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Mas trazer corpos em acção, seja em espectáculos, performances ou em debates e colóquios, para o espaço do museu, um museu que é um centro de cultura, é, pode dizer-se, precisamente o que o Serviço ACARTE fez. O Centro de Arte Moderna era composto pelo Museu de Arte Moderna e pelo ACARTE, que operava para lá das galerias do Museu, para usarmos uma expressão de Madalena Perdigão, dependendo directamente do Conselho de Administração. Por ele se assegurava “a total independência entre a política de aquisição de obras de arte [levada a cabo pelo CAM] e a política de realização de actividades culturais [levada a cabo pelo ACARTE]” (Grande 2014, parêntesis rectos meus).

Mas embora coincidentes no edifício, entre o que é apresentado nas galerias do Museu de Arte Moderna, com direcção de Sommer Ribeiro, e o que é apresentado no resto do seu espaço, pelo Serviço ACARTE, com direcção de Madalena Perdigão, parece haver uma diferença considerável em termos de lugar de enunciação. Diferença esta que, em sentido estrito, corresponderia a uma diferença de meios de circulação.

Ou seja, se as galerias do museu remetem directamente para o meio das artes visuais e para as obras da recém construída colecção de Arte Moderna, o Serviço ACARTE poderia, à primeira vista, parecer remeter para o âmbito de acção daquilo que consideraríamos um “Serviço Educativo” tal como hoje o entendemos. Esta perspectiva, como se verá, não apenas é insuficiente para compreender a sua acção, como será inadequada, dado que o projecto deste Serviço não se resume à animação das exposições do Museu, prendendo-se sim com o ímpeto de fazer do CAM “num centro de cultura na verdadeira acepção do termo”, contribuindo “para o incremento da criação artística” e “para o progresso da educação pela arte”, tanto quanto para “a comunicação entre a obra de arte e o público” (Perdigão 1989), marcando uma nova fase da acção cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, agora em democracia.

O Serviço ACARTE, cuja criação se prende com a construção da zona sul do complexo Gulbenkian e com o repensar da acção da Fundação no pós 25 de Abril, deverá então ser compreendido a esta luz. É que, ainda nas palavras da sua fundadora “fazia falta no panorama cultural português um Serviço voltado para a cultura contemporânea e/ou para o tratamento moderno de temas intemporais, assim como um Centro de Educação pela Arte dedicado as crianças”. Não se trata, pois, de “animar” a colecção do museu apenas. O que, visto a partir de um olhar de hoje permitiria dizer que o ACARTE, operando a partir do

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Museu sem se esgotar na sua colecção (antes continuando o trabalho de apoio à criação artística que esteve subjacente à própria criação da colecção, que reúne, entre outras, uma série de obras de ex-bolseiros Gulbenkian, mas estendendo o ímpeto da sua acção em termos de géneros artísticos), estaria sob a alçada de uma “curadora” chamada Madalena Perdigão. O que permitiria colocar a análise do seu âmbito de acção mais directamente em paralelo com o momento presente67, esforço quiçá útil para se pensarem algumas das implicações da sua acção, mesmo que avant la lettre.

É claro que esta é uma análise possível, feita de modo a ressalvar continuidades com o momento presente, e pensando no modo como o ACARTE seria, no CAM, o que o tornaria um Centro Cultural e não apenas um Museu – mas outras análises seriam igualmente possíveis.

Numa análise de sentido oposto e procurando separações disciplinares estanques (a que, como se verá o ACARTE e a própria tradição epistemológica de entendimento da arte em que esta se enquadra é alheio) sublinhar-se-ia: por um lado, a descontinuidade de lugares de enunciação, apontando-se a diferença entre o Museu e um Serviço cujo âmbito de acção, se bem que situado no mesmo edifício, fica para lá do espaço estrito das galerias do museu; a não reivindicação do termo “curador” ou mesmo “programador” por parte de Perdigão; o modo como, por um lado, a programação do ACARTE continua a acção do Serviço de Música e o seu trabalho no âmbito da Educação pela Arte. Por outro, se prende com o facto de já existir uma orquestra, um coro e um museu de arte com o qual, como vimos, afirma não querer competir – abrindo-se, como foi referido, ao que falta.

Sob este ponto de vista, a sua acção seria absolutamente fruto de circunstâncias muito específicas, podendo dificilmente ser colocada em paralelo ou permitir que interrogações vindas da experiência do presente a alumiassem. A menos que – e esta é eventualmente a principal razão desta tentativa de conexão – se visse na especificidade do espaço e do tempo em que opera algo que a localizasse em relação. Como se o espaço particular do ACARTE

67 No MoMA, por exemplo, onde há cerca de sete departamentos curatoriais, existe um departamento dedicado a “Media and Performance Art”. Na sua missão pode ler-se: “The Department of Media and Performance Art collects, exhibits, and preserves time-based art. The department's focus includes moving images, film installations, video, performance, motion- and sound-based works, and other works that represent time or duration and are made for and presented in a gallery setting.” Ver a este respeito: http://www.moma.org/explore/collection/media (Abril 2014).

Curiosamente o seu âmbito de enunciação parece revolver completamente em torno do museu e da colecção do museu, exactamente o oposto do que encontramos no programa do Serviço ACARTE onde o museu serve como lugar de enunciação, sem nunca se confinar a ele próprio.

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com a sua abertura à falta – dentro do recém-inaugurado edifício do CAM, ao lado das galerias do museu de arte moderna, no Portugal dos Anos 80 –, e ainda que inadvertidamente, devido à história muito particular do país, habitasse a temporalidade mesma da era em que o referido performative turn desliza dos lugares da margem para o centro e – em massa – se dá uma passagem de uma economia da produção de objectos para uma economia onde o que está em causa é a produção de subjectividades passíveis de adquirir/consumir o que – de material ou imaterial – foi produzido.

Isto pô-la-ia em relação com outras histórias, permitindo alargar o âmbito e o alcance das questões que coloca. Uma análise deste género permitiria então posicionar a sua acção no seio de um museu que é parte integrante da metrópole, entendida agora como fábrica social, “lugar de mobilização cooperativa da força de trabalho, onde se encontram as matérias- primas, circulam as mercadorias e onde se pratica o consumo, alimentando os circuitos de uma economia global” 68, antevendo o papel do museu como epítome do paradigma da “cidade criativa” 69 numa época de generalização de um trabalho que tem tanto de material (nos gestos efectivos e afectivos de quem o realiza) como de produção dita imaterial (de ideias, serviços, conceitos). Uma análise deste género permitiria inscrever o papel do ACARTE entre 1984 e 1989 nas actuais discussões sobre o fabrico comum do social, procurando com isso contribuir para a referida criação de um vocabulário necessário.

68 Veja-se a este respeito o programa do ciclo UNIPOP Metrópole, Fábrica Social organizado pela UNIPOP no Teatro Maria Matos, UNIPOP, http://u-ni-pop.blogspot.pt/2009/07/metropole-fabrica-social.html, Lisboa: 2009. (14 Abril 2014).

69 Veja-se a este respeito Hito Steyerl em “Is the Museum a Factory?”: “The typical setup of the museum-as- factory looks like this. Before: an industrial workplace. Now: people spending their leisure time in front of TV monitors. Before: people working in these factories. Now: people working at home in front of computer monitors. Andy Warhol’s Factory served as model for the new museum in its productive turn towards being a “social factory.”7 By now, descriptions of the social factory abound.8 It exceeds its traditional boundaries and spills over into almost everything else. It pervades bedrooms and dreams alike, as well as perception, affection, and attention. It transforms everything it touches into culture, if not art. It is an a-factory, which produces affect as effect. It integrates intimacy, eccentricity, and other formally unofficial forms of creation. Private and public spheres get entangled in a blurred zone of hyper-production. In the museum-as-factory, something continues to be produced. Installation, planning, carpentry, viewing, discussing, maintenance, betting on rising values, and networking alternate in cycles. An art space is a factory, which is simultaneously a supermarket—a casino and a place of worship whose reproductive work is performed by cleaning ladies and cellphone-video bloggers alike. In this economy, even spectators are transformed into workers. As Jonathan Beller argues, cinema and its derivatives (television, Internet, and so on) are factories, in which spectators work. Now, ‘to look is to labor’.” Hito Steyerl, “Is the Museum a Factory?” e-flux jornal #7 June-August 2009, http://www.e-flux.com/journal/is- a-museum-a-factory (10/4/14).

119 2.1.9 “Is the Living Body the Last Thing Left Alive?”

E se é verdade que o actual interesse dos museus pela performance parece relacionar- se com (e ou reflectir as) actuais transformações na esfera do trabalho em direcção ao trabalho imaterial, de que a figura por excelência seria o “virtuoso” ou o performer – aquele cujo trabalho para acontecer necessita de um público e se completa numa performance virtuosa (Virno 2004) –, é igualmente verdade que a presença do corpo em acção ao vivo no espaço do museu lhe parece oferecer alguma resistência. Como se tenta dar conta na conferência, “Is the Living Body the Last Thing Left Alive? The new performance turn, its histories and its institutions”, organizada entre 3 e 5 de Abril de 2014 na galeria Para-Site em Hong-Kong.

No programa desta conferência, onde estas interligações tentam ser justamente tematizadas (não para averiguar uma suposta obsolescência do corpo, mas pelo contrário, para atestar o seu reduto enquanto potência de vida), pode então ler-se que, se “nos últimos vinte anos se tem visto a dança contemporânea emergir como um novo campo de discurso e pensamento”, tendo nele sido “produzidas algumas das mais poderosas obras dos nossos tempos, reflectindo as principais direcções intelectuais e as mudanças a nível mundial ao longo destas décadas”, a “escrita com e sobre este campo ainda est[aria] no início”. Mas apenas recentemente a dança e a performance teriam entrado no âmbito institucional da arte contemporânea, estando cada vez mais museus, centros de arte e bienais nelas interessados e trabalhando e cada vez mais artistas com e em torno destas disciplinas (Costinas e Janevski 2014).

Dividida em três partes, ou capítulos, “Is the Living Body The Last Thing Left Alive?” versa, em primeiro lugar, sobre esta viragem performativa que mais e mais (e de inusitadas maneiras) tem vindo a trazer a dança ao museu focando-se nas “condições económicas e políticas que subjazem a esta viragem, encarando o duplo significado de “performance”, enquanto elemento vivo nas artes, e referência à produtividade económica. Apontando, ao fazê-lo, para os modos como estas práticas parecem, por um lado, aparentemente resistir à comercialização que pela mesma altura capturou o mundo da arte (um mundo assente em “objectos” de arte) e, por outro, constituírem os produtos perfeitos para a experiência imaterial da economia, onde a própria memória se transformou numa das suas principais mercadorias” (ibidem).

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O segundo capítulo incide “sobre a proliferação do corpo ao vivo em espaços expositivos e na presença da dança nos programas dos museus” inquirindo “a performance como um novo instrumento de curadoria e de organização do sentido, interrogando-se sobre a possibilidade de uma crise na curadoria, crise essa que t[eria] vindo a ser convenientemente suspensa pela energia da performance. Abordando especificamente o museu, levantaria a questão da aquisição, tendo em vista as futuras gerações e dos modos de exposição. Como expor performance?” (ibidem).

Sendo a sua terceira e última parte composta pela apresentação de estudos de caso relativos a diferentes histórias da performance arte nas artes visuais, em diferentes geografias ao longo do século XX, nela procurou-se entender “como e por que razão estas histórias estão a ser recuperadas, traduzidas e integradas ou, pelo contrário, excluídas das novas realidades institucionais da arte contemporânea. Que histórias se privilegiam e que histórias se esquecem? Será que este novo paradigma necessita destas histórias? Constituirão estas histórias precedentes legítimos para este novo paradigma? Ou será que este performance turn é sobretudo um produto dos nossos tempos e as suas raízes na performance art das vanguardas tardias é demasiado vaga?” (ibidem)

Porque, dizem-nos os seus organizadores, “há, porém, uma história da performance art como categoria das artes visuais que tem vindo a ser informalmente escrita ao longo de um período alargado de tempo e que é composta por múltiplas fragmentárias histórias, geograficamente dispersas, muitas delas correspondendo a pontos de viragem nos respectivos contextos históricos, seja por volta dos Anos 50 no Japão, nos Anos 60 e 70 na América Latina e na Europa de Leste, nos Anos 80 na China ou nos Anos 90 em certas partes do Sudoeste Asiático e na Europa do Leste. Procura[ndo]-se com esta conferência olhar para estas histórias como estando interligadas e nisso apontar e estender as fronteiras do possível no paradigma artístico e performativo hoje em dia” (ibidem, parêntesis rectos meus).

A atenção ao que poderia ser uma História da Arte Global que procurasse não narrar a sucessiva conformidade das periferias ao que seriam os supostos centros estáveis de onde emanariam os cânones, parece desvelar geografias e cronologias descentradas, descoincidentes, sobrepostas: que um olhar para o caso específico do ACARTE, vendo-o como possível parte integrante desta história e atendendo à particularidade de a sua acção corroboraria, podendo talvez ajudar a construir em linhas mais finas e atendendo às especificidades do caso português.

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Como se, sob este ponto de vista, com o seu ímpeto de fazer do CAM um Centro de Cultura, e quiçá até para não competir nem com o Museu em si (cuja programação estava muito menos aberta aos jovens artistas com as suas práticas porventura interdisciplinares), nem com o Serviço de Música (que a seu cargo tinha o Ballet, o Coro e a Orquestra), nem com o Serviço de Belas Artes (com o seu pelouro do Teatro), este Serviço tivesse acabado por acolher na sua programação a viragem para o performativo, o discursivo e o relacional que apenas muito mais tarde haveria de entrar pela porta principal do museu. Sendo que ao fazê-lo se haveria de encontrar com o então emergente circuito das artes performativas (e da dança contemporânea europeia, em particular) onde a figura do programador emergia.