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A Formação Discursiva da Vontade Geral

Se no ensaio Que Significa Orientar-se no Pensamento (Was heisst: sich im

Denken orientierem), publicado em 1786, Kant reafirma a máxima anunciada

anteriormente em suas reflexões acerca do conceito de esclarecimento, a de que a correção de nossos pensamentos está atrelada à liberdade de construí-los publicamente, no texto Sobre a Paz Perpétua (Zum ewigen Frieden), de 1795, o filósofo alemão vai mais longe: explicitamente, impõe a publicidade como conditio

sine qua non do Estado que queira alicerçar-se sobre um conjunto de leis morais:

Depois de uma tal abstração de todo o empírico, que contém o conceito do direito político (Staatsrechts) e do direito internacional (Völkerrechts) (como é, por exemplo, a maldade da natureza humana, que torna a coação necessária), pode-se chamar à seguinte proposição fórmula transcendental do direito público (öffentlichen Rechts) : “são injustas todas as ações referentes ao direito de outros homens, cujas máximas não se coadunam com a publicidade (Publizität)”. Este

virtude), mas também jurídico (dizendo respeito ao direito dos homens), pois uma máxima que não posso manifestar em bom tom sem que concomitantemente se frustre o meu próprio intuito, que deve continuar inteiramente oculta, se desejar ter sucesso, e que não posso professar publicamente sem causar inevitavelmente a oposição de todos contra meu propósito, uma tal máxima apenas pode obter a reação de todos contra mim, cognoscível a priori, pela injustiça que os ameaça”

(Kant, 1993b, pp.244-245).

Reunidos na esfera pública, os indivíduos têm o direito de decidir

autonomamente a respeito das leis às quais serão obrigados a se submeter. Não é nenhum disparate supor que, por meio do livre raciocínio de um público esclarecido, uma ordem plenamente justa, que reconheça de modo equânime todos os cidadãos, possa ser configurada. Habermas admite que, ao elevar a soberania popular ao mais alto patamar da organização do corpo político, a argumentação de Kant aproxima-se da desenvolvida por Rousseau. Todavia, a semelhança entre os dois autores não iria além desta valorização da democracia. Para evitar confusões, Habermas apressa-se a recorrer à suposta dualidade irreconciliável do sujeito kantiano:

Nisso a argumentação segue completamente a de Rousseau, com uma decisiva exceção num ponto: que o princípio de soberania popular apenas pode tornar-se realidade sob a condição do uso público da razão (Habermas, 1999,

p.184; Habermas, 1984, p.131).

Ao desprezar a esfera privada, espaço tido como indispensável para a elaboração da subjetividade, Rousseau simultaneamente estaria abrindo mão da possibilidade de o indivíduo assumir o papel público de pessoa culturalmente preparada, apta a se nortear pelo seu próprio entendimento. Diante deste quadro, o processo discursivo ficaria irremediavelmente prejudicado, selando de uma vez por

todas as esperanças de que um dia a política viesse a ser comandada pela moral. Por meio deste raciocínio, nota-se o quanto a Öffentlichkeit habermasiana é incapaz de se desvencilhar da confusão teoricamente firmada entre a autonomia do sujeito e a autonomia econômica do proprietário.

Por enquanto, não podemos perder de vista que a idéia kantiana de uma ordem cosmopolita alicerçada sobre a luminosa coincidência entre política e moral pertence ao domínio do entendimento puro, situado além de todas as limitações impostas pela experiência. Esta idéia pressupõe que as relações mantidas entre governantes e súditos sejam caracterizadas pela liberdade civil, assegurada por uma constituição republicana. Da mesma forma, pressupõe que as relações estabelecidas entre os diferentes Estados sejam pacíficas. Embora não deixe de confiar na benevolência de um plano racional que, previamente traçado pela natureza, abriria primeiro o caminho e depois trabalharia ininterruptamente para que o Estado de

Direito se fixasse entre nós, Kant nunca nutriu maiores ilusões quanto à origem do

corpo político cuja tendência é conformar-se à moralidade:

Sem dúvida, a vontade de todos os homens singulares de viver numa

constituição legal conforme os princípios da liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos) não é o bastante para este fim, mas se exige ainda que todos em conjunto aspirem a esta situação (a unidade coletiva das vontades reunidas); esta solução de um difícil problema exige-se ainda para o todo da sociedade civil, e uma vez que à heterogeneidade das vontades particulares de todos deve-se acrescentar ainda uma causa unificadora do mesmo de modo a promover uma vontade comum, o que nenhum deles consegue, não se deve contar na execução daquela idéia (na práxis) com nenhum outro começo do estado jurídico (rechtlichen Zustandes) senão o início pela força (Gewalt), em cuja coação (Zwang) fundar-se-á posteriormente o direito público; o que sem dúvida (...) permite esperar já antecipadamente grandes

desvios daquela idéia (da teoria) na experiência real (...) (Kant, 1993b, pp.230-

231).

Independentemente do que façam os indivíduos, ainda que insistam em agir em vista de seus interesses mais mesquinhos, a natureza segue incólume a caminhada em direção àquilo que é melhor para a espécie. Mesmo um Estado criado pela força e pela coação haverá de ter um dia leis legitimadas tão-somente pela moralidade de um público que raciocina livremente. Em outras palavras, a história

(Weltgeschichte)4 encarregar-se-á de proceder à depuração do conjunto legal da

sociedade até que este venha a ser a expressão acabada da autonomia do sujeito. Para promover o progresso moral do gênero, ironicamente, a natureza serve-se da oposição congênita que reina entre os indivíduos. O fato de os homens decidirem viver numa ordem legal resulta desta tendência egoísta. É na vida em sociedade que a humanidade do indivíduo é reconhecida pelos seus semelhantes. Porém, em contrapartida, o indivíduo, ao mesmo tempo, é levado a desejar isolar-se dos demais companheiros, buscando obter apenas para si próprio os benefícios propiciados pela vida coletiva:

O meio de que se serve a natureza para efetivar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que este, no final das contas, torna-se a causa de uma ordem regida por leis. Eu

4 Na concepção de Kant, dirigido por um fio condutor a priori, o processo histórico é construído sobre dois planos distintos. De um lado, há a Historie, a história propriamente dita, composta empiricamente pela sucessão aparentemente desordenada de acontecimentos. De outro, existe a Weltgeschichte, a história do

mundo, na qual é possível identificar um sentido para tal processo, permitindo de certa maneira uma espécie

de antecipação do futuro. É justamente o conhecimento deste devir histórico que nos dá o direito de nutrir a esperança de um dia vivermos numa sociedade civil universal.

entendo aqui por antagonismo a sociabilidade associal (ungesellige Geselligkeit) dos homens; ou seja, a tendência dos mesmos a entrar em sociedade que está unida a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Esta disposição é manifesta na natureza humana. O homem tem uma inclinação para se socializar porque se sente mais como homem em um tal estado, por meio do desenvolvimento de suas disposições naturais. Porém, ele também possui uma forte inclinação para se separar (isolar-se), porque, ao mesmo tempo, encontra em si uma qualidade insociável que o leva a desejar dirigir tudo simplesmente em seu interesse, aguardando oposição de todas as partes, assim como está inclinado, por seu lado, a se opor aos outros (Kant, 1993c, pp.37-38).

Para Kant, a iniciativa pessoal de indivíduos movidos por sentimentos egoístas é o elemento catalisador do desenvolvimento das disposições naturais do homem.5 No mundo dos fenômenos, tais disposições assumem a feição da discórdia. Para dirimir as conseqüências nefastas de um conflito desenfreado, impõe-se a necessidade de um acordo. Suficiente para conter o egoísmo que, uma vez exacerbado, pode pôr em xeque a sobrevivência do gênero humano, esta convenção, contudo, não expressa ainda a essência que define uma ordem justa. De todo modo, já é um claro indício de que a humanidade está a se esclarecer. Quando atingir a

maioridade, acordos firmados à força, construídos mediante o estabelecimento de

consensos artificiais, deixarão de ser a tônica; enfim, as leis não serão mais do que a corporificação de um todo moral:

5 De acordo com Kant, sem aquelas qualidades da insociabilidade, em si, na verdade, nada agradáveis, das

quais nasce a oposição que cada um deve necessariamente encontrar às sua pretensões egoístas, todos os talentos permaneceriam eternamente ocultos, em germe, numa vida pastoril arcádica, em perfeita concórdia, sobriedade e amor correspondido. Os homens, de índole tão boa quanto as ovelhas que apascentam, mal proporcionam à sua existência (Dasein) um valor maior do que aquele que seus animais têm; eles não ocupariam o vão da criação em vista de seu fim como natureza racional. Agradeçamos, pois, à natureza pela intratabilidade (Unvertragsamkeit), pela vaidade invejosa e competidora, pelo desejo jamais satisfeito de ter e de dominar (Kant, 1993c, p.38).

Este antagonismo é o que, ao fazer aflorar todas as forças do homem, o leva a superar sua inclinação à preguiça e, impulsionado pela vaidade (Ehrsucht), pelo despotismo ou pela cobiça, a conseguir uma posição entre companheiros que não tolera, mas dos quais não pode abrir mão. Aqui, dão-se então os primeiros passos verdadeiros da rudeza (Rohigkeit) à cultura (Kultur), que consiste propriamente no valor social do homem; neste caso, desenvolvem-se pouco a pouco todos os talentos, forma-se o gosto e começa mediante um ininterrupto esclarecimento a fundação de um modo de pensar que pode, com o tempo, transformar as rudes disposições naturais para o discernimento moral em princípios práticos determinados e assim finalmente transformar um acordo imposto patologicamente para uma sociedade em um todo moral (moralisches Ganze) (Kant, 1993c, p.38).

Habermas, por seu turno, está convencido de que o processo concebido por Kant, em virtude de fazer de um contínuo antagonismo a força motriz dos eventos históricos que se sucedem, reservaria empiricamente lugar apenas para um progresso baseado na acumulação de produtos da legalidade.6 No respeitante à questão da moralidade, significativamente, a realização da idéia de uma ordem justa apenas poderia ser levada em conta caso fosse analisada como mera aparência:

Quando a natureza do “antagonismo da sociedade” serve-se internamente das lutas, assim como também da guerra entre os povos, para desenvolver todas as disposições naturais (Naturanlagen) da humanidade em uma “sociedade civil administrada universalmente pelo direito”, então essa “constituição civil plenamente justa” deverá ser ela própria uma “acordo imposto patologicamente”, que apenas “aparenta” ser um “todo moral” (Habermas, 1999, p. 186; Habermas,

1984, p.133).

Impossibilitado de abandonar o pressuposto da autonomia do proprietário, Habermas, numa postura surpreendente, passa a questionar a viabilidade da

6 De todo modo, Habermas ao menos reconhece a ambigüidade da filosofia da história kantiana, na qual também haveria lugar para assertivas que nos permitiriam identificar a idéia de que a humanidade estaria caminhando em direção à concretização efetiva de um todo moral.

realização histórica do conceito kantiano de esclarecimento. Sugere-se novamente que a maioridade estaria restrita ao comportamento público do indivíduo. Todavia, pela primeira vez, reconhece-se que a esfera privada somente poderia permanecer à margem do processo de ilustração caso a idéia de justiça plena presente na concepção de esfera pública criada por Kant fosse considerada uma imagem vinculada apenas aparentemente à realidade:

Nela, um problema terá encontrado a sua solução prática, que Kant coloca teoricamente na fórmula: “Ordenar uma multidão de seres racionais que, em conjunto, exigem leis gerais para sua conservação, das quais, todavia, cada um inclina-se ocultamente a se eximir, e organizar a sua constituição de tal maneira que estes, embora se opondo em suas disposições privadas, contenham-se reciprocamente de um modo que, em seu comportamento público, o resultado seja idêntico ao que obteriam caso não possuíssem essas disposições maldosas” – uma variação do slogan de Mandeville: “private vices, public benefits” (Habermas,

1999, p. 186; Habermas, 1984, 133-134).

Na verdade, Habermas faz referência à seguinte passagem de Sobre a Paz

Perpétua:

Por mais duro que soe, o problema do estabelecimento do Estado (Staatserrichtung) é resolúvel, inclusive (selbst) para um povo de demônios (desde que tenham entendimento), e reza o seguinte: “Ordenar uma multidão de seres racionais que, em conjunto, exigem leis gerais para sua conservação, das quais, todavia, cada um inclina-se ocultamente a se eximir, e organizar a sua constituição de tal maneira que estes, embora se opondo em suas disposições privadas, contenham-se reciprocamente de um modo que, em seu comportamento público, o resultado seja idêntico ao que obteriam caso não possuíssem essas disposições maldosas”. Um tal problema deve ser solucionado (Kant, 1993b, p.224).

Como demonstra a citação, Kant está tratando de problemas concernentes ao estabelecimento e à orientação do Estado. Como é sabido, quando surge, o corpo político reflete uma situação em que persiste a dominação pura e simples. A ordem legal visa a conter os impulsos egoístas do homem. Com o tempo, os acordos extorquidos à força tendem a dar lugar a leis morais, inevitavelmente. Para que isso ocorra, é necessário que os indivíduos esclareçam-se, por intermédio da liberdade pública de raciocínio, independentemente de que, na esfera privada, continue a prevalecer a obediência inquestionável. Entretanto, o esclarecimento só se completa com a reconciliação do sujeito, no momento em que ele é capaz de usar continuamente seu próprio entendimento sem a direção de outrem.

Habermas não pode propor a superação da cisão histórica do indivíduo burguês, sob o risco iminente de levar sua concepção de esfera pública ao malogro. Ao mesmo tempo, para continuar a fazer de Kant sua principal fonte teórica, é obrigado a sustentar que a natureza teria legado ao homem um eterno esclarecer-se. Ora, assim procedendo, o núcleo de sua teoria – a idéia de que a esfera pública

burguesa já traria desenvolvidos os componentes essenciais de uma ordem

esclarecida – não cairia por terra? Habermas não estaria simplesmente confessando que esta formação social nunca foi além de uma mera aparência daquilo que propunha, com todas as falsificações daí decorrentes?

Para responder a estas indagações, é de suma relevância que levemos em consideração a influência que, de acordo com Habermas, o pensamento político de Kant teria sofrido do liberalismo do século XVIII.