• Nenhum resultado encontrado

Ao final do século XIX e início do século XX, o Estado liberal, diante das crises do sistema capitalista que afetavam os diversos países do Ocidente, perdeu força política, oportunizando a ascensão do ideário socialdemocrata e do Estado social. O Estado social promoveu uma correspondência entre os objetivos econômicos, políticos e sociais, em que o capitalismo se mantinha preservado em seu crescimento e desenvolvimento, mas adotou também o bem comum dos trabalhadores como forma de manutenção da coesão social.

A concepção de Estado social, que promove o bem-estar por meio de salários indiretos e regula as relações entre capital e trabalho, desenvolveu-se a partir da Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, tal modelo de regulação econômica e social foi assumido pela maioria dos países denominados centrais. Resultante de um processo de disputa política, a negociação foi admitida como uma alternativa que não abalaria os avanços do sistema capitalista, e adotou-se um amplo sistema de seguridade social universal, com o pleno emprego como parte do contrato social (ROSAVALLON, 1995). Nesse período, houve uma convergência entre o quase pleno emprego, o desenvolvimento dos direitos trabalhistas e o estabelecimento de um sistema de proteção social, como meio de prevenção dos riscos do trabalho e da existência. A garantia da integração na sociedade de consumo ampliou-se em relação inversa à da sociedade do início da industrialização. A perspectiva da regulação mudou, a coerção como medida integradora retraiu-se, e impôs-se a negociação entre os grupos de interesse.

Pereira (2008) destaca que, a partir de 1945, nos países do Ocidente, a política social foi o meio de concretização de direitos sociais e de cidadania, com a instalação do Welfare State. Ressalta ainda que ―a política social por não ser só uma forma de regulação, mas um processo dinâmico resultante da relação conflituosa entre interesses contrários, predominantemente de classes, tem se prontificado, como mostra a história, a serviço de quem maior domínio exercer sobre ela‖ (PEREIRA, 2008, p. 86). Tal fato demonstra a natureza contraditória da política social, pois, ao mesmo tempo que representa ganhos para os trabalhadores, constitui-se em meio de manutenção do sistema capitalista.

Com o Welfare State, multiplicaram-se os direitos de cidadania e as instituições democráticas. Abandonou-se o modelo anterior, em que prevalecia a assistência social associada à prestação de serviços, e adotou-se o sistema de proteção social baseada na incondicionalidade.

Para dar racionalidade ás suas ações, o Welfare State guiou-se (apesar de não ser idêntico ou unívoco nos vários contextos nacionais em que se realizou e se processou) por três marcos orientadores que, combinados, formam o que venho chamando, inspirada em Roche (1992), de Paradigma dominante de Estado de Bem-Estar, a saber: o receituário keynesiano de regulação econômica e social, inaugurado nos anos 1930; as postulações do Relatório Beveridge sobre a Seguridade Social, publicado em 1942; e a formulação da teoria trifacetada da cidadania, de T. H. Marshall, nos fins dos anos 1940 (PEREIRA, 2008, p. 90).

O receituário keynesiano defendia a tese de que o equilíbrio econômico dependia da interferência do Estado, em relação às variáveis do processo econômico, em especial a propensão ao consumo e o incentivo ao investimento. ―Assim, para Keynes, não era a liberdade do mercado que [...] faria com que a oferta criasse a sua própria demanda em níveis suficientes e desejáveis, mas somente sob condições peculiares de pleno emprego, movidas por forças externas‖ (PEREIRA, 2008, p. 92). Keynes era um defensor do modo de produção capitalista, e não um socialista. Para a preservação desse modo de produção, defendia a socialização do consumo, num capitalismo regulado. Ele rejeitava a tese marxista da socialização dos meios de produção. A corrente socialdemocrata identificou na proposta de Keynes e na democracia parlamentar um meio de aproximação do socialismo pela via da reforma social e econômica.13 Dessa forma, o Estado social passou a ser uma referência de compatibilização do capitalismo com os fins socialistas, representada pelo Welfare State.

O Relatório Beveridge sobre Seguridade Social, publicado em 1942, propunha a revisão do sistema de proteção social da Grã-Bretanha.14 Esse sistema caracterizava-se por ser nacional e unificado, conter eixo contributivo e distributivo, e abolir os testes de meio no âmbito da assistência social (PEREIRA, 2008). Já a teoria da cidadania, surgida também em 1940 e elaborada pelo inglês T. H. Marshall, identificou que a cidadania era composta por três tipos de direitos: civis, políticos e sociais, surgidos nos

13 Social-democracia é uma corrente do pensamento socialista surgida ao final do século XIX que busca a superação da desigualdade social pela via política da reforma social, sem revolução armada, mas por meio de reforma da legislação e garantia de acesso aos direitos sociais.

14 O Relatório Beveridge foi elaborado em 1942 pelo economista social-reformista William Henry Beveridge, com o objetivo de libertar o homem da necessidade. Sua proposta baseava-se na contribuição semanal de determinado valor financeiro, pelos trabalhadores, a fim de garantir proteção a doentes, desempregados, viúvas e reformados.

séculos XVII, XIX e XX, respectivamente. Para o autor, os direitos sociais que marcaram o Ocidente a partir de 1940 representavam uma postura afirmativa do Estado na garantia de segurança social.

Esping-Andersen (1991) destaca que existem formas diferenciadas de apresentação dos sistemas de proteção social nos países centrais, resultantes da combinação entre Estado, mercado e família. Ao discutir a constituição e expansão do Estado social, parte da análise de três regimes de bem-estar social instalados nas sociedades capitalistas centrais: o Welfare State de matriz liberal, que dirige a assistência social aos comprovadamente pobres, com ações focalizadas no Welfare State e planos limitados de previdência social; um regime corporativo e conservador, em que os direitos sociais vinculam-se ao status ou à classe social; e o modelo socialdemocrata, que busca promover a proteção social numa perspectiva universalizante. Segundo o autor, há mais de um tipo de Welfare State, constituídos com base em três fatores: a mobilização da classe trabalhadora, a coalizão política de classe e o legado histórico da institucionalização do regime de bem-estar social.

Com a ampliação do Welfare State na Europa e nos Estados Unidos, implementado após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo se renova, assumindo configuração combinada de fortalecimento do sistema de proteção social, e aproximação do pleno emprego. No Brasil, trata-se de um período de ampliação dos direitos sociais e trabalhistas, muito embora não tenha sequer se aproximado da consolidação do Estado de Bem-Estar Social, conforme delineado nos países europeus. Em relação à infância, surgem as primeiras legislações e instala-se a internação como modelo de proteção social destinada à infância abandonada e delinquente. Tal realidade será apresentada com maior profundidade no capítulo 2.

Segundo os estudiosos do Welfare State, tal sistema de proteção perdurou por ―trinta anos gloriosos‖, até a crise econômica de 1970, que levou à retomada dos ideários liberais como receituário de enfrentamento das dificuldades de crescimento do capital. A conta de tal estagnação e crise foi atribuída aos crescentes gastos com o sistema de proteção social, havendo uma tendência de retração do mesmo e de reestruturação produtiva, tendo em vista a manutenção do modelo de produção capitalista. Em tal contexto, ampliou-se o Estado penal, tendo na criminalização da pobreza crescente a alternativa de manutenção do modo de produção capitalista, sob nova configuração.

Esse tema, debatido a seguir, é fundamental para a compreensão da lógica de encarceramento da pobreza, instituída como resposta às novas necessidades do capital. A reestruturação produtiva, associada a uma reestruturação protetiva, assentou-se no desemprego estrutural, na consolidação da informalidade, na precarização do trabalho e na desmobilização dos trabalhadores, com base em uma economia marcada pela flexibilização e descentralização. Isso se deu simultaneamente à diminuição dos investimentos de políticas sociais, exigindo uma intervenção penal crescente e sistemática para manter a coesão social.