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Jusnaturalismo e Juspositivismo

2. O ESTADO CIVIL E O DIREITO

2.3 Jusnaturalismo e Juspositivismo

O Jusnaturalismo ou doutrina do Direito Natural reconhece um ordenamento de condutas interpessoais, além do sistema de direito positivo, que é anterior ao Estado, e superior a este, prevalecendo sempre que conflitado com a legislação positiva, por ser portadora de “valores morais imutáveis” com validade em si mesmos. Segundo Bobbio (1993, p. 655), “o jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale) [...]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo”. Logo, a doutrina do direito natural é “antitética à do Positivismo jurídico, segundo a qual só existe um direito, o estabelecido pelo Estado [...]” (BOBBIO, 1993, p. 656). Contudo, jusnaturalismo não é termo unívoco, haja vista que ele foi interpretado ao longo dos tempos por enfoques e justificativas diferenciadas, sendo que cada uma delas, apesar de reconhecer este direito suprapositivo, pode-se dizer uma espécie de direito transcendental, teve, na justificação de seus motivos de existência, a união das percepções mais diversas. O Jusnaturalismo teve suas origens na Grécia antiga, mas ficou célebre na exposição de Cícero, em Roma, em sua obra República, que assim definiu direito natural:

A verdadeira lei é a reta razão em congruência com a natureza, universal, imutável, eterna, que com suas ordens impõe ao homem o cumprimento da obrigação e com suas proibições o protege do mal [...]. Essa lei não pode ser abolida, nem modificada em alguma de suas partes e nem derrogada por inteiro; nenhuma resolução do Senado e nenhum escrutínio popular podem dispensar de sua observância; essa lei não necessita de quem a explique e tampouco precisa de intérprete [...]. Ela é a mesma em Roma e Atenas, hoje e amanhã. Ela abrange todos os povos e abarca todas as idades como lei eterna e imutável; uno será sempre seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios (apud HECK, 2002, p. 35).

Contudo, foi com a doutrina jurídica medieval cristã, em particular com Tomás de Aquino, no século XIII, que entendeu a “’lei natural’ como aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governador do universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto racional” (BOBBIO, 1993, p. 657). A referida interpretação tomista teve implicações históricas consideráveis, pois se constituiu na base do “jusnaturalismo católico”. Conforme Grau (2006, p. 225), “no pensamento escolástico, o Direito Natural fundamentar-se-ia na razão divina”, sendo que grande transformação ocorreu em relação ao que pode se chamar de “jusnaturalismo moderno”, do qual Hobbes é um dos precursores, e que é classificado por Faria (2007, p. 82) como “jusnaturalismo secular”, em razão da introdução, na Modernidade, dos conceitos de estado de natureza e da noção da origem contratual do Estado Civil. Aqui, surge a grande diferença entre a Modernidade e as tradições filosóficas grega e cristã medieval. Na Modernidade, é a razão humana que passa a ser a gestora da noção de direito natural.

Hobbes é incluído, por alguns estudiosos, como jusnaturalista, por ter como ponto de partida de suas investigações a lei natural. Contudo, a noção jusnaturalista moderna hobbesiana se afasta da medieval pela modificação que apresenta o conceito de razão. Enquanto, no Direito Natural escolástico, a razão humana é decorrência da razão divina, para Hobbes essa razão é eminentemente humana e consiste em uma razão calculadora. Para Hobbes, a atividade da razão nada mais é que um cálculo de consequências, a qual consiste, para o filósofo, na reta razão. Bobbio esclarece a questão:

O que diferencia a definição hobbesiana da definição dos outros jusnaturalistas é o significado diferente de razão. Para Hobbes, a razão é uma operação de cálculo, com a qual extraímos conseqüências dos nomes escolhidos para expressar e registrar nossos pensamentos. Não tem valor substancial, apenas formal;[...] não é a faculdade com a qual aprendemos a verdade evidente dos primeiros princípios, mas faculdade de raciocínio. [...] A razão de Hobbes não tem significado ontológico, e sim metodológico. [...] A concepção que ele tem de razão não é metafísica, e sim instrumental [...] (1991, p. 104-405).

Nesse ponto, há um grande afastamento entre os jusnaturalistas tradicionais e Hobbes; enquanto, para aqueles, a lei natural, derivada do Direito Natural, prevê questões morais e valorativas, tidas como eternas, imutáveis e que visam um bem moral, Hobbes entende as leis naturais como derivadas da razão humana, a qual é independente da razão divina, não possuindo essas leis conteúdo bom ou mau em si mesmo, posto que o bem ou o mal se refere a um fim determinado. Para Hobbes, esse fim é, primordialmente, a busca da paz e da segurança. Desta forma, Hobbes não pode ser incluído como um jusnaturalista tradicional, aquele que tem origem na tradição filosófica e cristã. Daí por que parece adequado afirmar que, apesar da antítese existente entre jusnaturalismo e juspositivismo, ser Hobbes um jusnaturalista moderno que inicia o movimento rumo ao positivismo jurídico moderno e à primazia do Estado de Direito. Bobbio afirma que “Hobbes pertence realmente ao movimento jusnaturalista e é realmente iniciador do positivismo jurídico” (1991, p. 102).

Todavia, faz-se necessário esclarecer o que seja juspositivismo. Inicialmente, há que se distinguir positivismo filosófico de juspositivismo (apesar de muitos positivistas jurídicos também serem positivistas filosóficos). Enquanto o primeiro consiste em uma forma de pensar e enxergar a ciência como único conhecimento possível, tendo seu método o único válido, devendo este ser puramente descritivo e, portanto, deve descrever as relações dos fatos expressando-os por leis (ABBAGNANO, 2007); o segundo, deriva do termo direito positivo e se contrapõe ao direito natural, sendo entendido “como um sistema de normas e poderes” que entende o “direito como fenômeno social objetivo” (BARZOTTO, 2007, p. 644), não havendo direito fora daquele expresso positivamente nas leis. Para Hobbes, o poder não se manifesta sem a lei, a qual é editada pelo soberano, o único, segundo o filósofo, a ter poder de mando no Estado e, por conseguinte, capacidade para criar o

direito positivo, as leis. Entretanto, o juspositivismo hobbesiano encontra seu fundamento nas leis de natureza, pois, segundo ele, “é impossível a lei civil ordenar o quer que seja contrário à lei de natureza” (HOBBES, 2002a, p. 223).

A inclusão de Hobbes como juspositivista e, também, como precursor desse movimento, parece ser acertada. Esse entendimento é importante e terá reflexos diretos sobre a punição e a obediência dos súditos. O Estado Civil se justifica, em Hobbes, a partir de sua construção racional originada nas premissas iniciais de convivência humana e necessidade de paz e segurança, como já comentado alhures. Neste ponto, surge a convergência do jusnaturalismo e do juspositivismo hobbesianos, sendo que as noções de Hobbes de estado de natureza, direito natural e leis de natureza fundamentam a base racional para a criação do Estado Moderno, o qual será um Estado com base na lei. Como decorrência deste entendimento, Strauss (apud FRATESCHI, 2008, p. 162-163) chega a afirmar que se o “liberalismo é uma doutrina política que vê como fato político fundamental os direitos (e não os deveres) do homem e identifica a função do Estado com a preservação ou salvaguarda desses direitos, devemos dizer que o fundador do liberalismo foi Hobbes”.38 Todavia, concorda-se com Frateschi (2008); não se sabe se Hobbes

38

Importante referir posição de certa forma antagônica à de Strauss, principalmente em relação à função do Estado hobbesiano e à proteção dos direitos dos súditos. Arendt (2006), em sua obra

Origens do Totalitarismo vê em Hobbes o projeto filosófico ideal a ser apropriado pela burguesia.

Segue alguns trechos da obra: “É importante observar que os modernos adeptos da força estão em completo acordo com a filosofia do único grande pensador que jamais tentou derivar o bem público a partir do interesse privado e que, em benefício deste bem privado, concebeu e esboçou um

Commonwealth cuja base e objetivo final é o acúmulo do poder. Hobbes é, realmente, o único grande

filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, se orgulhar, embora seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo. O Leviathan de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural, seja contrato social – que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que “o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa” (p.168-169). “O poder, segundo Hobbes, é o controle que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder. O indivíduo de início isolado, do ponto de vista da minoria absoluta, compreende que só pode atingir e realizar seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria. Portanto, se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individuais, o desejo do poder deve ser a sua paixão fundamental. É esse desejo que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições, porquanto a riqueza, o conhecimento e a fama são suas conseqüências. Hobbes mostra que, na luta pelo poder, como na capacidade inata de desejá-lo, todos os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no fato de que cada um, por natureza, tem suficiente potencialidade de matar um outro, já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d’être do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes. O traço crucial do retrato que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo realista, porque, se fosse verdade que o homem é um ser como Hobbes o quer, não seria capaz de fundar qualquer corpo político. Na

chegou a tanto, mas que o entendimento de que o embrião do Estado de direito está posto em Hobbes, parece adequado e verossímil.