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Em 1973, nova lei sobre os direitos dos povos indígenas foi editada, a Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do Índio, elaborada em plena ditadura militar. Ela marca um retrocesso do ponto de vista teórico em relação à tutela, porque recria a idéia da emancipação e possibilita a devolução das terras indígenas ao Estado.

O Estatuto do Índio, em seu artigo 3º, dispõe sobre as definições de “índio” e “comunidade indígena”:

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Segundo Souza Filho, estes atestados permitiam que os Estados-membros concedessem títulos de domínio sobre terras devolutas. Evidentemente que estes títulos eram dados sem qualquer verificação prévia de existência de índios e muito menos de ocupação efetiva dos novos titulares, via de regra, integrantes das oligarquias locais. (SOUZA FILHO, op.cit, p.89)

Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir

discriminadas:

I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é intensificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;

II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados.

Há aqui, conforme a antropóloga Manuela Carneiro Cunha (1987, p.60), uma confusão da lei a não distinguir os índios dos silvícolas, como se todos os índios fossem habitantes da selva, desconsiderando aqueles que moram nas cidades. Além disso, a referência às características culturais, no entender da mesma estudiosa, também é considerada um erro, pois os traços culturais podem variar com o tempo, e isso não afeta a identidade do grupo indígena, uma vez que somente sociedades mortas são imutáveis.

Ressalta-se também que os critérios adotados para definir quem é ou não índio e quem pertence ou não à comunidade indígena não podem ser admitidos nesses parâmetros. Como se analisará em um momento posterior, comunidades indígenas são aquelas que se consideram indígenas em virtude de uma consciência histórica.

Da mesma forma, não se pode dizer quem é índio ou não, porque somente ele pode se definir assim, quando se considera pertencente a uma dessas comunidades indígenas e quando reconhecido por essa. (BARRETO, 2009, p.37)

Mais adiante, no artigo 4º, há a classificação dos índios em “isolados”, “em vias de integração” e “integrados”:

Art.4º Os índios são considerados:

I - Isolados- Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;

II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão vez mais para o próprio sustento;

III - Integrados- Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições

Essa classificação permite a conceituação de estágios de evolução cultural, pelos quais os índios passariam até tornarem-se totalmente integrados à sociedade, chegando ao

estágio mais evoluído e, portanto, tornando-se um ser também evoluído21.

Nessa perspectiva, os índios seriam seres inferiores que necessitavam e deviam ser integrados à comunhão nacional.

O Estatuto do Índio regulou, ainda, outras espécies de terras indígenas, constituídas por meio de áreas reservadas pela União, que se destinavam aos índios de acordo com o seu grau de integração, nas seguintes modalidades: reserva indígena, parque indígena, colônia agrícola indígena e território federal indígena22.

Essas concepções que a lei traz em seu bojo não podem ser mais admitidas, uma vez que colidem com as determinações estabelecidas na Constituição Federal de 1988, pois essa perspectiva assimilacionista, através de um processo de aculturação, é rechaçada pelo texto constitucional que reconhece explicitamente “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.”

Por fim, cabe ressaltar que o Estatuto prevê a demarcação das terras indígenas como também estabelece um prazo para que seja efetivada.

21 Convencionou-se denominar evolucionismo unilinear a corrente de pensamento que dominou a antropologia na primeira metade do século XIX. Nessa corrente era predominante a ideia de que a cultura desenvolve-se de maneira mais ou menos uniforme, sendo aceitável pressupor que cada sociedade percorresse as mesmas etapas evolutivas. Sob esse enfoque, os índios são seres “primitivos” e “em processo de evolução” para a condição de “civilizado” ou, com os termos empregados pela legislação, a caminho da integração à “comunhão nacional”. Desde que integrado perde o sistema especial de proteção que os envolviam (BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p.35-36).

22 Art.27 Reserva Indígena é uma área destinada a servir de habitat a grupos indígenas, com os meios suficientes à sua subsistência.

Art.28 Parque Indígena é a área contida em terra para posse dos índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região

Art.29 Colônia agrícola é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos acumuladas e membros da comunidade nacional.

Art.30 Território federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios.

Art.19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

Art.65. O Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas.

Em 1991 foram encaminhados ao Congresso Nacional três projetos de lei23 que

visavam substituir a lei 6.001/73, a fim de constituir um novo estatuto condizente com a Constituição de 1988. Simultaneamente, alguns parlamentares passaram a reivindicar a edição de uma lei que regulasse a pesquisa e a exploração mineral em terras indígenas. Nenhum dos três projetos foi aprovado. Assim, o Deputado Luciano Pizzato, relator designado pelo Congresso, elaborou um texto, formado pela junção dos projetos apresentados, além de dispor sobre a atividade de mineração, que também não correspondeu às expectativas de nenhuma das partes. Como solução provisória, ficou acordado que seriam realizadas audiências públicas em diferentes regiões do país, a fim de que os indígenas e os diversos organismos locais fossem ouvidos, para que fossem formuladas as correções julgadas necessárias no texto.

Atualmente, a lei 6.001/73 ainda não foi substituída, sendo, portanto, vigente, mas é de uma clareza radiante, como já exposto aqui, que as concepções trazidas por essa não podem ser mais adotadas. O Estatuto do Índio de 1973 deve ser lido com grandes ressalvas, atentando-se ao fato de que muitas de suas normas não foram recepcionadas ou foram revogadas, nenhuma expressamente, e outras produzem efeitos, mas de acordo com uma interpretação sistemática de outros instrumentos normativos.

23 Dois deles, encaminhados respectivamente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e por um conjunto de entidades (entre elas a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), que depois se transformaria em Instituto Socioambiental (ISA), procuravam efetivamente estabelecer normas administrativas em consonância com os novos princípios constitucionais. O terceiro projeto foi enviado pela Funai e tinha um teor inverso, sendo apenas uma re-edição do Estatuto do Índio de 1973, com algumas modificações e acréscimos, mas sem alterar a sua perspectiva tutelar. (OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação in A Constituição de 1988 na vida Brasileira. São Paulo, Anpocs, 2008, p.254-255).