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O Poder Coercitivo da Opinião Pública

A esta altura, já temos subsídios mais do que suficientes para poder identificar quais foram as razões que motivaram Habermas a buscar refúgio na teoria liberal do século XIX. Se por um lado parece claro que Mill e Tocqueville não acrescentaram até agora nenhum dado inovador à concepção de Öffentlichkeit, exceção feita à necessidade de repensar a existência de uma ordem natural na qual tal concepção possa se apoiar2, por outro, eles refletiram a partir de uma esfera

pública socialmente modificada, apontando para a decadência cultural deste espaço,

provocada pela participação desqualificada, porém inevitável, da classe trabalhadora, propondo como saída para este impasse a retomada do princípio da

publicidade.

2 Na verdade, antes de Mill e Tocqueville, Marx, nunca é demais insistir, já havia denunciado o caráter ideológico da esfera pública burguesa. De todo modo, a inovação reside no fato de eles terem se apoderado desta crítica dentro dos limites do pensamento liberal. Assim, ultrapassa-se, mediante a concessão de direitos políticos, a idéia, característica do século XVIII, da autonomia privada baseada somente na posse de propriedades.

Em outras palavras, Mill e Tocqueville querem apenas a reforma da esfera

pública. Eles não ousam contestar a estrutura da sociedade burguesa, responsável

pelas contradições que agora adquirem feições públicas. Apesar do desvio em relação à sua finalidade original, o princípio da publicidade, como tal, continuaria válido.

A proposta habermasiana de intervenção na esfera pública das democracias de massa do século XX, dominada pelo poder da opinião não-pública, é exatamente essa, acrescida evidentemente de uma intenção mais pontual, como veremos no próximo capítulo. Aliás, a idéia de opinião não-pública, nos termos propostos por Habermas, já ocupa papel de destaque nas reflexões de Mill e Tocqueville. Com efeito, nelas, a opinião pública, já pensada à luz de uma esfera pública heterogênea, não passa de uma força exterior que impõe os seus pontos de vista aos indivíduos, sem lhes dar margem para uma reflexão autônoma. Sua ação é manipuladora e violenta. Obviamente, a opinião do público não refletiria mais a vontade geral. Pelo contrário, representaria os interesses que, no campo de batalha em que se transformou o espaço público, conseguiram suplantar seus concorrentes. Não seria outra a principal característica da opinião dominante, seja qual for ela.

No pensamento de Tocqueville, confundida com a opinião da massa, a

opinião pública constitui um poderoso e eficaz instrumento de anulação da

Cresce a tendência a acreditar na massa e cada vez mais é a opinião pública que rege o mundo (...). Ela não convence pelo seu modo de ver, mas ela o impõe e impregna os ânimos graças a uma poderosa pressão espiritual de todos sobre o entendimento individual. Nos Estados Unidos, a maioria assume a tarefa de servir ao indivíduo uma porção de opiniões prontas, tirando-lhe com isso a obrigação de formar uma para si mesmo. Assim, nas questões filosóficas, éticas ou políticas há um grande número de teorias que cada um assume sem perceber, confiando na esfera pública (apud Habermas, 1999, p. 214; Habermas, 1984, p. 160).

Desde que encontrasse um mecanismo eficiente a limitá-la, a opinião pública, na melhor das hipóteses, poderia ser útil no controle dos poderes estatais. Conforme sustenta Habermas, redirecionada, a função da esfera pública não seria mais promover a dissolução da dominação, mas somente distribuí-la. A opinião pública deveria ser tomada como um poder entre outros. Logo, seria imperioso impedir que ela continuasse a agir soberanamente. Neste quadro, na interpretação de Habermas, a defesa por parte de Mill da tolerância como contrapeso ao arbítrio não resultaria do acaso:

Onde, ao invés do poder do monarca, apareceu o poder, ao que parece, não

menos arbitrário da própria esfera pública, a acusação de intolerância atinge agora a opinião pública que se tornou opinião dominante. A reivindicação de tolerância volta-se para esta e não para os censores que outrora a reprimiam; e o direito à liberdade de expressão não deve mais proteger o raciocínio crítico do público ante a intervenção da polícia, mas os não-conformistas ante o ataque do próprio público (Habermas, 1999, p. 215; Habermas, 1984, p. 161).

Inspirada na questão religiosa, a idéia de tolerância teria como ponto de partida a convicção de que, diante da diversidade insuperável das opiniões que ocupam lugar na esfera pública, todas reivindicando o título de verdadeiras, seria

simplesmente impossível encontrar uma solução racional para a disputa levada a efeito pelos interesses concorrentes. Destarte, não haveria mais um critério universal de acordo com o qual as opiniões pudessem ser avaliadas. A verdade teria várias faces, inatingíveis para as opiniões que trariam consigo o “cerne da crença”:

Não é por crítica, mas sim por tolerância que Mill clama (verlangt), uma vez que os restos dogmáticos, embora reprimidos, não podem ser conduzidos ao denominador comum da razão. À unidade da razão e da opinião falta a garantia objetiva de uma concordância de interesses socialmente efetiva, principalmente a demonstrabilidade (Erweisbarkeit) racional de um interesse universal (Habermas,

1999, pp.215-216; Habermas, 1984, p. 161).

Ora, Mill, ao contrário do que afirma Habermas, não preconizava a inviabilidade de alcançarmos a verdade. Para o pensador inglês, a pluralidade de opiniões, cada qual com sua parcela de correção, deveria ser preservada, em razão de representar tanto um valor humano quanto um valor epistemológico. Obviamente, ele tinha ciência de que a construção da verdade envolveria o consenso, ou seja, a superação das divergências. Portanto, o conhecimento dar-se-ia à custa de outros valores. Os proveitos decorrentes desta situação nem sempre justificariam tal opção.

Numa passagem de Sobre a Liberdade, Mill sugere as vantagens advindas da pluralidade de opiniões:

Ainda resta falar de uma das principais causas que fazem da diversidade de opinião vantajosa e continuará a fazê-la enquanto a humanidade não entrar em um estágio de progresso intelectual que no presente parece a uma distância incalculável. Até agora, consideramos duas possibilidades: que a opinião admitida possa ser falsa e alguma outra, conseqüentemente, verdadeira; ou que, sendo

verdadeira a opinião admitida, torna-se essencial o conflito com o erro oposto para uma clara percepção e profundo sentir de sua verdade. Porém, há um caso mais comum do que qualquer um destes; quando as doutrinas conflitantes, em vez de ser uma verdadeira e a outra falsa, dividem a verdade entre si, necessitando-se de que a opinião discordante venha a suprir o resto da verdade, da qual a doutrina admitida corporifica somente uma parte. Opiniões populares sobre temas não acessíveis à sensibilidade são muitas vezes verdadeiras, mas raramente ou nunca constituem a verdade total. Elas são uma parte dela (...) (Mill, 1947, p.45).

Um pouco adiante, o autor acrescenta:

Em conseqüência, mesmo nas revoluções de opinião, uma parte da verdade usualmente permanece, enquanto outra se dissipa. Mesmo o progresso, que deveria acrescentar, com freqüência substitui apenas uma verdade parcial e incompleta por outra, consistindo o aperfeiçoamento, sobretudo, no fato de que o novo fragmento é mais necessário, mais adequado às exigências da época do que o por ele deslocado. Sendo assim parcial o caráter das opiniões que prevalecem, mesmo quando baseadas num fundamento verdadeiro, cada opinião que corporifica algo da porção de verdade omitida pela opinião comum deve ser considerada preciosa, seja qual for a quantidade de erro e confusão que lhe possa estar unida (Mill, 1947, p. 46).

Para Habermas, em virtude de a opinião pública não dispor dos meios adequados para decidir com segurança e responsabilidade os caminhos que deveriam ser seguidos pelo conjunto da sociedade, não restaria outra alternativa à teoria liberal senão propor, contrariando a idéia da autodeterminação de um público pensante, a interferência hierárquica de uma espécie de elite intelectual. As questões políticas não deveriam ser decididas direta ou indiretamente pelo público inculto, mas sim por meio das considerações de um pequeno grupo criado especificamente para esse fim:

A opinião pública determinada pelas paixões da massa necessita ser depurada pelos conhecimentos (Einsichten) abalizados de cidadãos (Bürger) materialmente independentes; a impressa, embora um importante instrumento do esclarecimento, não seria suficiente para tanto. A representação política, sem dúvida, deveria repousar sobre uma hierarquia social (Habermas, 1999, p. 217;

Habermas, 1984, p. 163).