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Na sua análise do espaço heterotópico do Museu, Tony Bennett (Bennet 1995) parte da oposição que Michel Foucault (1984) estabelece entre o Museu e as Feiras e os Circos, heterotopias associadas ao tempo fugaz, passageiro, por oposição às heterotopias de acumulação infinita de tempo:

Do outro lado do espectro estão as heterotopias que estão associadas ao tempo na sua vertente mais fugaz, transitória, passageira. Refiro-me ao que assume o modo do festival. Estas heterotopias não estão orientadas para o eterno; bem pelo contrário, são de uma absoluta cronicidade, são temporais. É o que encontramos nas feiras e nos circos, sítios vazios situados nos limites das cidades que, duas vezes por ano, pululam com barraquinhas, montras, objectos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpente, pessoas que lêem o futuro nas mãos, entre muitos outros (ibidem, tradução livre).

Segundo Bennet (1995), uma interrogação histórica rigorosa traçaria os limites desta oposição, ela própria em construção à medida que o museu se diferenciava dos gabinetes de curiosidades. Tratar-se-ia portanto da aposta na defesa da racionalidade científica do espaço de representação construído pelo Museu e, assim, à medida que a função dos museus passava a ser educar e não provocar espanto ou surpresa, a passagem do caos (das curiosidades) à ordem (das colecções) seguia o percurso da ciência do erro à verdade.

No entanto, esta diferenciação não só não é linear como muitas vezes as contradições entre uma e outra função persistem até ao presente - como o demonstram uma série de mostras comerciais, exposições públicas, circos e feiras itinerantes. Estas últimas, temporárias, nos arredores das cidades, não apenas ocupariam o tempo e o espaço de forma diferente, como reuniriam em si a desordem e o irracional que o Museu afastou de si – “como se a pré-história do Museu tivesse vindo para o assombrar” (ibidem, 3).

O caso limite seria aquele em que as duas variedades de heterocronia se confundem ao ponto de se tornarem indistintas: é o exemplo que Foucault nos dá das “aldeias de férias”, onde a heterotopias do festival e a heterotopia acumulativa se encontrariam.

E um novo tipo de heterotopia temporal surgiu ainda há pouco tempo: as aldeias de férias. Como aquelas aldeias polinésias que oferecem um pacote completo de três semanas de eterna e primitiva nudez ao citadino. Repare-se que, no fundo, esta última reúne as duas formas de heterotopias de que acabei de falar, a heterotopia de festival e a heterotopia acumulativa: as cabanas de Djerba são em alguns aspectos aparentadas com os museus e as bibliotecas. A redescoberta da vida na Polinésia leva à abolição do tempo; mas é ao mesmo tempo uma experiência em que se redescobre o próprio tempo: é como se toda a história da humanidade pudesse rever as suas origens de uma maneira imediata, experienciada (Foucault 1984, tradução livre).

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Este tipo de análise será útil no caso do ACARTE para equacionar, por exemplo, a forma como a imprensa reagirá à proposta dos Encontros ACARTE 87 convidando o público a “vir passar dez dias de férias” ao espaço da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Tony Bennet (1995), relevando o modo como o recém-fundado (na década de 1850) National Museum of Victoria, em Melbourne, se procura distanciar das anteriores práticas de exibição de curiosidades, faz notar a coincidência entre a sua abertura e o aparecimento do primeiro parque de diversões fixo da cidade, inteiramente dedicado ao insólito e ao fantástico. Deduz, com isto, que sendo correcto afirmar que a feira e o museu emergem enquanto contrários, tratar-se-ia, então, de inquirir os termos e as formas em que esta oposição é estabelecida. A meio caminho, a emergência de um terceiro espaço, o parque de diversões situado em local fixo, situar-se-ia algures a meio, juntando um tom carnavalesco e uma temporalidade de feira com uma circulação ordenada de modo a evitar desacatos, construída para os passeios em família, em moldes de museu.

Um mesmo ethos de atenção às novidades e ao progresso – reflectido, na feira, no fascínio pelas máquinas – faria com que em finais do século ambos os lugares (o museu e a feira) participassem na elaboração e difusão de concepções do tempo idênticas. Só que na feira (que reunia lutadores e mulheres-cobra, videntes e corridas de carros) mais do que o tempo cumulativo e organizado linearmente da modernidade, dar-se-ia um choque de tempos.

No final do século o parque de diversões teria esbatido a oposição rígida entre o museu e a feira como formas antitéticas de ordenar espaço e tempo. O que, segundo Bennet, se teria porventura dado por intermédio de uma quarta heterotopia, temporária e itinerante: as Exposições Internacionais, onde ordenadamente se circulava num espaço temporário por um período restrito de tempo, apreciando os avanços do Progresso e os feitos das Nações.

Ao complexificar a relação entre todos estes espaços – e mais aparecerão – mesmo que aparentemente não relacionados (mantendo embora o espaço do museu como central à sua análise), Bennet procura entender os moldes em que se encontraria em curso, ao longo do século XVIII e XIX, uma transformação do campo cultural.

Assim, por um lado, o museu exemplificaria o desenvolvimento de uma relação governamental com a cultura, onde artefactos re-significados passariam a ter como função educar, “subindo” o nível cultural da população; e, por outro, seria necessário regular a conduta das populações nos espaços destinados à mostra desses mesmos artefactos, para tal

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adoptando-se frequentemente técnicas de controlo utilizdas em espaços como as estações dos comboios ou os grandes armazéns.

Paralelamente, o museu albergaria no seu centro o paradoxo de o homem ser simultaneamente o sujeito que vê e o objecto que é visto (e que o museu ajuda a construir), paradoxo aliás que constitui o núcleo bem conhecido em torno do qual se move a reflexão de Foucault (2000) em As Palavras e as Coisas. Este processo acarretaria consigo uma tensão nunca resolvida em termos de representação, colocando-se sempre a questão do que é representado: qual o Homem dado a ver (e a ser), quem e que representações ficariam de fora. Neste sentido a questão do acesso acompanhará desde cedo a emergência deste tipo de espaço “público”, precisamente porque o “público” não é nunca um dado adquirido, antes uma construção epocal e situada. Interessaria, pois, posicionar estes espaço público dentro de portas10, relacionando-os com outros lugares e tempos. E, no caso específico do ACARTE, situando-o no contexto do complexo Gulbenkian, da cidade de Lisboa, de Portugal e da Europa – na década de 1980.

Tentando equacionar assim o que poderão estes espaços vir a produzir, ocupando espaço em cada uma destas cartografias, constituindo-se enquanto “zona de contacto” (Clifford apud Pratt 1991, 225): ponto de encontros vários – entre obras, artistas, público, posições estéticas e existenciais, noções de arte e de cultura e formas de percepção e de relação entre estes vários elementos.

Bennet (1995) acabará por avançar a noção de complexo exibicionário: um conjunto de instituições que contribuiriam para a formação de uma tecnologia da visão que serviria para auto-regular a multidão, tornando-a perceptível a si própria. Assim, de acordo com este autor, museus e galerias de arte, grands magasins e exposições internacionais, mais do que reverterem os fundamentos do panóptico e do arquipélago carcerário estudado por Foucault em Vigiar e Punir (Foucault 1975), fariam parte de uma história paralela, justapondo-se-lhe e partilhando princípios comuns, como por exemplo o da visualidade – fazendo “do olhar uma porta de entrada da experiência moderna” (Kosminsky 2008, 222). Assim, as instituições

10 A opção por esta designação prende-se com o carácter epocal e socialmente construído da noção de “público”, como social e epocalmente construída é a noção de “povo”, que em si seria sempre dúplice, contendo um povo soberano e um povo da governação. Ver a este respeito: (Agamben 2010).

Prende-se igualmente com uma atenção ao carácter selectivo deste “ser dentro de portas” – portas essas que, assim, funcionariam como “fronteira”, interessando averiguar naquilo (e naqueles) que produzem. Ver a este respeito: (Mezzadra e Neilson 2013).

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pertencentes ao complexo exibicionário actuariam na transferência “de objectos e corpos de espaços privados e fechados para arenas públicas onde se constituem em veículos para a inscrição e divulgação de diferentes mensagens de poder para toda a sociedade” (ibidem).

Como sugere Bennett (1995), ao transformar a turba desordenada da populaça num conjunto de indivíduos bem localizados numa massa, o complexo exibicionário é também uma resposta à questão política da ordem, agora transformada num caso “de cultura”, tornando-se cada indivíduo responsável pelo seu comportamento entendido como reflexo do seu “nível cultural”. O que solicitou um treino e uma conquista, tanto dos corpos como das mentes, suscitando alterações profundas da experiência da corporalidade.