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Estar presente no campo e disponível no “Face”: os desafios da etnografia em

3. ETNOGRAFIA: UMA ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

3.2 Estar presente no campo e disponível no “Face”: os desafios da etnografia em

Realizar uma pesquisa etnográfica nunca foi considerado algo fácil, em função de seu longo tempo de dedicação ao campo, da descrição densa (GEERTZ, 2008) dos dados, do envolvimento do pesquisador com o campo e os pesquisados, entre outros. Travancas (2011) lembra que uma pesquisa exige rigor, disciplina, disposição e criatividade, mas que uma pesquisa etnográfica exige tudo isso e mais um pouco. No início do século 21, quando a internet passou a ser um fenômeno de massa (HINE, 2015, p.6), novas maneiras de se fazer etnografia precisaram ser pensadas. Com o intuito de refletir sobre essa nova maneira de se fazer etnografia no ambiente digital, Hine (2000) escreve seu livro sobre etnografia virtual. Porém como a internet e seus usos se transformaram e se modificaram ao longo dos anos, em 2015 Hine (2015) propôs que repensássemos a metodologia como etnografia para a internet, e não mais etnografia virtual.

O novo livro de Hine (2015) foca em uma etnografia para a internet, e não da internet ou virtual, porque a autora entende que a internet não pode ser compreendida como uma entidade completa, fechada, que possa ser estudada em sua totalidade (HINE, 2015, P.5). A internet é uma internet diferente para cada usuário. As condições de acesso são distintas, os usos são diferentes; as apropriações que fazemos são adaptadas às nossas vidas e ao contexto em que vivemos. Hine (2015) entende que a etnografia deve ser uma abordagem adaptativa, que pode variar de acordo com as circunstâncias que a internet contemporânea proporciona (HINE, 2015, P.6). Além disso, a autora compreende que a internet de 2000, quando pensava em uma etnografia virtual, era outra internet. A internet hoje, segundo Hine (2015), é incorporada, corporificada e cotidiana. Nós não mais pensamos em dois mundos e distinguimos o mundo real de um mundo virtual, não ligamos o computador para entrar em uma realidade virtual e nos desconectamos do mundo off-line. Nosso uso da internet hoje, principalmente após as mídias sociais, é integrado à nossa vida cotidiana (MILLER ET AL., 2016). É evidente que o online é tão real quanto o off-line e que nossos perfis em mídias sociais dizem respeito a nossas vidas como um todo.

Nesse sentido, estando o online integrado ao off-line, como pensar em realizar uma etnografia com um campo presencial sem realizar, ao mesmo tempo,

uma etnografia para a internet? Deparei-me com essa situação logo nos primeiros dias de campo, porque ao conhecer cada participante da pesquisa, a primeira coisa que fazíamos após as primeiras conversas era nos adicionarmos no Facebook, no WhatsApp, no Instagram, e em qualquer outra mídia social na qual elas tivessem um perfil. É claro que talvez algumas pesquisas, dependendo da temática, não exijam pensar na internet como um campo de pesquisa, mas como estudo o consumo de smartphones, estar presente na internet e etnografar também nas mídias sociais se mostrou uma necessidade.

A etnografia, de acordo com Hine, é “extremamente necessária para a compreensão da Internet em toda a sua profundidade e detalhe” (HINE, 2015, p.5, tradução nossa). Precisamos dela para nos ajudar a entender o que está acontecendo e para entender a natureza das mudanças que estão ocorrendo na internet e que parecem fugir da compreensão etnográfica (HINE, 2015). Uma das críticas em torno da realização de uma etnografia para a internet é sobre as limitações de participação no campo online. Porém Hine (2015) entende que a etnografia e os etnógrafos têm limitações em qualquer lugar, tanto off-line quanto online. Mesmo que uma etnografia seja realizada em uma aldeia, de modo convencional baseado em interações face a face por um período longo de tempo, o etnógrafo acaba se aproximando e observando mais um grupo ou uma família (HINE, 2015), e não todas as pessoas e acontecimentos que ali ocorrem.

Fazer etnografia, de acordo com Miller et al. (2016), é mais do que observar a distância, é se envolver com as pessoas, e na internet o fazer etnográfico não pode ser diferente. Não basta ser só “amigo” de Facebook de seus informantes, é preciso trocar likes, comentar, enviar mensagens, manter uma relação, assim como se estabelece uma relação no campo tradicional. No campo presencial nos envolvemos com as situações, ajudamos a cuidar dos filhos das participantes da pesquisa, participamos de eventos, chás de bebê, tomamos café e dividimos histórias; na internet, de maneira natural, acabamos nos envolvendo também.

Figura 2 – Foto do chá de bebê de Nayara compartilhada em seu Facebook no dia 13/11/2016

Fonte: Reprodução do Facebook da pesquisada

Eu, como pesquisadora, além de realizar a pesquisa de campo tradicional, visitando as participantes da pesquisa, procurei analisar suas mídias sociais e manter uma relação com elas no Facebook. Na maioria das vezes essa relação se deu através de troca de likes, comentários e conversas com as participantes da pesquisa através das mensagens privadas. Porém alguns fatos que ocorreram ao longo de um ano de campo, em decorrência dessa aproximação e relação online, foram inesperados.

Uma das participantes mais novas da pesquisa, vez que outra, me enviava mensagens de madrugada, tanto via Facebook quanto no WhatsApp. Outras vezes ela me enviava Snapchats, ou respondia aos Snaps que eu publicava em minha história. Até que em uma manhã fui surpreendida por esta mesma participante da pesquisa. Ela havia me enviado de madrugada, por volta da uma da manhã, três

Snapchats. O primeiro era ela deitada nua tapando os seios, escrito “OIE”. O Snap

seguinte, enviado segundos depois dizia “pessoa errada”, como se ela não quisesse ter enviado para mim. Segundos depois ela enviou o terceiro Snap, relatando que estava bêbada. Me preocupei com o que recebi e fiquei por bastante tempo pensando se aquelas mensagens haviam sido enviadas mesmo sem querer ou se eram com segundas intenções, mas respondi os Snaps apenas com uma risada e

dizendo que estava dormindo. Situações como essa, quando se faz etnografia e se estabelece uma relação com os participantes da pesquisa, são possíveis de acontecer.

Compreendi, observando e vivendo essas situações no campo, que como estou estudando como as participantes da minha pesquisa usam os seus smartphones, obviamente preciso segui-las em suas mídias sociais e em todas as plataformas que eu puder, e elas consequentemente também me seguem, podem visualizar minhas publicações e me enviar mensagens através dos mesmos canais. Tenho seus números de telefone salvos no celular e elas têm o meu; tenho elas no WhatsApp, no Instagram, no Snapchat, no Facebook. Assim como as sigo e visualizo suas vidas através do smartphone, elas fazem o mesmo comigo. Percebi que muitas vezes, para as informantes, não existe uma separação do eu pesquisadora e do eu mulher, amiga, que está ali online nos seus contatos.

Outro fato que destaco nesta seção do capítulo ocorreu com a participante mais velha da pesquisa, Amélia, de 45 anos. Em uma madrugada do mês de outubro, por volta da uma da manhã, abri o Facebook em meu computador e rodando a linha do tempo me deparei com uma publicação de Amélia que me deixou preocupada. Ela escrevera que se sentia triste e pedia ajuda para Deus. No mesmo momento, escrevi para ela uma mensagem privada através do Facebook, perguntando como ela estava e dizendo que fiquei preocupada. Não se envolver com os participantes em uma pesquisa etnográfica, de uma forma ou de outra, é praticamente impossível. Por mais que tentemos manter uma postura de pesquisador, o lado humano e a preocupação com o outro fala mais alto em alguns momentos. Porém para a minha surpresa, minutos depois, percebo outra postagem pública na linha do tempo de Amélia. A participante da pesquisa começou a responder a minha mensagem privada de maneira pública, expondo os seus problemas que eram para ser compartilhados apenas comigo para todos os seus amigos da mídia social. Decido responder sua mensagem em modo público ao invés de deixá-la falando comigo e sem respostas em sua timeline, pois o que ocasionou o engano de Amélia foi a falta de conhecimento técnico da tecnologia.

Figura 3 – Desabafo de Amélia no Facebook no dia 30/10/2016

Fonte: Reprodução do Facebook da pesquisada

Minha vontade era de dizer a ela que havia escrito para todos verem, para ela consertar se quisesse, apagar a mensagem, mas pensei que ela poderia não saber como executar essa ação e que eu poderia confundir e preocupar ainda mais a pesquisada. Minutos depois Amélia me envia uma mensagem em modo privado. Perguntei a ela o que tinha acontecido e ela respondeu que nem sabia o que tinha feito, que acabou se confundindo e escrevendo no lugar errado. A mensagem em modo público só foi apagada no dia seguinte.

Estar no campo, no caso da presente pesquisa, é estar disponível no “Face” para conversar também, mesmo que seja de madrugada; não é possível ignorar as pesquisadas e separar a nossa relação entre online e off-line, disponível em um lugar e indisponível em outro. Como Hine (2015) cita, não existe uma solução única para o fazer etnográfico para a internet, porque a internet varia muito e cada campo de pesquisa também.