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Explicitando as razões deste silêncio, Luís Trindade remonta à retórica do “atraso português” para a examinar, numa análise, aliás, muito próxima da de André Lepecki, ao abordar a retórica da “modernidade” enquanto projecto coreográfico, amnésico e metamórfico estatal no Cavaquismo.

Avisando que em “lado algum se passou exactamente assim”, Trindade começa então por explicar a “história que a modernidade conta”, uma história que seria um “percurso de modernização e democratização”, onde se localizam como momentos-chave a Revolução Francesa e a Revolução Industrial e, como resultados, a constituição de “um espaço social que foi, no interior das sociedades europeias mais avançadas, simultaneamente, mercado, opinião pública e eleitorado das democracias” (Trindade 2004).

Curiosamente, diz, esta história tem em Portugal o seu corolário na narrativa do “atraso” português36. A sociedade portuguesa está sempre atrasada em relação ao que devia, e este atraso nunca parece ser questionado, nem mesmo pela ditadura que nele parece ter insistido. Veja-se, a este respeito, as cartas de Salazar ao Presidente da Coca Cola Company

35 Lepecki parece detectar aquilo a que José Gil em O Medo de Existir (Gil, 2007) chamará a “não inscrição” se bem que para Lepecki ela faça menos parte do carácter português e corresponda mais ao resultado de estratégias discursivas hegemónicas.

36 A respeito desta narrativa, agora em relação à historiografia da Arte em Portugal ver Mariana Pinto dos Santos “Estou Atrasado! Estou atrasado! Sobre o diagnóstico de atraso na arte portuguesa feito pela historiografia!” (Pinto dos Santos 2011).

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na Europa A. Makinski, em que o Presidente do Conselho se orgulha do atraso português e diz odiar a modernidade com a sua famosa “eficiência” (Conde 2006, 79).

(...) sempre me opus à sua aparição no mercado português. Trata-se daquilo a que eu poderia chamar a “nossa paisagem moral”. Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja louvado – “atrasado”, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca- se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo a modernidade e vossa famosa “eficiência”. Estremeço perante a imagem dos vossos camiões a toda a velocidade pelas ruas das nossas velhas cidades acelerando, à sua passagem os nossos seculares hábitos.

Assim, há toda uma narrativa e uma lógica do “atraso português” que Trindade (2004) explica “colar-se” não só aos discursos do senso comum, como às Ciências Sociais e às Humanidades no país, sobretudo as mais conservadoras “que se deixam prender quase inconscientemente nesta narrativa” quer seja escolhendo como objecto de estudo “essa mesma distância de Portugal em relação ao ideal” ou para “contar uma espécie de versão portuguesa da história da Europa, a partir de objectos que em Portugal são irrelevantes”.

É esta mesma lógica silenciadora e amnésica da retórica do “atraso” português que Lepecki critica na utilização do termo “modernidade” durante o cavaquismo. Chegando mesmo a referir, aliás, como revelador de “modernidade” ser, nesta altura, sinónimo de um projecto coreopolítico estatal o facto de o livro de Cavaco Silva, escrito em 1989 durante o período em que é Primeiro Ministro, se chamar “Construir a Modernidade”.

Ecoando uma ideia comum a Boaventura de Sousa Santos em “Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal” (Santos 1994), ou a Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade (Lourenço 1979) – textos escritos, portanto, muito perto do intervalo em que a acção de Maria Madalena de Azeredo Perdigão no ACARTE (1984-1989) se insere – Luís Trindade (2004) chama também a atenção para a relação das elites com o resto do país, sustentando que “a cultura portuguesa” teria criado “uma imagem particularmente errónea da sociedade” devido ao facto de os seus autores serem “uma elite afastada, e portanto desconhecedora, do povo que descrevem”. O “problema”, diz, seria então “que a literatura e o pensamento portugueses contemporâneos” não teriam “falado para ninguém porque não havia ninguém para ouvir”, o que nos levaria à noção de “simulação de Modernidade”, proposta por Boaventura de Sousa Santos (1994), noção esta, como se verá, que parece ecoar a noção de “simulacro de modernidade”, avançada por Rui-Mário Gonçalves (apud Nuno Grande 2009) para abordar o panorama artístico da sociedade portuguesa à época da Política do Espírito, nos Anos 30 e Anos 40. O que, porém, não fará com que o que quer que a modernidade seja tenha deixado de ser vivido em Portugal, porque em nenhum lado a modernidade terá sido a

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realidade plena que o discurso do atraso parece pressupor. Ou dito de outra forma, sendo a modernidade antes de mais uma cinética, todas as sociedades modernas se teriam vivido como incompletamente modernas (Jameson 1991).

Segundo Rui Mário Gonçalves, o fascismo português, não tendo tido de “encarar uma modernidade artística já inserida na sociedade, como aconteceu na Alemanha”, ter-se-ia aproveitado “do anacronismo do gosto dominante”, tendo-se “limitado a deixar as coisas na mesma e a dar a António Ferro a oportunidade de um simulacro: uma manobra de diversão política” (Gonçalves apud Grande 2009, 71). Para Trindade (2004), uma explicação possível para este panorama, que estende até muito perto de hoje em dia37, residiria na inexistência de uma classe média participativa, com hábitos (modernos) de discussão de ideias.

Na sociedade portuguesa não se teria constituído então a “classe-chave da modernidade”, uma classe média burguesa simultaneamente “mercado literário”, “opinião pública” e “eleitorado democrático”. Assim, nas suas palavras, “falar do país” equivaleria a “falar de um povo distante das cidades, da cultura e da participação”, razão pela qual “os discursos sobre o país, por ausência de interlocutor” nunca terão sido feitos “em confronto”, não fazendo, por isso, “parte de um processo político”.

No entanto, e como paradoxalmente chama a atenção, a narrativa da modernidade é transcendente à existência dos fenómenos sociais que constroem a modernidade. Ou seja, o facto de não haver classe média impede “a constituição dos fenómenos sociais que constituem a narrativa da modernidade mas não impede a narrativa da modernidade propriamente dita”. No caso particular do país, este fenómeno traduzir-se-ia no facto de Portugal não ter tido, “até muito tarde” um mercado alargado mas ter tido “bancos, capitalistas e projectos políticos de desenvolvimento”; não ter tido uma opinião pública participativa e com “densidade critica democrática” mas ter tido jornais, edição e absorvido as “grandes ideologias produzidas nos centros de modernidade”; não ter tido um “eleitorado suficientemente participativo que constituísse uma sociedade democrática liberal” mas ter tido governos eleitos e parlamento; não ter tido, por último “mercado literário” e universidade massificada, mas a sua elite cultural ter “mimetizado os principais movimentos intelectuais e correntes estéticas europeias” (ibidem).

37 “Nada aconteceu na sociedade portuguesa das últimas décadas que pudesse ter posto decididamente em causa a base estrutural que a marca como simulação da modernidade. A criação de instituições democráticas – contemporâneas da entrada de Portugal no mercado mundial e de uma abertura da sociedade ao consumo que transfigurou completamente a sua aparência –, não podia por si só preencher o vazio.” (Trindade 2004).

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Guarde-se, por agora, este “não ter tido” para o relacionar com a ideia de falta que se desenvolverá nos capítulos seguintes, tendo em mente, porém, que dar conta de uma falta não é exactamente o mesmo que instigar à superação de um atraso, dado que este último suporia sempre um suposto ideal com o qual haveria que estar em sincronia, uma vez “acertado o passo” (a tal modernidade plenamente realizada, sempre irrealizável, como visto).

Luís Trindade, não sem mais abaixo explicitar os riscos em que análises como esta incorrem, chega à noção de “simulação de modernidade”: a discrepância dupla entre a aparência discursiva do liberalismo, do romantismo ou do fascismo portugueses que teria então feito parecer que a “sociedade portuguesa percorria, no essencial, o mesmo caminho que as restantes sociedades europeias”, encobrindo assim “a verdadeira face social do país”. Este desfasamento implicaria então “uma enorme dificuldade em falar sobre a sociedade portuguesa porque, de uma perspectiva moderna, este falar de é um falar com” (ibidem).

Neste cenário, como defende Eduardo Lourenço (apud ), o povo seria então meramente “reduzido a um papel simbólico” uma vez que a elite lhe “determina[ria] uma posição e uma função” (ibidem). Isto, segundo Trindade, aconteceria tanto no silêncio pré- moderno do salazarismo como novo silêncio pós-moderno, feito do alarido abafador das imagens ofuscantes da mitificada “modernidade europeia”, de que também Lepecki dá conta quando se reporta aos finais da década de 1980, inícios da década de 1990. É neste quadro cultural que a abertura do CAM e a entrada em funcionamento do ACARTE na primeira metade dos Anos 80 se inserirá – ou seja, a sua acção, ao sistematicamente apresentar e produzir séries sucessivas de eventos de pendor experimental e voltados para o contemporâneo terá um impacto a nível cultural, simbólico e de formação de subjectividades ainda hoje difícil de avaliar.

1.3.11 “ABRIU EM PORTUGAL”

Mas se em tempo concreto uma década corresponde a dez anos, as transformações (ou as características) que à posteriori se lhe atribuem enquanto período histórico nem sempre são fáceis de localizar definitivamente nesse período cronológico. Veja-se a este respeito Alberto Pimenta (1978) em “Abriu em Portugal”, um poema publicado na revista Raiz e Utopia em 1978, revista esta onde Madalena Perdigão virá mais tarde também a colaborar.

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quem tinha a boca fechada ABRIU a boca em PORTUGAL.

e quem tinha a boca aberta?

quem tinha a boca aberta continuou a abrir a boca em PORTUGAL.

e quem tinha os olhos fechados?

quem tinha os olhos fechados não viu as bocas que abriram em PORTUGAL.

o céu, esse, nunca deixou de ABRIR em PORTUGAL.

e o beijo? Será que o beijo ABRIU em PORTUGAL?

«Em PORTUGAL o beijo não é permitido!» (Guarda do Parque Eduardo VII em Abril de 1968, a um par de estrangeiros que se beijavam).

em todo o caso ABRIU uma embaixada em PORTUGAL, e outra embaixada, e outra ainda, e mais outra e outra, todas com o fim de estreitar as relações entre os povos (e também entre as pessoas, claro).

e a limpeza das relações, será que ABRIU? ABRIU em PORTUGAL?

«Os portugueses enlodam sem lodo» Padre António Vieira, Sermão de Santo António com o lema

Qui fecerit, et docuerit, hic magnus vocabilitur).

mas abriram nomes novos (alguns bem bonitos) em PORTUGAL. e abriram os ficheiros da biblioteca nacional em PORTUGAL.

e abriram novas possibilidades de aproveitar coisas velhas em PORTUGAL.

e um ror de gente ABRIU a consciência em PORTUGAL, e depois de ter aberto a consciência ABRIU no mundo, mas entretanto já REABRIU em PORTUGAL.

e abriu a coca-cola, bebida que substitui com vantagem a água, o vinho, o leite... e até a gasosa, o pirolito e a laranjada. O ardor que provoca no estômago é uma coisa de nada e a eructação que desencadeia muito saudável.

em todo o caso, ABRIU uma venda ambulante em PORTUGAL e um «café-snack» à beira da estrada em PORTUGAL; e outra venda ambulante ao lado da outra, e outro «café-snack» ao lado do outro, e assim por diante, e assim por diante em PORTUGAL. (ibidem, 132-133).

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“Abriu em Portugal” de 1978, vai da abertura da boca e do beijo à abertura do O, passando pela abertura da consciência em Portugal, depois no mundo, e posterior Reabertura em Portugal38.

Assim, o poema dá conta de um avolumar de aberturas, fechamentos e reaberturas desde o primeiro ABRIU (que se intui ser ABRIL) até à instauração do Ano Propedêutico que coincidiu com o fim do Serviço Cívico, em 1977, sendo possível mesmo entrever “aberturas” fora do período específico que tradicionalmente se associa a “Abril”. E com elas porventura a abertura do Centro de Arte Moderna e do ACARTE – e o nascimento do Primeiro Museu de Arte Moderna em Portugal, por tanto tempo adiado.

Em A Cultura de Direita em Portugal, António Araújo (Araújo 2014) aponta para uma série de novas sociabilidades de pendor classista que emergiriam nos Anos 80. Espelhando-se em novos órgãos de comunicação, como a rúbrica Meia Desfeita do recém- criado jornal Semanário, fazendo realçar o facto de que estas, com as suas práticas distintivas (como as entradas a 150$00 e cartão gold para os sócios na discoteca Bananas), seriam inconcebíveis no período imediatamente anterior, correspondendo a um “padrão cultural – e mental – que teria sido impensável no período revolucionário”.

Tal como ABRIU em PORTUGAL, o texto de António Araújo39 tem o condão de colocar em relação o que vem antes e o que vem depois. No caso do primeiro, ao 1974 da abertura da boca suceder-se-ia o 1977 dos especialistas professores de pronúncia: a cronologia aparece comprimida. Já no caso do segundo, o período revolucionário serviria de contraponto a uma análise que Araújo estende até aos Anos 90, dilatando a linha do tempo. Mas em ambos é enumerada, por excesso, uma multiplicidade de coisas, espaços, práticas, hábitos, episódios e figuras: tudo o que abriu.