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Para a compreensão do Estado penal, contribui sobremaneira a leitura de Foucault (1987), que demonstra as estratégias adotadas pelo Estado ao longo do tempo para o controle social por meio do disciplinamento dos corpos e da estruturação de um sistema penal, em busca de uma sujeição ao poder político e econômico vigente. O autor revela as estratégias de poder assumidas com o surgimento da pauperização, advinda da instalação da economia de mercado, em ascensão desde os séculos XVII e XVIII. No novo contexto, a punição passa a ter seu enfoque alterado: desassocia o conflito com a lei à pena capital, e relaciona a punição ao tratamento, por meio do suplício do corpo. Tal tratamento passa a se dar em sistema de internação, com predominância da invisibilidade da punição destinada aos desviantes e criminosos. A recuperação por meio da imposição da disciplina do corpo e da alma, em cárceres, distancia-se do conhecimento público e isenta o sistema judiciário, corpo jurídico responsável pela definição da sentença, do dever de executar suas decisões, afastando-se das avaliações públicas sobre a punição degradante.

De forma menos agressiva, a punição se institui sob a administração do Estado penal, que abandona a prática do direito à morte das pessoas consideradas desviantes, para a sua neutralização por meio do adestramento e controle dos corpos e da alma, manifesto de duas formas de ―biopoder‖: o condicionamento dos corpos e o poder disciplinar. O modelo disciplinar exposto por Foucault (1987) é retomado por Wacquant (2005) em sua análise das sociedades americana, francesa e inglesa, ao demonstrar como os cárceres e suas práticas de desumanização têm sido utilizados como estratégia contemporânea de regulação das relações econômicas e sociais, ora marcadas pelo ideário liberal, e de maximização do mercado e minimização do Estado. Aprisionar tornou-se uma alternativa importante diante da nova configuração do capital, que se reproduz cada vez mais com menos trabalhadores, deixando-os sem referência de proteção pelo trabalho, e da mesma maneira pelo Estado, dada a retração das políticas sociais.

A internação da pobreza também foi adotada pelos países desenvolvidos e capitalistas como meio de atingir o equilíbrio necessário às demandas econômicas típicas da economia de mercado. Wacquant (2005), com base em estudos realizados na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, demonstra a condenação de alguns

segmentos populacionais como alternativa recorrente do poder econômico para se estabilizar e criar condições de avanço do capital. Para o autor, a coesão social depende da inibição das ameaças à manutenção da estabilidade urbana, por meio de ações policialescas e repressivas da liberdade, manifestadas pela instalação do Estado penal.

Ao discutir a violência atual como um velho problema no mundo novo, Wacquant (2005) defende que o protagonismo da violência urbana é atribuído historicamente a grupos que compõem a classe trabalhadora, empregada e desempregada, manifestadamente pobre. A associação da pobreza com a criminalidade, além de ser assumida pelo Estado penal, ressalta o autor, é disseminada na sociedade, que, diante da insatisfação coletiva com a violência urbana, busca atribuí-la a determinados segmentos populacionais, exigindo a tomada de medidas de endurecimento da ação policial como meio de autoproteção. Assim, o autor chama de Estado penal aquele que centra sua ação na segurança pública, por meio do encarceramento da miséria como meio de manutenção da ordem social.

Wacquant (2001) destaca que a política de criminalização da miséria é complementar ao contexto de precarização e flexibilização do trabalho, característico das transformações do mundo do trabalho, marcadamente a partir da década de 1970. Trata-se de um meio de controlar não mais as pessoas desviantes das regras e normas sociais, mas os grupos supérfluos ―[...] pela dupla reestruturação da relação social e da caridade do Estado: as frações decadentes da classe operária e os negros pobres da cidade. Ao fazer isso ele assume um lugar central no sistema dos instrumentos do governo da miséria [...] com vistas a apoiar a disciplina do trabalho assalariado dessocializado‖ (WACQUANT, 2001, p. 96).

Enfim, Wacquant aponta algumas tendências do Estado penal: o crescente encarceramento por práticas de pequenos delitos de pessoas oriundas de famílias no limite da pobreza; o aumento das organizações prisionais, para dar conta do crescimento das internações; a ampliação dos gastos públicos com a manutenção das prisões; o escurecimento da população prisional, em razão da prevalência da prisão de pessoas negras. Assim, verifica-se que, a partir da adoção do ideário neoliberal, ocorre um recrudescimento das penas, fato que vem se reproduzindo notoriamente no Brasil, em especial no que tange aos adolescentes e jovens envolvidos em práticas infracionais, haja vista a ampliação do número de unidades de internação e a concentração dos investimentos no sentido da privação da liberdade. Pelas pesquisas que serão apresentadas adiante, observa-se que a massa carcerária brasileira é negra e pobre,

permitindo-se então afirmar que se encontra no Brasil um processo de criminalização da miséria, marcada também pela cor da pele.

2 A QUESTÃO SOCIAL E A PRÁTICA INFRACIONAL NO BRASIL

Desde a colonização, a infância brasileira vem sendo entendida e tratada de diferentes formas, tanto no ambiente privado como no ambiente público. A compreensão sobre o atendimento prestado aos adolescentes autores de atos infracionais passa necessariamente por entender a concepção e o lugar social da infância e adolescência brasileiras nos diversos períodos históricos. Este capítulo retoma a construção do conceito da infância e seus efeitos na elaboração das legislações e políticas sociais protagonizados pela administração pública brasileira, tendo como foco os adolescentes envolvidos em práticas infracionais e sua responsabilização jurídica.

Para entender a concepção, a normatização e a política de atendimento como uma construção social, levam-se em conta as determinações econômicas, políticas e culturais de cada momento da história do Brasil, bem como as influências internacionais. Dessa forma, para compreender a estruturação dos serviços dirigidos aos adolescentes autores de atos infracionais, faz-se necessário identificar os cenários históricos e os atores que se mobilizaram para caracterizar a infância como um universo em separado do mundo adulto, portanto carecida de ações diferenciadas, e em consonância com as singularidades da idade, da classe social e de seu contexto.

É preciso também considerar os debates sobre a promoção e proteção dos direitos humanos ocorridos no cenário internacional, haja vista que as deliberações ali surgidas tiveram desdobramentos substanciais na legislação e nas políticas de atendimento do Brasil. Em decorrência disso, a próxima seção examinará as normativas internacionais que passaram ao ordenamento jurídico e operacional brasileiro.

2.1 A interface dos direitos humanos com os direitos dos adolescentes