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Portugal: de António Ferro à Fundação Calouste Gulbenkian

Ainda com Nuno Grande, agora para o caso português e com o intuito de caracterizar a génese da Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, remonte-se brevemente às décadas de trinta e quarenta para entender como “cultura política”, “política urbana” e “política cultural” se inter-relacionam.

Embora o Estado Novo não se tenha estabelecido como um Estado Providência à semelhança dos anteriormente descritos, evidencia, porém, uma acção paternalista exercida

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por meio de uma forte máquina burocrática “reguladora” dos desígnios sociais, económicos, políticos, etc. É no seio desta acção paternalista que a “política do espírito”, encetada na década de 1930 e que se estende, pelo menos, pelas duas décadas seguintes, deverá ser apreendida. Há, porém, de ter em conta a matriz cultural do salazarismo – anticomunista, anti- liberal, anti-individualista, assente sobre a glorificação do passado imperial da nação e sobre as certezas de Deus, Pátria e Família. Assim, é no cruzamento da influência das tendências e das figuras de Salazar, Duarte Pacheco e António Ferro que se deverá procurar entrever a política cultural destes primeiros anos do regime, atentando-se para tal aos seus programas de fomento das artes, da arquitectura e do urbanismo que se concretizarão na criação de novos equipamentos e acontecimentos culturais.

Salazar, qual “pai austero e rigoroso”, ter-se-ia então, na década de 1930, constituído enquanto “o principal instrumento da retórica nacionalista”, exaltada em processos auto- celebrativos “modernos”: exposições comemorativas, filmes, unificando a nação no continente e além-mar sob a sua pessoa, ao mesmo tempo que novas infra-estruturas e equipamentos estatais iam colonizando o espaço (ibidem, 70). A organização do território deveria, como na Itália de Mussolini ou nas emergentes Espanha Franquista e Alemanha Nazi, mostrar o poder do Estado e do estadista, ainda que a matriz salazarista identificasse a vocação do país como rural.

Assim, durante toda a década de 1930 são feitas sistemáticas intervenções arquitectónicas no território por encomenda do Estado. Nestas, aquelas em que a vocação urbana se torna mais explícita serão as levadas a cabo pelos programas de obras públicas, monumentalização arquitectónica e reabilitação patrimonial de Duarte Pacheco nas suas passagens pelo Governo (1932-36 e 1938-43) e Presidência da Câmara de Lisboa (1938-43). Elas serviriam, então, como forma de afirmar o peso e a importância simbólica do Estado Novo, muito embora a imagem que este se esforçava por edificar através do modelo da cidade-jardim, e da avenida com moradias, sua variante urbana, fosse a de um “país-aldeia”, modelo que melhor serviria os gostos da burguesia emergente, sustentáculo do regime (Duarte Pacheco apud Portas, 70).

Das três figuras referidas anteriormente, seria António Ferro, jornalista do Diário de Notícias, quem seria convidado por Salazar, em 1933, a chefiar o Secretariado de Propaganda Nacional, responsável pela promoção cultural do Estado Novo, e a quem caberia a tarefa de “promover o encontro entre um país anacrónico e alguns dos novos ventos da cultura modernista” (ibidem).

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Assim, para Nuno Grande, na senda de Rui Mário Gonçalves e ecoando um pouco as palavras de Trindade/Rebelo, o fascismo português, por nunca se ter tido de confrontar com uma modernidade artística bem enraizada na sociedade, ter-se-ia “aproveitado do anacronismo do gosto dominante”, deixando tudo na mesma, dando a António Ferro “a oportunidade de um simulacro: uma manobra de diversão política.” (ibidem,71)

José-Augusto França72 descreve os limites deste modernismo, tanto a nível estético (contido, equilibrado, “resolvendo uma revolta que não deveria levar nunca à loucura das formas”, no dizer de Salazar), como em relação ao apoio estatal recebido (dado que “o Estado não podia ser Mecenas”, no dizer também do Presidente do Conselho). Deste modo, um pouco à semelhança do que Duarte Pacheco tentara na arquitectura, também António Ferro procura ao longo da década de 1930 “actualizar” o país para a Arte Moderna “simulando” (para resgatar o termo que Nuno Grande resgata de Rui Mário Gonçalves) um cosmopolitismo moderno, dentro, é claro, do ‘indispensável e sofrido equilíbrio’ mencionado por José-Augusto França (ibidem, 71).

A actividade do Secretariado de Propaganda Nacional abarcou a criação de subsídios, concursos e prémios estatais, como o prémio Amadeu de Souza Cardoso – sem, porém, que a criação deste prémio contemplasse igualmente a reunião ou divulgação pública do seu espólio; promoveu a arte popular – unindo turismo e a construção de uma nação imaginada por meio de uma etnografia de construção da nação, através de iniciativas como a criação das Marchas de Lisboa ou do Concurso da Aldeia mais portuguesa de Portugal –, bem como a Arte Erudita, através de iniciativas como os Salões de Arte Moderna no Palácio Foz.

À medida que a década de 1940 se aproximava, a arquitectura do regime foi evoluindo mais e mais em direcção a um monumentalismo retórico de figuração estilizada em que os motivos se relacionavam com a glorificação do poder imperial do país, de que a Exposição do Mundo Português será um dos exemplos mais emblemáticos. Por estes anos, entre a Guerra

72 “... o SPN só se ocupava de “modernos”: “Não consagramos: estimulamos”; “não nos compete dar o sinal de chegada, mas o da partida!...” A esses “modernos” uma só condição era exigida: a dos limites dum indispensável equilíbrio, “conseguido”, “sofrido” – mas resolvendo uma revolta que não deverá nunca levar à “loucura” das formas (...) Aí se adivinham também os limites de uma atitude proteccionista do Estado “que não podia ser Mecenas”, nem devia “transformar os artistas em funcionários públicos” – que isso seria “proibi-los de criar”. Assim afirmaria Oliveira Salazar, em 38, numa nova entrevista concedida a António Ferro, e na qual se deitava alguma água na fervura. Os princípios estéticos da sua acção seriam, porém, comentados aprovativamente, já que “ a ordem foi sempre o verdadeiro clima da beleza” – e porque era preciso evitar “os grandes males” da inquietação doentia, desorientação calamitosa, pendor anarquizante” de que “enfermava” a arte moderna. Por isso também Ferro não via “incompatibilidade entre um regime de Autoridade e a arte moderna”. (França apud Grande 2009, 185).

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Civil de Espanha e a II Grande Guerra, o Estado Novo insistirá no proteccionismo, renunciando a participar em iniciativas culturais internacionalistas conotadas com a difusão do Comunismo na Europa. O exemplo mais acabado desta atitude de crença na auto- suficiência de um presente imperial e colonial baseado num passado mistificado é, sem dúvida, a exposição do Mundo Português.73 Exposição na qual muitos intelectuais alinham ao colocarem-se ao serviço da “vanguarda da restauração” e onde se encerraria definitivamente o “ciclo de experimentação estilística” característico, ainda que timidamente, dos anos anteriores e se “estabiliza definitivamente o vocabulário imposto à obra pública” (ibidem, 74). E para Nuno Grande, ao basear-se estruturalmente sobretudo em eventos efémeros, a política do espírito teria e tido então pouco impacto estrutural na modernização cultural, cosmopolita, da sociedade portuguesa.

Finda a Guerra, se por um lado o Portugal do Pós II Guerra Mundial é um país que não participa nas negociações diplomáticas públicas e que, por desconfiança de Salazar face à civilização Americana, rejeita o primeiro Plano Marshall (1947-48), apenas aceitando o segundo (1949-50), por outro lado a posição estratégica da Base das Lages no Açores interessa à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), celebrado em 1948, à qual Portugal adere em 1949.

Em 1949-50, Portugal integrará o primeiro núcleo de fundadores da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), embrião de uma futura Comunidade Económica Europeia, com o intuito de aceitar o segundo plano Marshall. E em 1955, o país adere igualmente à ONU, depois de a sua candidatura ter sido vetada em 1946. Ou seja, apesar de todos os conflitos públicos e males-estares diplomáticos devidos, sobretudo, ao colonialismo e, mais tarde à guerra colonial – e menos ao autoritarismo do regime – dificilmente se poderá dizer que o Estado Novo está marginalizado. Pelo contrário, a sua sobrevivência por 3 décadas após o fim da II Guerra Mundial parece apenas compreensível à luz da sua integração no contexto internacional da guerra fria, em que fazia claramente parte do bloco anti-comunista.

No plano interno, o Pós II Guerra Mundial e o fim das ditaduras das décadas de 1920 e 1930 traz consigo uma vaga de esperança e, com ela, uma politização dos meios culturais. Em 1946 o MUD (Movimento de Unidade Democrática), força da oposição fundada no imediato Pós II Guerra Mundial que reuniu em seu torno uma série de intelectuais e de

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opositores do regime, criou as Exposições Gerais de Artes Plásticas na Sociedade Nacional de Belas Artes que, segundo Rui Mário Gonçalves, passaram a ser “o salão da oposição política” (ibidem, 76).

De acordo com João Pinharanda (apud Grande 2009, 77) haveria então nesta altura “três caminhos da arte portuguesa” e todos eles se caracterizariam por se encontrarem em oposição ao regime, o que é emblemático das mudanças na sociedade portuguesa, nomeadamente nas suas elites, de que se dará conta adiante, com a formação do “povo pop” (Bebiano 2010). São elas: o Neo-realismo, nome dado em Portugal ao um certo tipo de realismo socialista sobretudo expresso na pintura (Júlio Pomar, entre outros) e na literatura (Alves Redol, Manuel da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, entre outros) muitas vezes ligado ao PCP; o Surrealismo, rompendo com o realismo social e com as suas limitações temáticas e formais (Cesariny, António Pedro, António Dacosta); e, por último, o Abstraccionismo que se anuncia a partir do Porto (Fernando Lanhas) – nas Exposições do Grupo de Independentes (ibidem, 77).

Em 1944 o SNP muda o nome para Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), dando início a uma retórica que se desenha sobre o “lúdico” para o povo, ao mesmo tempo em que, através da censura prévia, António Ferro controla o que é exibido, feito e publicado ao longo da década. Também depois de 1945 se inicia uma grande acção de propaganda feita por meio de folhetos e cartazes enaltecendo iniciativas do Estado, como a criação da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, a difusão do ensino primário, a criação de centros de investigação científica, e a criação de orquestras e de bailados portugueses de que, segundo a retórica dos panfletos, muito aproveitaram os artistas, alguns dos quais agora “inimigos do Estado” (ibidem).

Com o fim da Guerra e a derrota dos fascismos na Europa, a posição de António Ferro – com a sua instrumentalização explícita da arte ao serviço da glorificação do regime, uma instrumentalização que cada vez mais parece encontrar apoio apenas na sua massificação e popularização, perdendo apoio nos círculos intelectuais e artísticos, onde a ideia da liberdade de expressão como oposta à instrumentalização da arte também vinha ganhando os seus adeptos – cedo o faz tornar-se uma figura complicada para o regime que, em 1950, o afasta do SNI.

Ironicamente é quando no resto da Europa as políticas culturais se reforçam, como se tem vindo a ver, que em Portugal elas se parecem ir cada vez mais apagando, refugiando-se, a

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partir de então, mais e mais na censura e em práticas populistas, agora massificadas. Entre as quais um certo ordenamento do território que tende a enquadrar o emergente turismo, procurando nesta massificação populista como que a “justificação” da sua existência. Será neste contexto que a Fundação Calouste Gulbenkian iniciará a sua acção – vindo, como se pode entrever, de encontro a uma série de mudanças na sociedade portuguesa, nomeadamente nas suas elites, a tal formação do referido “povo pop” que no terceiro capítulo desta Segunda Parte, quando se atentar à biografia de Madalena Perdigão, se visitará mais em pormenor.

Assim, de 1950 a 1974, toda a gente estava de acordo que “a política cultural do governo era má” o que terá desleixado “a necessidade de pensar o que deveria ser uma política cultural correcta” (Gonçalves apud Grande 2009, 77). O governo, cuja representação internacional estava agora assegurada pela sua pertença à OTAN, à ONU e à OECE precisaria então de se esforçar menos na criação de uma imagem do país para mostrar para fora, e a única tentativa de estruturar uma política cultural pública em Portugal durante o Estado Novo não seria já absolutamente necessária. Ainda assim – e ainda que de outro modo, até porque em 1961 haveria de eclodir a Guerra Colonial – esforços haverá nesse sentido que se poderão dizer bastante consequentes, como o Fado, alguns fenómenos de música popular ou o assim chamado “nacional-cançonetismo”.