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CAPÍTULO I SOCIEDADE, ESTADO E GOVERNO – A REPÚBLICA FEDERATIVA

1.4 A República Federativa do Brasil

1.4.3 Estado Democrático de Direito

A fim de se abordar o tema proposto, se adotará como ponto de partida o Estado

cujo modelo foi adotado pela Constituição brasileira de 1988, tal qual inscrito na segunda

parte do art. 1º: “A República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático

de Direito”

101

.

Note-se que a expressão utilizada pelo nosso Constituinte adjetiva o Estado

brasileiro com duas importantes qualidades: o fato de ser democrático, bem como de estar

submetido ao direito. Mas o que isso significa? Um Estado democrático não é

obrigatoriamente um Estado de direito? Um Estado de direito não pressupõe um Estado

democrático? Com efeito, se as respostas a essas perguntas fossem afirmativas (sim, um

Estado democrático é ao mesmo tempo um Estado de direito; e, sim, um Estado para ser de

direito deve pressupor ser, de igual modo, democrático) nossa Constituição seria duplamente

redundante já que ambas as expressões (Democrático e de Direito) trariam consigo além do

seu significado próprio o significado inerente à outra expressão

102

. Nesse sentido, pode-se

100 Destaque-se que o modelo Constitucional brasileiro, justamente em razão das FEJ, assume características

peculiares, já que ditas Funções Essenciais à Justiça não se colocam em nenhum dos três poderes tradicionalmente referidos.

101 Julia Maurmann Ximenes (2012, p. 4-6) entende que “o Estado Democrático de Direito não representaria

apenas o somatório dos direitos e de cunho „individualista‟, apregoados no Estado Liberal, e dos direitos sociais, do Estado de Bem-Estar Social. Isso porque, na verdade, o próprio conceito de „Estado de Direito‟ poderá caracterizar essa „somatória‟, na medida em que o „Estado de Direito‟, como um status quo institucional provém, originariamente, da concepção individualista e racionalista do Direito, durante o século XVIII, mas que, na verdade, teve o rol dos direitos fundamentais, em especial, ampliados por ocasião da Revolução Industrial e do surgimento das políticas do welfare state. Nosso objetivo, aqui, é destacar que o Estado Democrático de Direito implica, sim, uma interpretação diferenciada do Direito e não apenas elencar os direitos.

[...]

Nesse sentido, o Estado Democrático de Direito, dentre outras questões passíveis de serem levantadas, acrescenta aos conceitos referentes à própria formulação do Estado Moderno um novo espaço: um espaço necessário para interpretações construtivistas. Trata-se de discutir o papel da Constituição e do próprio Poder Judiciário, como última instância de interpretação desse documento essencial para a caracterização de um „Estado de Direto‟.”

102 Canotilho (2003, p. 93) chancela a afirmação de que uma característica não pressupõe necessariamente a

outra, ao informar que as duas grandes qualidades de um Estado Constitucional são ser um Estado

democrático e de direito, asseverando, em arremate, que essas qualidades surgem muitas vezes separadas.

Sendo que o Estado Constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito.

dizer que o constituinte de 1988 não se fez redundante nem, por conseguinte, utilizou palavras

inúteis

103

quando afirmou o que resta inscrito em seu art. 1º

104

.

Mas, retrocedendo ao primeiro questionamento, o que significa para o Estado ser

Democrático de Direito

105

?

Abordemos o Estado de Direito, pois a Democracia, como forma de governo, já

restou tratada em tópico precedente: o Estado de Direito surge para impor limites ao Poder

exercido pelo governante, especialmente o monarca absolutista, eis que não se usava observar

as leis por ele mesmo criadas

106

. Assim, o Estado de Direito pode ser caracterizado como

aquele no qual o Estado se encontra submetido ao direito por ele criado e consequentemente à

lei, ambos entendidos como reflexo e expressão da vontade geral.

Nesse sentido, García-Pelayo (1977, p. 52) informa que a lei a que se referiu

anteriormente não é “qualquer lei”, mas aquela cujo conteúdo normativo se subsuma à ideia

de legitimidade, justiça, dos fins e valores aos quais deve servir o Direito, ou seja: valores que

103 Segundo Enterría e Fernández “No hay una palabra vana en la Constitución y todas ellas, como meros

„princípios‟, como enunciado de „valores constitucionales‟, como expresión de sentido a tener en cuenta en la interpretación, tienen valor normativo directo. Podrá discutirse su alcance, que, obviamente, tendrá que ser distinto, nunca ese valor normativo.” (ENTERRÍA, 2000, v. 1, p. 110)

104 Corroborando esse entendimento, Miguel Reale também afirma não concordar com os juristas que

consideram os termos Estado de Direito e Estado Democrático de Direito como sinônimos. Diz ele que tal entendimento não lhe parece admissível na hermenêutica jurídica, especialmente a Constitucional, pois em regra termos novos deverão corresponder a novas interpretações. (REALE, 1998. p. 2)

105 Reale (1998, p. 2), ao tratar do significado da expressão, assim leciona: “Pela leitura dos Anais da

Constituinte infere-se que não foi julgado bastante dizer-se que somente é legítimo o Estado constituído de conformidade com o Direito e atuante na forma do Direito, porquanto se quis deixar bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída, por exemplo, a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os princípios democráticos.

Poder-se-á acrescentar que o adjetivo „Democrático‟ pode também indicar o propósito de passar-se de um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade. „Estado Democrático de Direito‟, nessa linha de pensamento, equivaleria, em última análise, a „Estado de Direito e de Justiça Social‟. A meu ver, esse é o espírito da Constituição de 1988 [...].”

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“ No Estado de Direito, a Administração só pode agir, em obediência à lei, esforçada nela e tendo em mira o fiel cumprimento das finalidades assinadas na ordenação normativa. Como é sabido, o liame que vincula a Administração à lei é mais estrito que o travado entre a lei e o comportamento dos particulares.

Com efeito, enquanto na atividade privada pode-se fazer tudo o que não é proibido, na atividade administrativa só se pode fazer o que é permitido. Em outras palavras, não basta a simples relação de não- contradição, posto que, demais disso, exige-se ainda uma relação de subsunção. Vale dizer, para a legitimidade de um ato administrativo é insuficiente o fato de não ser ofensivo à lei. Cumpre que seja praticado com embasamento em alguma norma permissiva que lhe sirva de supedâneo [...]”. (MELLO, 1991. p. 301.)

De certo modo essa ideia também é veiculada em Aristóteles, ainda que necessitando de lapidação, o que veio a ocorrer com o passar dos séculos. Afirmava o filósofo que a soberania só restaria nas mãos do governante (chamado magistrado) quando a lei não pudesse se explicar de modo claro. A fora isto, a

própria lei seria soberana, e assim o sendo deveria sujeitar a todos, inclusive o governante [esta última

expressem normas ou princípios que a lei não possa violar, sob pena de não ser “lei conforme

o Direito” e descaracterizar, por conseguinte, o Estado sob essa adjetivação.

Relativamente aos aspectos fundamentais de um Estado de Direito, temos na

doutrina de Ernst Wolfgang Böckenförde, trazida por Mendes, Coelho e Branco (2008, p.42),

esclarecedora lição, qual seja: a) estar apartado de “qualquer ideia ou objetivo transpessoal do

Estado”, ou de qualquer outra conceituação Divina no que concerne à sua origem. O Estado

de Direito está a serviço do interesse comum de todos os indivíduos que compõem uma

comunidade; b) ter como objetivo do Estado a garantia da liberdade, segurança e propriedade

das pessoas, propiciando, assim, o “autodesenvolvimento dos indivíduos”; e c) “a organização

do Estado e a regulação das suas atividades obedecem a princípios racionais, do que decorre

em primeiro lugar o reconhecimento dos direitos básicos da cidadania”, tais como a liberdade,

igualdade, predominância da lei, existência de representação popular etc...

Ademais, Bobbio (1992, p. 61) acrescenta que o Estado de direito é o Estado dos

cidadãos, onde o indivíduo tem não só direitos privados, como ocorria no Estado absolutista,

mas direitos públicos, ou seja, direitos em face do próprio Estado.

Por outro lado, interessante destacar o entendimento de Paulo Bonavides (1995, p.

190) para quem o Estado de Direito não é nem forma de Estado nem forma de governo, mas

sim um “status quo” institucional que reflete a confiança depositada nos governantes pelos

cidadãos, como garantidores dos direitos e liberdades fundamentais do homem e da

sociedade.

Por derradeiro, e sem destoar das doutrinas anteriormente declinadas,

colacionamos o posicionamento de Burdeau (2005, p. 43-44), que ao reafirmar a submissão

do Poder do Estado ao Direito, já que este último legitima juridicamente aquele Poder,

sustenta que essa submissão não significa a paralisação do governante, nem a inviabilização

de sua independência e iniciativa na execução do seu mister, mas que, ao contrário, resulta do

fato de os governantes não poderem ser contrários à ideia de direito válida no grupo social

que representam. Esse seria o significado do Estado de Direito.

Deste modo, é-nos autorizado concluir que a limitação do Poder por meio do

direito dependerá, ao fim e ao cabo, da concepção sobre as relações recíprocas entre

governantes e governados: o equilíbrio entre a liberdade do cidadão e autoridade do seu

representante, sem que isso implique, de modo algum, em sacrifício daquela em relação a

esta, em outras palavras será imprescindível para a real caracterização do Estado de direito

que haja a observância pelos governantes dos direitos dos governados e a consciência destes

últimos tanto dos seus direitos quanto dos seus deveres perante o Estado e a sociedade

(MIRANDA, 2005, p. 217).

De outra monta, e agora sob a ótica da democracia, procedendo a rápida análise de

alguns dos dispositivos da Constituição brasileira de 1988, chega-se à conclusão que tais

normas se subsumem aos princípios relacionados por Dallari

107

(tópico 1.3.2) – embora se

saiba que a prática democrática traduz-se num aprendizado diário e que não bastam diretrizes

legais, ainda que Constitucionais, para imbuir no espírito do povo e do próprio Estado a força

cogente de seus preceitos, mas sim o seu efetivo exercício por parte dos seus destinatários, o

que só se alcança com anos/décadas de constante prática.

Assim, conjugando-se os dois adjetivos, “democrático” e de “direito”, conclui-se

que a profundidade significativa conferida ao Estado suplanta em muito a que este possuiria

se fosse exclusivamente democrático ou exclusivamente de direito. Destarte, é-nos autorizado

afirmar que o Estado democrático de direito é aquele regido e submetido por normas jurídicas

que reflitam os ideais de justiça e os valores aos quais deve servir o Direito, buscando conferir

um equilíbrio entre a liberdade do cidadão e a autoridade do Estado, sendo que a referida

autoridade é conferida ao Estado por meio do sufrágio universal e do voto direto e secreto

para ser exercida em nome e em benefício do seu verdadeiro titular, o povo.

1.5 Interesse Público como bússola a nortear o processo de formação das Políticas