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O Estado de Direito e o Liberalismo

No entendimento de Habermas, o esclarecimento kantiano estaria baseado na harmonia indefinida existente entre a ação privada do proprietário e a ação pública do cidadão. Os dois usos da razão poderiam conviver de maneira adequada numa sociedade legalmente governada. As leis deveriam, portanto, proibir que o indivíduo, em seu comportamento público, tentasse fazer valer seus interesses privados. Simultaneamente, deveriam dirimir todos os obstáculos que porventura pudessem impedir que ele, em seu comportamento privado, consiga dar vazão a todas as suas potencialidades, desde que não ameacem a liberdade dos outros proprietários. De um ponto de vista público, as leis deveriam obrigá-lo a proceder como um erudito. Em contrapartida, de um ponto de vista privado, deveriam permitir que ele agisse como proprietário. Neste sentido, a tendência histórica indicaria que, ao longo dos anos, os produtos da legalidade seriam constantemente aperfeiçoados, estabelecendo limites cada vez mais nítidos entre os espaços privado e público.

Para Habermas, ao atrelar o benefício geral ao egoísmo individual, Kant estaria condicionando a saída do estado de menoridade à posse privada. Assim, somente aquele que fosse senhor de si estaria apto a atingir a maioridade:

Ao público que raciocina politicamente, o acesso é restrito aos proprietários privados, pois sua autonomia está enraizada na esfera do intercâmbio de mercadorias e, por isso, coincide também com o interesse em sua manutenção como uma esfera privada: “a única qualidade exigida para isso, excetuada a natural (que não seja uma criança, uma mulher), é: que ele seja o seu próprio senhor, tendo portanto alguma propriedade (podendo aí ser computada qualquer arte, artesanato, talento artístico ou ciência) que o sustente; que ele, no caso de ter de receber de um outro para viver, só o faça através da alienação do que é seu e não através da concessão que ele dê a outros no sentido de fazerem uso de suas forças; por conseguinte, que ele nunca sirva senão a “res publica” no sentido autêntico da palavra. Ora, nisso todos os artesãos e grandes (ou pequenos) proprietários são iguais...” (Habermas, 1999, pp. 186-187; Habermas, 1984, p.134).

Com tal exigência, excluir-se-ia da esfera pública a classe social que mais tarde viria a ser conhecida como assalariada. Contudo, ainda assim não se colocaria em xeque o pressuposto da universalidade do acesso àquilo que é “público”, uma vez que, dotados com as mesmas disposições naturais, todos os indivíduos poderiam, pelo esforço pessoal, ascender à condição de proprietário. Não é difícil antever que, com a participação política restrita a uma classe singular, a coincidência entre o interesse particular dos proprietários privados e o interesse geral da coletividade efetivar-se-ia sem maiores transtornos. A subjetividade do homem viria à tona quando não mais fosse preciso vender sua força para sobreviver. Além da falta de empenho e de engenhosidade, nada poderia impedir a libertação do indivíduo.

Inclusive Marx, o pensador que teceu as mais incisivas críticas à sociedade capitalista, reconhece que, num dado instante, o interesse burguês converte-se em interesse geral. Insurgindo-se contra o poder restaurador da aristocracia, a burguesia abre o caminho para a intensificação do desenvolvimento das forças produtivas. Sem

demora, porém, o modo de produção capitalista transforma-se em empecilho a este desenvolvimento. A insistência da burguesia em generalizar seu interesse circunscrito de classe é suficiente para transformá-lo em ideologia. Os pressupostos da economia clássica nunca se fizeram efetivos. A idéia do livre acesso aos meios de produção jamais se materializou. Muito pelo contrário, a propriedade concentrou-se continuamente nas mãos de um grupo de pessoas cada vez mais reduzido. O caráter ilusório da opinião pública, preceito legitimador do poder legalmente constituído, é assim revelado pelo processo histórico.

Cronologicamente, a crítica marxiana da economia política é posterior ao pensamento de Kant. Quando este constrói sua concepção de esfera pública, insiste Habermas, o ideário liberal era suficientemente verossímil para fazer as vezes de princípio teórico fundamental:

Kant partilhava da confiança dos liberais de que, com a privatização da sociedade civil (bürgerlichen Gesellschaft), tais pressupostos sociais estabelecer-se- iam por si mesmos como a base natural do Estado de Direito (Rechtszustandes) e de uma esfera pública capaz de funcionar politicamente, que eles já pudessem ter-se ensaiado; e como uma tal constituição social já parecia desenhar-se tão distintamente como ordre naturel não é difícil para Kant supor histórico- filosoficamente que o Estado de Direito (rechtlichen Zustand) proviria de uma imposição da natureza, permitindo-lhe fazer da política uma questão de moral

(Habermas, 1999, p. 188; Habermas, 1984, p. 135).

O liberalismo daria a sustentação para que o indivíduo pudesse assumir, sem nenhuma contradição, comportamentos distintos, conforme as relações em que estivesse inserido. Na esfera pública, ele agiria como homme, como um sábio que

busca acima de tudo a realização de interesses universais. Na esfera privada, atuaria como bourgeois, como um proprietário que luta pela obtenção de benefícios pessoais:

A ficção de uma justiça imanente ao livre intercâmbio de mercadorias torna a sincronia entre bourgeois e homme, dos proprietários privados com os indivíduos autônomos, pura e simplesmente plausível. A relação específica das esferas privada e pública, da qual decorre a duplicação do bourgeois interessado na figura do homme desinteressado, do sujeito empírico em inteligível, possibilita também a consideração (Betrachtung) do citoyen, o cidadão com direito a voto, sob o duplo aspecto da legalidade e da moralidade. Em seu “patologicamente pervertido” comportamento, ele pode ao mesmo tempo parecer comportar-se como um homem moralmente livre, enquanto só por meio de uma intenção da natureza, ou seja, à base de uma sociedade emancipada da dominação e neutralizada quanto ao poder, constituída por proprietários concorrentes, está assegurada a concordância da esfera pública política com o seu auto-entendimento, formado a partir da esfera pública literária, ou seja, de tal modo que as pessoas privadas interessadas, reunidas num público, comportem-se externamente como se interiormente fossem livres (Habermas, 1999, pp.188-189; Habermas, 1984, pp.135-136).

As leis adviriam da esfera pública, espaço em que o sujeito moralmente livre tomaria parte em discussões cujo objetivo exclusivo seria a identificação do interesse geral. Destarte, a legalidade poderia resultar de uma espécie de moralidade, embora o ser humano ainda estivesse distante de pertencer a um todo moral. A

Öffentlichkeit, por estar segura contra as ingerências do mundo do trabalho e da

reprodução material da sociedade, poderia sim ser tomada como a expressão histórica da idéia de autonomia. Na opinião de Habermas, apesar de representar apenas em aparência a ordem moral vislumbrada por Kant, a esfera pública

perfeitamente da dicotomia funcional do indivíduo burguês. Em outros termos, nesta constelação histórica, a política já estaria submissa à razão:

Sob os pressupostos sociais que traduziriam private vices em public virtues, é representada uma situação cosmopolita (weltbürgerlicher Zustand) e, com isso, empiricamente, a submissão da política à moral. Esta situação cosmopolita (...) pode reunir, numa mesma base de experiência, duas legislações heterogêneas, sem que uma atue em detrimento da outra: a das pessoas como donos de mercadorias conduzidas por interesses privados e, ao mesmo tempo, a dos seres humanos espiritualmente livres (Habermas, 1999, p. 189; Habermas, 1984, p. 136).

Como já havíamos mencionado, a autonomia kantiana impõe a superação das restrições empíricas à liberdade de raciocínio; impõe a unidade do sujeito. O fato de a razão, no decorrer de seu processo de realização, servir-se do antagonismo dos interesses particulares é uma contingência. Para Kant, o fundamental é que por trás deste conflito há uma força racional a priori zelando para que a jornada em direção à sociedade cosmopolita seja cumprida. Ao contrário do que sustenta Habermas, a chamada mão invisível do mercado não pode ser vista como condição para a construção da esfera pública:

Na verdade, o conceito central de antagonismo prova o realismo da concepção kantiana da história. Este antagonismo, que explica o dinamismo histórico, consiste no conflito entre as tendências anti-sociais e as tendências sociais dos homens. Ele é uma força que atua independentemente de qualquer consideração da moralidade da ação. Mas, subjacente à irracionalidade individualista dos fatos e independente das vontades individuais conflitantes, atua uma força racional, dando um sentido à história e guiando-a a um fim. Quer dizer, ou os homens optam racionalmente por um fim histórico, ou a natureza conduzi-los- á forçosamente, através de guerras, egoísmos e outras desgraças até ele. De modo que o progresso “moral” da humanidade é livre, porque se consubstancia com a

prática racional. Os homens que agem moralmente são os únicos que tomam consciência real de um sentido da história. A história propriamente dita só existe a partir deste ponto de vista racional; o mais não passa de natureza, ou de história natural da humanidade, que contra as próprias vontades individuais contribui no entanto para a superação dos individualismos e o aperfeiçoamento da espécie humana (Rohden, 1981, pp.164-165) 7.

O aperfeiçoamento do gênero humano exige a superação dos individualismos, da diversidade dos interesses egoístas. Seguindo um desígnio preestabelecido, a

publicidade deve, portanto, promover a unificação do sujeito. No fundamental, a

essência da Öffentlichkeit kantiana é construída em torno da suposição da existência de uma espécie de movimento dialético entre seus componentes. Destarte, a ordem social que criou os fatores que permitiram empiricamente o florescimento da esfera

pública burguesa não pode, sem acarretar prejuízo, ser justificada mediante o

recurso a Kant.

Segundo Habermas, todavia, apesar de não ter feito ao longo de sua obra uma única menção ao termo opinião pública, ao estabelecer a discussão pública levada a efeito por indivíduos culturalmente preparados como condição para a formação da

vontade geral, Kant já estaria trabalhando precisamente com o conceito. Neste

contexto, aquilo que Habermas chama com alguma insistência de princípio da

publicidade nada mais é do que a substância ideal condutora de um processo

comunicativo capaz de orientar, de maneira critica, a construção da opinião pública.

7 Em La Filosofia Kantiana della Storia, P. Chiodi identifica três significados distintos para o termo natureza:

1) “natureza” como origem do bem (providência, fim, racionalidade). 2) “natureza” como origem do mal (natureza selvagem, brutal, etc). 3) “natureza” como natureza humana. Os dois primeiros destes três conceitos expressam possibilidade e como tais confluem para o terceiro, definindo-o (Chiodi, 1967, p. 281).

Esta referência a Chiodi aparece no texto de Ricardo Terra Algumas Questões sobre a Filosofia da História

em Kant.

Na concepção habermasiana, esfera pública, opinião pública, princípio da

publicidade e esclarecimento são noções que, despidas de qualquer conteúdo

dialético, complementam-se.

Tais noções estariam articuladas com impressionante coerência na idéia kantiana de Estado de Direito. Esta ordem justa, enfatiza Habermas, iria surgir naturalmente, desde que fossem preservadas as circunstâncias que garantiriam a todos a possibilidade de adquirir propriedades e, conseqüentemente, de se elevar culturalmente. Uma vez que as ações privada e pública dos indivíduos não redundariam em qualquer contradição, as leis não poderiam estar em desacordo com o interesse universal. Publicamente fundadas, elas seriam o signo da moralidade humana. Todavia, na interpretação de Habermas, quando os pressupostos liberais mostram-se falhos, quando a defesa da existência de uma base natural para o desenvolvimento do Estado de Direito deixa de ser razoavelmente crível, quando não é mais possível sustentar a hipótese de que os indivíduos valer-se-iam tão- somente do raciocínio público para dar forma a uma legislação “justa”, deixando seus interesses egoístas acorrentados à esfera privada, a constituição deste Estado de

Direito assumiria as características de uma tarefa propriamente política. A simples

imposição da natureza já não seria mais suficiente para acarretar a esperada racionalização completa da dominação:

A outra versão da filosofia da história, a não-oficial, parte de que primeiro a política deveria insistir na produção de um Estado de Direito. Tal versão serve-se, com isso, da idéia da construção de uma ordem cosmopolita resultante sobretudo

da imposição da natureza e da política moral. Política não pode ser compreendida exclusivamente como um agir moral, como um agir de acordo com leis positivas existentes: a positivação delas como meta autêntica de sua ação precisa muito mais levar em conta uma vontade coletiva unificada no interesse geral do público, ou seja, em seu bem-estar. Isso, por sua vez, deve ser efetivado pela publicidade

(Habermas, 1999, 193; Habermas, 1984, p.140).

Esta versão não-oficial da filosofia da história de Kant visaria adequá-la, corrigindo seus defeitos constitutivos. De acordo com ela, a legalidade deveria decorrer da moralidade, tendo sempre em vista o bem-estar material imediato do

público. Neste caso, assumindo um viés mais pragmático, a idéia de Estado de Direito deveria ser analisada sob a ótica de uma nova concepção que possibilite, no

interior das relações burguesas de produção, a participação política do indivíduo com base numa perspectiva diversa de autonomia privada, distante daquela construída pela posse de propriedades. A ação do sujeito deveria antes ser orientada pela sua felicidade cotidiana, identificada e alcançada empiricamente mediante a

publicidade, do que pelas normas imutáveis do imperativo categórico. Como

veremos adiante, Habermas irá se apegar a esta idéia para tentar manter, a partir de outros pressupostos, a distinção entre uso privado e uso público da razão.

Aqui, para Habermas, importa ressaltar que, tomada em seu rigor, a esfera

pública kantiana passaria a revelar incoerências no exato momento em que o

liberalismo clássico torna-se inverossímil, inviabilizando a crença de que, por meio da duplicidade do indivíduo burguês, os vícios privados poderiam converter-se em benefícios públicos. A esfera pública burguesa agora apresenta feições que já não mais permitem que ela seja interpretada dentro dos parâmetros que teriam sido

concebidos por Kant. A transformação da idéia de Öffentlichkeit em ideologia – se é que tal idéia foi algum dia mais do que isto – impõe a mudança de referencial teórico. Habermas é então obrigado a lidar com aqueles autores que se ocuparam em trazer a lume as contradições endêmicas relativas à sociedade burguesa: Hegel e Marx.

III

A Crítica à Esfera Pública Burguesa: