa e a necessidade do estado político. Daí a necessidade de um acordo, de um pacto. O pacto aparece como a primeira inferência surgida das leis de natureza racional (válidas somente para os homens e para “todo homem”). Contudo, essas leis são premissas para outro raciocínio que leva à inferência derradeira: o Estado como um ente necessário à preservação da vida. Devido a isso, o Estado é uma necessidade racional (para seres dotados de razão) e não uma necessidade natural, como pensava Aristóteles.

Como afirma Raymond Polin (1980, p. 93), o homem pode errar ou cometer absurdos, “mas, o cálculo racional que guia os indivíduos no estado de natureza, que é o estado de guerra, não é errôneo [...]. O homem percebe que a idéia de conservação pode ser entendida na forma de segurança social [...]”. Logo, o homem percebe, pela razão e pelo seu “cálculo de consequências”, que ele tem muito mais a alcançar dentro do estado de paz, que é o estado civil, do que no estado de guerra. Portanto, ele “calcula” e estabelece as condições necessárias para a elaboração do pacto, única solução racional e possível que permitirá à sociedade alcançar a paz frente às condições “impostas” aos homens pelo estado de natureza, pois “a natureza dita a busca da paz” (HOBBES, 2002a, p. 35) pela utilização da

“reta razão” (2002a, p. 36), tudo em conformidade com as leis de natureza. A constituição do pacto, como se verá a seguir, acabará por estabelecer as bases do Estado Civil e as condições de sua preservação e dos indivíduos.