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CAPÍTULO I SOCIEDADE, ESTADO E GOVERNO – A REPÚBLICA FEDERATIVA

1.4 A República Federativa do Brasil

1.4.2 A Separação dos Poderes nas Constituições brasileiras – um breve passar de olhos

A evolução constitucional brasileira nos mostra que desde a Constituição Imperial

de 1824 até a atual Constituição de 1988 se adota, ainda que formalmente

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, o modelo de

95 Sobre esse tema em específico, Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 802) discorrem com lucidez: “Os Estados

assumem a forma federal tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Um território amplo é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e de paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes.

O federalismo tende a permitir a convivência de grupos étnicos heterogêneos, muitas vezes com línguas próprias, como é o caso da Suíça e do Canadá. Atua como força contraposta a tendências centrífugas. O federalismo, ainda, é uma resposta à necessidade de se ouvirem as bases de um território diferenciado quando da tomada de decisões que afetam o país como um todo. A fórmula opera para reduzir poderes excessivamente centrípetos.

Aponta-se, por fim, um componente de segurança democrática presente no Estado federal. Nele o poder é exercido segundo uma repartição não somente horizontal de funções – executiva, legislativa e judiciária –, mas também vertical, entre Estados-membros e União, em benefício das liberdades públicas.”

Separação dos Poderes, com algumas particularidades a depender da época de vigência da

Ordem Constitucional, como se observará a seguir.

Sob a perspectiva da Separação dos Poderes, a Constituição Imperial de 1824 tem

como principal característica a sua tetrapartição, com a instituição do Poder Moderador, muito

similar ao Poder Prerrogativo do modelo lockeano, assim dispondo em seu Título 3º:

TITULO 3º

Dos Poderes, e Representação Nacional.

Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Políticos é o principio

conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer

effectivas as garantias, que a Constituição offerece.

Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do

Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder

Executivo, e o Poder Judicial.

Art. 11. Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador, e a

Assembléa Geral.

Art. 12. Todos estes Poderes no Imperio do Brazil são delegações da Nação.

A Constituição republicana de 1891, por sua vez, consolida o modelo da

tripartição dos poderes asseverando em seu artigo 15 que “São órgãos da soberania nacional o

Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si.”

Redação próxima a essa se vê no art. 3º da Constituição de 1934, de curta

duração: “São órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si.”

Com a Constituição de 1937 – embora não contenha dispositivo específico

tratando do tema, como as anteriores – mantêm-se formalmente (simuladamente) a

Separação dos Poderes. Todavia, em face do seu cunho autoritário, mudanças substanciais

foram efetivadas na estrutura orgânica de distribuição do “Poder” no Estado nacional:

primeiramente, é bom que se diga que, muito embora o Poder legislativo continuasse

bicameral (art. 38, § 1º), o Senado fora dissolvido por força do seu art. 178, assim

permanecendo durante todo o período de sua vigência; em segundo lugar, havia previsão de

que o Presidente da República poderia dissolver a Câmara dos Deputados (art. 75, b) e nesses

casos, bem como nos períodos de recesso do Parlamento, teria a competência de expedir

decretos-lei sobre matéria de competência legislativa da União (art. 13); e por fim, o

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Nos períodos ditatoriais, representados pelas Constituições de 1937, 1967 c/c o Ato Institucional n. 5 de 1968, e pela Emenda Constitucional n. 1 de 1969 (que é considerada por muitos uma nova Constituição), a previsão da Separação de Poderes, explícita ou implicitamente, constava de seus textos, por isso a expressão acima “ainda que formalmente”. Todavia, as demais disposições constitucionais existentes nas mencionadas Cartas Políticas a enfraqueciam de tal maneira que, na prática, o Poder estatal restava concentrado nas mãos do titular do Poder executivo, como se verá adiante.

parágrafo único do art. 96 da Carta previa que as decisões do Poder Judiciário que

declarassem a inconstitucionalidade de leis, que a juízo do Presidente da República fossem

necessárias ao bem-estar do povo e aos interesses nacionais, poderiam ser submetidas

novamente ao exame do Parlamento, por ordem do chefe do Poder executivo, a fim de serem

confirmadas por dois terços de votos em cada uma das Câmaras. Nesse caso as decisões do

Tribunal ficariam sem efeito e o ato normativo voltaria a viger

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.

Assim disposto, na prática o Poder supremo estava concentrado nas mãos do

Presidente da República, muito embora, topograficamente, pudesse se encontrar no texto de

1937 a previsão de existência de três poderes no Estado brasileiro ainda que não fossem eles

nem independentes nem harmônicos entre si.

Restaurando o regime democrático, a Constituição de 1946 volta a prever

expressamente a harmônica tripartição dos Poderes em seu artigo 36: “São Poderes da União

o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si”; conferindo,

deste modo, estabilidade política ao Estado nacional por quase duas décadas.

Já em 1967, em face da revolução militar de 1964, instaura-se uma nova ordem

constitucional ditatorial que perdurou por outras duas décadas. Referida Constituição fez

constar expressamente em seu texto a Separação dos Poderes, corolário da República, quando

asseverou no art. 6º que o legislativo, o executivo e o judiciário eram Poderes independentes e

harmônicos entre si. Todavia, o processo de escolha do Presidente da República não era tão

democrático assim, bem como não refletia a disposição do artigo 1º, §1º daquele diploma:

“Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.” Ora, se todo o poder emana do povo,

fórmula legitimatória de atribuição do Poder estatal a um determinado governo, o mesmo

deveria ser transmitido por meio de sufrágio direto dos cidadãos. Contudo, o art. 76 da Carta

de 67 previa que o Presidente seria eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão

pública e mediante votação nominal. Não fosse isso, e talvez a previsão de censura (art. 8º,

VII), a Separação dos Poderes não sairia tão lacerada em razão do “golpe” sofrido com a

tomada do Poder pelos militares. Ocorre que, para assegurar a continuidade da obra

revolucionária, o Presidente da República, no referido regime militar, tendo ouvido o

97 Por ironia, encontra-se certa semelhança na ratio desse instituto da Constituição de 1937 com o chamado

recall judicial dos EUA, de cunho eminentemente democrático. A diferença básica e crucial é que neste o

povo, por meio de votação, superava a decisão do Tribunal, já no brasileiro, o Presidente, com mão de ferro, superava o Judiciário e fazia prevalecer o seu entendimento. Sobre o recall judicial consultar DALLARI, 1995, p. 131-132.

Conselho de Segurança Nacional, editou o Ato Institucional n. 5 (AI 5)

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, de dezembro de

1968, que pôs fim à Separação de Poderes e limitou de forma severa direitos e garantias

fundamentais do povo brasileiro.

A partir desse momento histórico a Separação de Poderes (e a própria democracia)

tornou-se simplesmente um simulacro a fim de pseudo-legitimar a atuação do governo

revolucionário, eis que de fato concentrava todos os Poderes, ou a sua maior parte (o que já

era mais do que suficiente para se constituir um governo ditatorial), nas mãos do Presidente

da República que poderia decretar o recesso do Poder legislativo em todas as três esferas,

assumindo, juntamente com os Governadores ou Interventores e com os Prefeitos, as referidas

competências nas respectivas unidades federativas.

Ademais, todos os atos praticados de acordo com o AI 5 e seus atos

complementares encontravam-se excluídos de apreciação judicial, o que de uma só vez

reduziu as competências do Poder judiciário como legítimo integrante da tripartite ordem

Estatal e aumentou exponencialmente a liberdade de atuação do Poder executivo.

Por fim, suprimindo-se todas as limitações ao poder de atuação do Estado

previstas na Constituição, ou seja: fazendo letra morta de todas as garantias e direitos

previstos na Lei Fundamental da época, o Presidente da República, ouvido o Conselho de

Segurança Nacional (art. 90, §§ 1º e 2º) – o que na prática não significava mais “segurança”

98 Por sua importância história, se transcreverá alguns dos dispositivos do AI 5 que versavam direta ou

indiretamente sobre o tema ora em análise:

“Art. 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.

Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

[...]

Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

[...]

Art. 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do art. 152 da Constituição.

[...]

Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.”.

para a população –, poderia suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo

de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Menos de um ano depois da edição do AI 5, na escuridão do recesso Parlamentar

decretado pelo Ato Complementar n. 38, de 13 de dezembro de 1968, em 17 de outubro de

1969 foi promulgada a Emenda Constitucional n. 1 à Constituição de 1967, que embora tenha

preservado a redação original do art. 6º da Constituição de 1967, que tratava da tripartição

harmônica dos Poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário), manteve expressamente

a previsão da eleição indireta para o Chefe do Poder executivo (art. 74) e principalmente, no

seu art. 182, a vigência do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968 e dos demais

Atos posteriormente baixados, o que retirava qualquer força normativa do preceito político e

democrático do mencionado art. 6º, chancelando com mão de ferro a rigidez e a tirania do

regime revolucionário que se instalara no país.

Vinte anos depois que a Constituição de 67 c/c a EC n. 1/69 foi outorgada, houve

a reabertura democrática com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de

1988 (CF/88) que, como já referido, efetivamente adotou a Separação dos Poderes na sua

clássica formatação tripartite, tal qual consta da redação do seu art. 2º: “São Poderes da

União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Embora inquestionável a alteração do nosso regime de governo com a adoção da

democracia como bússola a nortear o Estado, há quem questione a Separação dos Poderes

adotada pela Constituição de 1988, sobretudo no que tange à invasão das competências do

Poder legislativo pelo Poder executivo: o caso das Medidas Provisórias, com previsão

constitucional no art. 62 e §§, da CF/88

99

.

Sobre o tema, buscando conferir contornos menos drásticos ao caso específico,

Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 156) assim se posicionam:

99 Como mencionado anteriormente, em lição extraída de J. J. Gomes Canotilho, a teoria da Separação dos

Poderes traz naturalmente consigo princípios informadores de sua relevância jurídico-constitucional, dentre os quais está o princípio normativo autônomo que – embora repila uma separação orgânica rígida sem que uma eventual sobreposição de funções (legislativo e judiciário exercendo funções executivas, executivo e legislativo exercendo funções judicantes e executivo e judiciário exercendo funções legislativas) venha a representar a ruptura do modelo separatista – sustenta a higidez da perfalada separação no respeito incondicional ao núcleo essencial dos limites de competência fixados na Constituição para cada um dos Poderes.

Desse modo, o referido autor português cita expressamente o caso do Brasil em torno das medidas provisórias, que segundo ele são “actos provisórios com valor legislativo editados pelo Presidente que é, simultaneamente, chefe de Estado e chefe de Governo.” (CANOTILHO, 2003, p. 252, nota de rodapé 17) Tal, no seu ponto de vista, não se coadunaria com a Separação de Poderes, sob o viés do princípio normativo autônomo, pois o Poder executivo violaria o núcleo essencial de competências do Poder legislativo.

Inicialmente formulado em sentido forte – até porque assim o exigiam as

circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias

atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige

temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num

círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência

constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam.

Nesse contexto de “modernização”, esse velho dogma da sabedoria política

teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para

a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas

provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação

judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das

cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral,

como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em

sede de controle de constitucionalidade.

Nesse mesmo sentido, e adotando como exemplo o próprio exercício de funções

legislativas pelo executivo, tendo por base a edição de Medidas Provisórias, Ferreira Filho

(2010, p. 163), ao discorrer sobre a interpenetração dos Poderes, parece não enxergar no

mencionado caso qualquer ofensa ao núcleo essencial dos limites de competência, mas, ao

contrário, afirma que modernamente a especialização funcional do Estado não pode traçar

ditas competências em compartimentos estanques e incomunicáveis. Aliás, relembra o autor,

que o próprio Montesquieu reconhecia a necessidade de uma comunicabilidade entre os

Poderes, de modo inclusive a permitir a perenidade da própria separação. Com efeito, alude

que a especialização “inerente” à Separação de Poderes é meramente relativa, consistindo

numa predominância no desempenho de uma função, mas que, secundariamente, cada Poder

deve estar apto a colaborar no desempenho de outras funções, teoricamente alheias à sua

esfera de competências originárias.

Por fim, em tal pensamento é acompanhado por Alexandre Aragão (2003) que

informa não existir “uma separação de poderes”, mas “muitas”, variáveis segundo cada direito

positivo e momento histórico diante do qual nos colocamos. Eis que se se subtrair o “caráter

dogmático e sacramental” impingido à clássica Separação dos Poderes, ela poderá ser

colocada, sem qualquer prejuízo, em seus devidos termos: consubstanciação de uma divisão

das atribuições do Estado entre distintos órgãos, que terão por consequência uma proficiente

divisão de trabalho e, concomitantemente, configurarão empecilho à perniciosa concentração

das funções estatais. E complementa aduzindo que o Princípio da Separação dos Poderes não

pode conduzir à assertiva de que cada um dos respectivos órgãos exercerá tão só e

necessariamente uma das três funções habitualmente consideradas – legislativa, executiva e

judicial; não se podendo, ademais, dele inferir que todas as funções do Estado devam sempre

se subsumir a uma das tradicionais espécies classificatórias.

Aqui, tem-se uma referência, embora implícita, às Funções Essenciais à Justiça –

FEJ, como um quarto viés da tradicional teoria da separação do poderes, ou separação das

funções estatais

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, sobre as quais se falará com maior vagar no Capítulo II deste trabalho.