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O Liberalismo Reformulado de Mill e Tocqueville

Batizada com o nome de A Ambivalente Concepção de Esfera Pública na

Teoria do Liberalismo (John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville) (Die ambivalente Auffassung der Öffentlichkeit in der Theorie des Liberalismus (John Stuart Mill und Alexis de Tocqueville)), a seção 15 de Mudança Estrutural da Esfera Pública trata

do modo ambíguo como o pensamento liberal do século XIX, representado pelas figuras emblemáticas de Mill e Tocqueville, critica as novas feições adquiridas pela

esfera pública, agora caracterizada não somente pela presença de proprietários, mas

também de trabalhadores, ambos lutando pela realização de interesses próprios. A crítica de Mill e Tocqueville à esfera pública incide sobre a deterioração do

princípio da publicidade, causada pelo fato de aquele espaço antes ocupado

exclusivamente por “bem-educados” membros da elite econômica ter sido invadido por uma massa semi-alfabetizada. A fim de solucionar o problema, os filósofos em apreço propõem que a opinião pública sofra um verdadeiro choque de publicidade, conduzido por uma casta culturalmente preparada, atuando como uma espécie de órgão consultivo. Ou seja, para enfrentar os males da publicidade, a terapia indicada requer novamente publicidade.1

Apesar dessas conseqüências negativas, Mill e Tocqueville não se colocam na linha de frente contra a extensão dos direitos políticos a todas as classes sociais. Embora a ampliação da esfera pública não tenha levado, contrariando as expectativas dos primeiros socialistas, à dissolução daquela base material que certa

1 De um lado, teríamos a publicidade que se adultera em virtude da influência maléfica das classes sociais sem preparo cultural, de outro, teríamos a crença no poder da publicidade crítica como fator apto a propiciar a

feita teria permitido a existência de um público imbuído tão-somente na racionalização do poder político, a coerência da denúncia do caráter ideológico da

esfera pública burguesa repercutiu de forma decisiva no interior do liberalismo.

Tanto é verdade que, por volta da segunda metade do século XIX, já sob a influência de uma opinião pública formada a partir de pressupostos sociais modificados, os liberais curiosamente passam a questionar o princípio da publicidade num momento em que eles próprios ainda saudavam a idéia de esfera pública:

Essa ambivalente concepção de esfera pública na teoria do liberalismo não reconhece na verdade o conflito estrutural da sociedade, do qual ela própria resulta; a apologia liberal é superior à crítica socialista sob o ponto de vista de que ela põe em questão os pressupostos fundamentais que são comuns a ambos, tanto ao modelo clássico de esfera pública burguesa quanto a seu antimodelo (Gegenmodell), desenvolvido dialeticamente (Habermas, 1999, p. 209; Habermas,

1984, p. 156).

De acordo com Habermas, nesta época, a teoria liberal começa a contestar a idéia da existência de uma ordem natural que agiria no sentido de garantir indistintamente a possibilidade de todos os indivíduos virem a adquirir propriedades e, com isso, as qualificações necessárias para tomar parte na esfera pública. Da mesma forma, a opinião pública passa a ser suspeita de esconder, por trás da aparência de universalidade, interesses que dizem respeito a segmentos sociais específicos. Assim, ela mostrar-se-ia incapaz de permanecer imune às antíteses estruturais que habitam a esfera privada, colocando por terra a tentativa de torná-la legitimamente a portadora da razão:

Enquanto agora os socialistas demonstram à idéia de esfera pública burguesa que a sua base não comporta (genügt) estes pressupostos e que, para satisfazê-los, deveria ser colocada sobre uma outra base, os liberais tomam os fenômenos da mesma contradição como motivo para colocar em dúvida os pressupostos de uma base natural sobre os quais repousa a idéia de uma esfera pública politicamente ativa – para então, contudo, decididamente dar a palavra à conservação de uma forma relativizada de esfera pública “burguesa”. Por isso, com o liberalismo, o auto-entendimento da esfera pública burguesa perde a forma da filosofia da história em favor de um melhoramento do senso comum – torna-se “realista” (Habermas, 1999, p. 210; Habermas, 1984, p.157).

Acessível à classe dos não-proprietários, a esfera pública torna-se o palco de um conflito aberto, circunscrito até então à esfera privada. Diante da ineficiência cada vez mais evidente do mercado em atender às demandas dos diferentes grupos sociais, o Estado, pressionado tanto pelos proprietários quanto pelos trabalhadores, vê-se obrigado a intervir de uma forma cada vez mais intensa na economia:

Leis que se realizam sob a “pressão das ruas” (“Druck der Stra

β

e”)

dificilmente se deixam entender a partir do consenso razoável das pessoas privadas que discutem publicamente; elas correspondem, mais ou menos francamente, ao compromisso de interesses privados concorrentes (Habermas, 1999, p. 211;

Habermas, 1984, p.158).

A contragosto, Habermas tem de reconhecer que um dos principais fatores para a formação da opinião pública, entendida como fruto de um acordo racionalmente fundado, é a homogeneidade dos indivíduos que participam da discussão de idéias, como teria ocorrido na segunda metade do século XVIII. A heterogeneidade dos componentes da esfera pública leva inevitavelmente ao conflito

de interesses. Neste caso, o consenso, via de regra, é a expressão de um acordo firmado à força. Para Habermas, aquela opinião que ganhou forma por intermédio da discussão norteada pelos parâmetros e objetivos da crítica sofreu duro golpe em virtude da ampliação do público. Com isso, as instituições da esfera pública deixaram de ter a marca que as havia caracterizado como o reduto da humanidade: um elevado nível cultural.

Na visão do filósofo alemão, Mill e Tocqueville defenderiam, em nome justamente da publicidade, a imediata admissão ao espaço publico dos trabalhadores manuais e das massas desprovidas de propriedade e educação, já que haviam sido desfeitas as ilusões concernentes a uma pretensa igualdade de chances para que todos pudessem um dia ascender materialmente. Há outras nuanças que, contudo, precisam com urgência ser esclarecidas. O compromisso que Mill e Tocqueville estabelecem entre o pensamento liberal e os pressupostos democráticos visava antes de tudo à criação de instrumentos legais capazes de absorver politicamente os antagonismos sociais, impedindo a radicalização dos componentes desagregadores presentes na atividade opositora desempenhada pela classe operária. Na esfera

pública, propostas para a dissolução da ordem econômica vigente poderiam ser

neutralizadas com maior facilidade, transformando-se em alternativas de governo institucionalmente reconhecidas.

Liberais, como Mill e Tocqueville, que apoiavam a esfera pública em nome do princípio da publicidade condenavam-na também novamente em seus efeitos em nome do mesmo princípio. Pois os interesses irreconciliáveis que, com a ampliação do público, afluem à esfera da publicidade (Sphäre der Öffentlichkeit) arranjam a sua representação numa opinião pública fragmentada e fazem dela, na configuração da opinião dominante em cada momento, um poder coercitivo, embora uma vez se tivesse pensado que ela deveria dissolver toda espécie de coerção na coerção tão-somente da compreensão que se impusesse (Habermas,

1999, p. 213; Habermas, 1984, 159).