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Estatuto da Criança e do Adolescente: interpretação sistemática

O Direito atualmente é descrito por grande parte dos juristas como um sistema, e como tal deve se caracterizar por uma certa harmonia, de forma que os seus diversos ramos não se mostrem demasiadamente destoantes. Para Dimoulis,

A interpretação sistemática objetiva integrar e harmonizar as normas jurídicas considerando-as como um conjunto. Para melhor entender o mandamento legislativo devemos analisar a norma dentro do contexto da regulamentação legal, levando em consideração as relações lógicas e hierárquicas entre as várias normas. Com efeito, não é possível entender a maioria das disposições jurídicas sem analisar o direito como um todo.

A lei 8.069 de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, visa regular diversas relações que envolvam os menores, contemplando desde uma parte de direito de família até uma parte criminal.

O artigo 2º da referida lei, ao discorrer sobre as disposições gerais, explicita quem são os sujeitos que se propõe alcançar:

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

Desta feita, pode-se dizer que já na década de 1990 o entendimento que se tinha era de que a partir dos 12 anos o indivíduo passa da infância para a adolescência, sendo a ele dispensado, portanto, um tratamento legal diferenciado.

Vale registrar que a idade de 12 era um marco até mesmo para a parte infracional do Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma que a partir desta idade as medidas tomadas eram diferenciadas, como dispõe a lei:

Título III

Da Prática de Ato Infracional Capítulo I

Disposições Gerais

Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato.

Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.

A interpretação que se faz, portanto, é que a partir dos 12 anos o adolescente está sujeito a medidas socioeducativas que podem chegar até à internação em estabelecimento

educacional, conforme o artigo 112, inciso VII do referido estatuto. A conclusão tomada a partir dessa disposição é que o legislador entendia, já àquela época, que um adolescente de 12 é plenamente capaz de compreender o ilícito e consentir com a prática de um delito.

Não há coerência do legislador ao presumir a capacidade de um adolescente de 12 anos quanto à consciência da prática de um ato infracional, sujeitando-o à medidas socioeducativas que configuram punição e ao mesmo entender que um adolescente de 12 anos não tem capacidade o suficiente para entender o que é um relacionamento sexual e praticá-lo, presumindo ser o mesmo adolescente que sujeita à punição um vulnerável em termos sexuais.

Roig entende no mesmo sentido (2011, p.143)

[...] Em recente decisão do STJ, foi suscitada pelo Min. Celso Limongi (desembargador convocado do TJSP) uma acertada revisão da antiga noção da presunção de violência, afastando-a em relação a pessoas maiores de 12 anos. Segundo essa tese, para uma boa interpretação da lei, é necessário que se leve em conta todo o ordenamento jurídico do País. Nesse sentido, saber se o estupro se qualifica como crime pressupõem análise no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Conforme o art. 2ºdo Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. Assim, se o menor, a partir de 12 anos, pode sofrer tais medidas por ser considerado pelo legislador capaz de discernir a ilicitude de um ato infracional, não se concebe, nos dias atuais, quando os meios de comunicação em massa adentram todos os locais, em especial os lares, com matérias alusivas ao sexo, que o menor de 12 a 14 anos não tenha capacidade de consentir validamente um ato sexual.

Nesta esteira, Martinelli (2012, p. 2) afirma,

O ECA é lei específica que faz a clara distinção entre criança (jovem até os 12 anos) adolescente (jovem entre 12 e 18 anos). Entre 12 e 14 anos há uma zona cinzenta, que permite a aplicação de medida socioeducativa e impede a liberdade sexual. Quando o menor tiver menos de 12 anos não há duvidas: ele é criança e, portanto, não há maturidade para a vida sexual, e isso legitima a intervenção penal do Estado. Entretanto, o menor entre 12 e 14 anos já é um adolescente e sua vulnerabilidade pode ser discutida. Vale ressaltar o PL 1.213/2011, da Câmara dos Deputados, que pretende relativizar a vulnerabilidade no caso do ofendido portador de deficiência mental quando estiver o mínimo de capacidade para consentir. Em resumo, defende-se aqui a relativização da vulnerabilidade sexual quando o menor estiver entre os 12 e os 14 anos de idade. Se há o mínimo de maturidade para receber uma medida socioeducativa, e responder por ato infracional, deve ser permitida a prova em sentido contrário em relação à vulnerabilidade para os atos sexuais. Reafirmando: não se defende a retirada da presunção ou a redução da idade do tipo penal para 12 anos; o que se pretende é permitir ao acusado provar que o ofendido, entre 12 e 14 anos, tem capacidade suficiente para consentir, uma vez que o consentimento valido tornaria o fato materialmente atípico. Se a tipicidade material é a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, o consentimento válido espanta qualquer ofensa à dignidade sexual, que é o bem jurídico tutelado pela norma em questão.

O legislador, portanto, adota políticas legislativas diferentes no que tange à punição e autodeterminação. O Estatuto da Criança e do Adolescente entra em conflito com o Código

Penal, que não reconhece a capacidade de um adolescente (indivíduo maior de 12 anos, de acordo com a lei 8.069) de poder exercer a sua sexualidade com liberdade.

Mostra-se totalmente incoerente e desmedido a política de um Estado que adota um critério mais amplo no que tange à punição de jovens, de forma a submeter uma maior quantidade a medidas socioeducativas que se mostram verdadeiros eufemismos de pena, e ao mesmo tempo restringe a liberdade sexual dos jovens com critérios etários mais rígidos, de forma a punir o parceiro sexual de um adolescente tão somente pela sua idade, sem perquirir de forma satisfatória a suposta ofensa que o referido parceiro cometeu em face da dignidade sexual do jovem.

Nucci (2014, p. 142) ressalta o atraso do legislador brasileiro, no mesmo sentido,

O legislador brasileiro encontra-se travado na idade de 14 anos, no cenário dos atos sexuais, há décadas. É incapaz de acompanhar a evolução dos comportamentos na sociedade. Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente proclama ser adolescente o maior de 12 anos, a proteção penal ao menor de 14 anos continua rígida. Cremos já devesse ser tempo de unificar esse entendimento e estender ao maior de 12 anos a capacidade de consentimento em relação aos atos sexuais. Porém, assim não tendo sido feito, permanece válido o debate acerca da relatividade da vulnerabilidade no tocante ao adolescente, vale dizer, do maior de 12 anos e menor de 14.

Essa “janela” etária em que o legislador deixou desarranjado o conceito de vulnerabilidade para fins de interpretação jurídica mostra a falta de clareza com que se tem a presunção de vulnerabilidade nos mais diversos diplomas, de forma que uma incerteza não pode legitimar uma condenação.

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