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3. O PROBLEMA DO DIREITO DE PUNIR E DA PUNIÇÃO NO

3.2 A Justiça

Hobbes não estabelece um conceito de justiça em suas obras. O filósofo afirma, todavia, no decorrer de vários capítulos e em diversas passagens, o que entende ser justo ou injusto. Destarte, é possível extrair de suas ideias uma noção do que possa ser justiça para ele. Percebe-se, ao analisar algumas passagens nas quais ele faz afirmações referentes ao justo e ao injusto, que para Hobbes não há qualquer necessidade de problematização quanto à justiça, não por ele desconsiderar a importância deste conceito, mas por ser para ele tão simples a justiça, que a questão não necessita de maiores tratados. Evidencia-se este

preceitos enumerados por Hobbes em suas obras, que integram os ordenamentos jurídicos positivos contemporâneos.

pensamento quando Hobbes pergunta o que é lei boa e a seguir responde ser a “necessária para o bem do povo e além disso clara” (HOBBES, 2008, p. 293), acrescentando à afirmação a ressalva de que “por boa não entendo uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta. A lei é feita pelo poder soberano e tudo o que é feito por tal poder é permitido e reconhecido como seu por todo o povo” (p. 293). Desta forma, justo para Hobbes é obedecer, ou como afirma Ribeiro (1999, p. 211), “a obediência define o homem justo”. A justiça advém do atendimento e do cumprimento das imposições do poder soberano (que é o poder do próprio povo), o qual define as condições da obediência e, por conseguinte, do justo e do injusto. Justo é cumprir as leis. Aqui, Hobbes apresenta-se como defensor da prevalência da positividade da lei e demonstra não ter dúvida sobre o que seja justo, pois justo é cumprir as determinações impostas, é obedecer. Apesar de todo indivíduo ter uma concepção de justiça, parece que, para Hobbes, esta discussão era de somenos importância, em razão da prioridade que o filósofo dava à obediência política e a tudo que mantivesse uno e absoluto o poder soberano. Além disso, Hobbes descreve as características do bom juiz, mas não se refere diretamente à necessidade deste fazer justiça – até porque não a define, sendo justo cumprir a lei – mas dá um caminho para a compreensão do que integraria, ou deveria integrar a Justiça na sua visão. Diz o filósofo:

As coisas que fazem um bom juiz, ou um bom intérprete da lei, são, em primeiro lugar, uma correta compreensão daquela lei principal de natureza a que se chama equidade, a qual não depende da leitura das obras de outros homens, mas apenas da sanidade da própria razão e meditação natural de cada um, e portanto deve-se presumir existir em maior grau nos que têm maior oportunidade e maior inclinação para sobre ela meditarem. Em segundo lugar, o desprezo pelas riquezas desnecessárias e pelas preferências. Em terceiro lugar, ser capaz, no julgamento, de se despir de

todo o medo, raiva, ódio, amor e compaixão. Em quarto e último lugar, paciência para ouvir, atenção diligente ao ouvir e memória para reter, digerir e aplicar o que se ouviu (HOBBES, 2008, p. 240).

Dessa definição podem-se extrair algumas características que, para Hobbes, deve ter a boa justiça – já que uma boa justiça precisa de bons juízes –, quais sejam: primeiro, julgar sempre incluindo a equidade como preceito fundamental; segundo, existência de imparcialidade tanto judicial, social (desapego de ambição e ganância desmedidas) e individual (despir-se de todo medo, ódio, raiva, etc.); e terceiro, diligência, atenção e disponibilidade pessoal do juiz (pode-se dizer também da justiça) para entender o caso e aplicar o que para ele for necessário. Ou seja, a

boa avaliação do justo e do injusto dependerá de imparcialidade, equidade e diligência na buscar de se aplicar a lei e fazer Justiça. Mas, retorna-se à pergunta: o que é justiça para Hobbes? Este é ponto essencial a ser compreendido. Segundo Faria (2007), Hobbes, em razão das novas perspectivas nas relações entre o direito e a lei, além das características da constituição do Estado, se vê obrigado a alterar as noções tradicionais de Justiça. Para tanto, ele precisa “rever o conceito tradicional de justiça. Para a escolástica, a justiça, assim como a autoridade, são divinas. É contra a concepção do direito divino e do fundamento sagrado da autoridade e da justiça que Hobbes se volta” (FARIA, 2007, p. 102). Há que se entender a necessidade lógica de Hobbes. Se no estado de natureza nada é proibido, porque os homens têm direito a todas as coisas e sendo, ao mesmo tempo, as leis de natureza regras de prudência impostas pela razão humana e, portanto, sem força coercitiva, Hobbes entende não haver como se falar em ações justas ou injustas; logo, a noção tradicional de justiça que “é dar a todo homem o que é dele” (HOBBES, 2004, p. 41), não pode ser aplicada antes do Estado Civil, por não haver meu e teu, justo ou injusto.

Existe, então, necessidade de definir o meu e o teu a ser “atribuído ao homem”; daí porque somente o Estado e o poder soberano podem definir essa situação. Para Hobbes, até a propriedade é concessão do poder soberano não havendo um direito inato à propriedade como aparecerá em John Locke. Por isso, a noção de uma justiça que tenha seu cerne no divino ou na definição do que seria justo por essência, independentemente das previsões da leis civis ou do poder temporal, é absolutamente contrário ao pensamento de Hobbes e à sua filosofia política. Além disso, “por essa transmissão (de direitos)56 definitiva e irrevogável [...], os homens voluntariamente se despojaram da liberdade de julgamento sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto. Comprometeram-se a considerar bom e justo o que ordena o soberano e mal e injusto o que ele proíbe” (CHEVALLIER, 1991, p. 73). Daí porque a obediência é fundamental para Hobbes e importante a positividade das leis, pois estas fixarão os limites à liberdade dos súditos, mas, também, à definição do que seja justo ou injusto, uma vez que “Hobbes tem uma visão legalista de justiça” (FARIA, 2007, p. 103). O filósofo reconhece a existência

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das leis de natureza como imperativos morais, afirmando, inclusive, que é “justo todo aquele que se esforça por seguir as leis de natureza” (HOBBES, 2002a, p. 71). Contudo, não as entende como imperativos legais que conduzam à justiça no Estado Civil, porque delas não poderão, na sua visão, derivar a justiça, em razão das leis de natureza não terem coercibilidade, apesar de serem importantes em razão dos seus princípios de equidade, que auxiliarão o juiz a ser um “bom julgador”. Hobbes vê nas leis de natureza a origem da justiça, enquanto conceito, em razão de seus preceitos eternos e imutáveis. Mas, insistindo-se em achar uma definição expressa de Hobbes para o conceito de justiça, apenas no Leviatã, surge uma espécie de definição que, na verdade, corrobora tudo o que foi dito anteriormente. Da terceira lei de natureza, deriva o conceito de justiça (se é que se pode dizer que Hobbes possua expressamente um). Diz o filósofo:

Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da JUSTIÇA. Porque sem um pacto anterior não há transferências de direitos, e todo homem tem direito a todas as coisas; consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição da INJUSTIÇA não é senão o não-cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo (HOBBES, 2008, p. 124).

Como se percebe, o conceito de justiça em Hobbes, além de formalista, ou seja, depender da previsão de um soberano que ordene e dessa ordenação estar prevista em lei (ordenamento jurídico), é um conceito negativo que se define pelo que é injusto, derivando, todavia, a noção de injustiça do pacto, do qual decorrerá, da mesma maneira, a instituição do Estado, as leis civis e, consequentemente, a elaboração do conceito de justiça. Logo, pode-se concluir que o conceito hobbesiano de justiça não é necessariamente valorativo, isto é, não decorre do estabelecimento de um sistema de valores sociais ou individuais, mas, exclusivamente, da contrariedade ou não à lei e ao poder soberano, e é apenas neste enfoque que ele poderá ser analisado e compreendido.