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CAPÍTULO I SOCIEDADE, ESTADO E GOVERNO – A REPÚBLICA FEDERATIVA

1.2 Estado democrático

1.2.2 Separação dos Poderes

Uma fase posterior do processo de limitação jurídica do poder político,

mencionado no item 1.2.1, é a que se funda na teoria da separação dos poderes, de certo modo

já adiantada. No caso, a disputa sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do Poder do Estado

concerne ao processo de (des)concentração das funções típicas que competirão a quem

exercer o Poder supremo em um dado território: o Poder de elaborar as leis, de impor o seu

cumprimento e o de julgar, com base nelas, o grau de correção das condutas praticadas.

Com efeito, a clássica teoria da Separação dos Poderes, hoje consolidada senão

em todos, mas na grande maioria dos Estados Democráticos, tem como patrono Charles-Louis

de Secondat, o Barão de La Brède e Montesquieu, que no século XVIII, ao escrever O

Espírito das Leis fixou os pilares que ainda hoje sustentam o edifício dos Estados

contemporâneos.

Sobre esse patronato há certa controvérsia. Há quem sustente, tal qual Ferreira

Filho (2010, p. 161), que a teoria da separação dos poderes foi divulgada, alcançando enorme

repercussão, com Montesquieu, mas que a divisão funcional do poder é o resultado da

evolução constitucional inglesa, consagrada no Bill of Rights de 1689, tendo sido teorizada

pela primeira vez por John Locke.

A propósito de Locke (LOCKE, 2001), deve-se lembrar de que em sua obra o

autor discorreu sobre a existência de quatro Poderes concernentes ao Estado – visando superar

o absolutismo monárquico prevalecente no século XVII –, a fim de caracterizá-lo como uma

sociedade política, sendo que, paradoxalmente, três deles (“b”, “c” e “d”) deveriam estar

concentrados nas mãos do monarca:

64 No mesmo sentido é a posição de Karl Loewenstein, citado por Alexandre Santos de Aragão: “As

considerações de KARL LOEWENSTEIN a respeito da forma com que o princípio da separação dos poderes deve ser hodiernamente enfocado são, neste sentido, muito esclarecedoras:

„O que na realidade significa a assim chamada „separação de poderes‟, não é, nada mais nada menos, que o reconhecimento de que, por um lado, o Estado tem que cumprir determinadas funções – o problema técnico da divisão do trabalho – e que, por outro, os destinatários do poder sejam beneficiados se estas funções forem realizadas por diferentes órgãos: a liberdade é o telos ideológico da teoria da separação de poderes. [...] O

que, comumente, ainda que erroneamente, se costuma denominar como a separação dos poderes estatais, é na verdade a distribuição de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado. O

conceito de „poderes‟, apesar de estar profundamente enraizado, deve ser entendido neste contexto de uma maneira meramente figurativa.‟” (LOEWENSTEIN apud ARAGÃO, 2012)

a) O poder legislativo, que segundo informa é o Poder Supremo da sociedade

política, devendo os demais poderes ou dele derivar ou a ele estarem

subordinados, tendo a função de fixar as diretrizes de como empregar a força

da sociedade política em prol de sua preservação, bem como de seus

membros;

b) O poder executivo, que cuida da execução das leis ainda vigentes (seria a

função do chefe de governo) elaboradas pelo legislativo;

c) O poder federativo, a englobar o poder de declarar a guerra e fazer a paz, bem

como o de assinar tratados e alianças internacionais, além de firmar as

transações comerciais com as pessoas jurídicas de direito internacional (seria

função do chefe de Estado) (2001, p. 514-515); e

d) O prerrogativo que consistia na permissão conferida pelo povo para que seus

governantes praticassem diversos atos por sua livre escolha, sempre que a lei

silenciasse ou, até mesmo, a contrariando, visando o alcance do bem público

(2001, p. 532).

Destaque-se que Locke não fala expressamente no Poder Judiciário, já que os

juízes não tinham qualquer independência antes da entrada em vigor do Act of Settlement, de

1701, que é posterior à publicação de sua obra. Assim é que o poder de julgar competiria à

Coroa soberana, como apontado por Canotilho

65

(2003, p. 581).

Voltando a Montesquieu (2009, p. 85-86), que adota como paradigma a

Constituição da Inglaterra, tem-se n‟O Espírito das Leis o desenvolvimento do pensamento

acerca da necessidade de se retirar das mãos de um único homem ou de um grupo de homens

a concentração de todos os Poderes ínsitos ao Estado, a fim de, fugindo à tirania e à opressão,

buscar a liberdade, que consistiria basicamente em fazer tudo o que as leis permitem. Nesse

sentido assevera os “porquês” da necessidade de se separar o poder de fazer leis, do de

executá-las e do de julgar as condutas de acordo com elas:

A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que

provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se

tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um

cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder

legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois se

pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas

estabelecem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

65 Diferentemente de Canotilho, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha sustenta que no modelo lockeano o

Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado

do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder

legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria

arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder

executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais,

ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de

executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências

dos indivíduos.

6667

(grifo nosso) (MONTESQUIEU, 2009, p. 86)

De igual modo, extrai-se de Rousseau (2000, p. 50-51) passagem em que, ao tratar

da figura do legislador, o filósofo deixa claro o seu ponto de vista relativamente à necessidade

de separação entre os Poderes legislativo e executivo afirmando expressamente que “se aquele

que governa os homens não deve governar as leis, aquele que governa as leis também não

deve governar os homens”.

Também se encontra uma robusta exposição da doutrina inaugurada por

Montesquieu n‟O Federalista

68

. Nas passagens que tratam do tema, o “autor federalista”

defende a separação de poderes como princípio que resguarda a liberdade aos cidadãos e a

boa condução do governo de um Estado. Sob esse viés, consequentemente, sustenta que a

concentração das três principais funções do Estado nas mãos de uma só pessoa (ou grupo de

pessoas) levará o governo à tirania (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 298).

Contudo, a separação dos poderes não significa que as três funções devam ser

reciprocamente incomunicáveis, mas que se deve evitar que quem possua todos os poderes de

um determinado setor também possua todos os poderes de um outro (BOBBIO, 2010, p. 100)

– de modo a se flexibilizar um eventual radicalismo na teoria –, sendo, portanto, necessária

uma certa comunicabilidade interna, balizada constitucionalmente, para que a cada função

seja garantido o controle constitucional das demais, constituindo, deste modo, o sistema de

“freios e contrapesos” ou “checks and balances”.

66

Canotilho pontua que as principais diferenças do modelo de Locke para o modelo de Montesquieu são que neste há a “autonomização do poder judiciário” e a “inclusão dos poderes federativo e prerrogativo no âmbito do executivo.” (2003, p. 581)

67 Discorrendo sobre essa mesma passagem, Mendes, Coelho e Branco informam em sua obra que: “A partir

dessa enfática formulação, cujas origens são mais antigas do que se possa imaginar, o princípio da separação dos poderes adquiriu o status de uma forma que virou substância no curso do processo de construção e de aprimoramento do Estado de Direito, a ponto de servir de pedra de toque para se dizer da legitimidade dos regimes políticos, como se infere do célebre artigo XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, onde se declara que não tem constituição aquela sociedade em que não estejam assegurados os direitos dos indivíduos, nem separados os poderes estatais.” (MENDES, 2008, p. 155)

68 O Federalista trata-se da reunião de diversos artigos esparsos, publicados por volta do ano de 1787 no Daily

Advertiser de Nova Iorque, destinados a esclarecer e preparar os 13 Estados, recém-libertos do jugo britânico,

para receber favoravelmente as instituições republicanas delineadas no texto da Constituição que se pretendia promulgar e que até hoje vige nos EUA. (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003.)

Com efeito, nos textos federalistas vê-se uma clara menção ao sistema dos “freios

e contrapesos” ou “checks and balances”, que se dá por meio de uma retroalimentação

circular consistente na ingerência fiscalizatória que cada um dos poderes exerce sobre os

outros, sem a qual não seria possível manter-se o grau de separação necessário e essencial à

existência de um governo livre (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 305). Todavia, a

fim de resistir de certo modo a essa ingerência fiscalizatória, há de se agregar os meios

constitucionais necessários para que os poderes possam repelir eventuais tentativas de

usurpações por parte dos outros, evitando-se, assim, a acumulação de todos nas mesmas mãos

(HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 318).

É na soma desses dois mecanismos (fiscalização recíproca e resistência mútua a

tentativas de usurpação) que se encontra a essência do sistema de “freios e contrapesos”.

Modernamente, e sob diversa perspectiva, há quem atribua à teoria da Separação

de Poderes duas dimensões, como o faz Canotilho (2003, p. 250): uma negativa, relativa ao

controle e limites do poder (chamada de “divisão dos poderes”), servindo à garantia e

proteção da esfera jurídico-subjetiva dos indivíduos e evitando a concentração de poderes

69

; e

uma positiva, que vê a separação como constitucionalização, ordenação e organização dos

Poderes do Estado, bem como impõe responsabilidades pelo seu efetivo exercício (chamada

de “separação dos poderes”, em sentido estrito). Tratando dessa segunda concepção, ou seja,

da relevância jurídico-constitucional da Separação dos Poderes, o autor aponta três princípios

que seriam extraídos da referida teoria, a saber: a) o princípio jurídico-organizatório; b) o

princípio normativo autônomo; e c) o princípio fundamentador de incompatibilidades (2003,

p. 251-252).

O primeiro, princípio jurídico-organizatório, traz em si duas ideias básicas

subjacentes à separação funcional dos Poderes do Estado:

a) A primeira ideia é de “ordenação de funções” através de atribuições de

competências e da fixação de regras processuais, bem como na vinculação à

“forma jurídica” dos Poderes a quem é dirigida essa atribuição. Sob essa

perspectiva, a Separação dos Poderes é um “princípio organizatório

fundamental da Constituição”. Acrescenta ainda que “Através da criação de

uma estrutura constitucional com funções, competências e legitimação de

órgãos, claramente fixada, obtém-se um controlo recíproco do poder (checks

69 Essa dimensão negativa nos remete a uma quarta função do Estado, a função de controle que modernamente

and balances) e uma organização jurídica de limites dos órgãos do poder”

(CANOTILHO, 2003, p. 251).

b) A segunda ideia básica, relativa à interpenetração das funções estatais,

sustenta que por ordenação funcional separada também se deve entender uma

“ordenação controlante-cooperante de funções”. Significa dizer que “O que

importa num estado constitucional de direito não será tanto saber se o que o

legislador, o governador ou o juiz fazem são actos legislativos, executivos ou

jurisdicionais, mas se o que eles fazem pode ser feito e é feito de forma

legítima” (CANOTILHO, 2003, p. 251). Contudo, essa segunda ideia básica é,

de certo modo, limitada pelo conteúdo do princípio normativo autônomo,

abaixo declinado.

O segundo, princípio normativo autônomo, traz a ideia de que a justeza ou

correção de uma decisão pode autorizar ou justificar uma “compartimentação de funções” que

não coincida com uma separação orgânica rígida. Isto é, pode ser dada certa competência

administrativa ao legislativo e ao judiciário, certas funções legislativas ao executivo e assim

por diante, sem que essa sobreposição de funções orgânicas venha a representar a ruptura da

Separação de Poderes, salvo, contudo, se o núcleo essencial dos limites de competência

constitucionalmente fixados for desrespeitado (CANOTILHO, 2003, p. 251-252).

Por último, o terceiro, princípio fundamentador de incompatibilidades, tem a

ver com a chamada “separação pessoal de poderes ou funções”. Tal princípio tem aplicação

particularmente acentuada no que diz respeito aos titulares do Poder Judiciário. Entretanto, no

que concerne à separação pessoal governo-parlamento [Canotilho nos fala da experiência de

Portugal], “tende hoje a considera-se, sobretudo nos Estados de partidos maioritários, que não

há rigorosa delimitação entre parlamento-governo mas entre governo (parlamentar-executivo)

e oposição.” E em seguida conclui não constituir isto um problema no sistema constitucional

português: “De qualquer modo, um completo entrelaçamento pessoal de funções executivas e

parlamentares é evitado através do princípio da incompatibilidade entre cargo (executivo) e

mandato (parlamentar) (cfr. Arts. 154.º/1, 161.º/1/a

70

e 216.º)

71

” (CANOTILHO, 2003, p.

253).

70

Informe-se que a edição da obra de Canotilho utilizada nesta pesquisa data de 2003 e que a versão da

Constituição da República Portuguesa consultada no site

<http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>, Acesso em: 03 jan. 2012, já fora objeto da VII Revisão Constitucional de 2005. Assim, acreditamos que atualmente o autor deve se referir ao art. 160.º/1/a (reproduzido na nota de rodapé seguinte), já que não existe o art. 161.º/1/a, mas tão somente o art. 161.º/a, que assevera:

Destaque-se que essa visão, especialmente no que toca à dimensão negativa,

possui íntima ligação com a função estatal atribuída ao que chamamos de Funções Essenciais

à Justiça, como se verá oportunamente.