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Estratégias defensivas e sentidos do trabalho

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Para melhor compreensão dos conflitos vivenciados pela mãe egressa da licença maternidade, confrontada entre papeis sociais percebidos como conflitantes, posta diante imposição social do cuidado com o(s) filhos(s) em confronto com seu trabalho fora do ambiente privado, remunerado, deve-se ainda considerar como essas mulheres, a partir de suas vivências, vão desenvolvendo mecanismos de defesa.

A análise psicodinâmica das vivências das mulheres trabalhadoras relacionadas à organização do trabalho produtivo e reprodutivo permite o entendimento dos processos atrelados à dinâmica saúde/doença no trabalho doméstico e organizacional. Neste contexto, a organização do trabalho representa uma realidade social que mobiliza e também é mobilizada pela trabalhadora que, por sua vez, coloca sua subjetividade e constitui a intersubjetividade no trabalho (Mendes & Facas, 2011).

Esta análise propõe o entendimento da dinâmica existente no contexto de trabalho, que pode ser definida pela "atuação de forças, visíveis e invisíveis, objetivas e subjetivas,

psíquicas, sociais, políticas e econômicas que podem ou não, deteriorar esse contexto, transformando-o em lugar de saúde e/ou de patologias e de adoecimento" (Mendes, 2007, p. 29).

Considerando que trabalho e maternidade são duas atividades possíveis, para que possa conciliar as duas atividades, a mulher precisa encontrar caminhos muitas vezes relegados à sua responsabilidade individual. Entre estes, Rocha-Coutinho e Rocha-Coutinho (2011) acreditam que na maior parte das vezes, as mulheres conseguem separar claramente casa, família e profissão, reduzindo deslocamentos, horas-extras e evitando trazer trabalho para casa.

Nesta perspectiva, segundo Mendes (2004), pode-se compreender que tal sofrimento que estas mulheres experimentam não se configura exatamente como forma de adoecimento, uma vez que as trabalhadoras passam a fazer uso do potencial que possuem como uma forma de recurso interno e externo para transformação do sofrimento na busca pelo prazer e realização.

Ainda com base em Mendes (2004), esta dinâmica é marcada pela utilização de estratégias defensivas capazes de mobilizar as trabalhadoras de maneira individual ou coletiva, estabelecendo uma relação mais gratificante com o trabalho e também buscando o reconhecimento, fator essencial no processo de construção da identidade profissional.

Segundo Dejours (1994), o sofrimento promove estratégias defensivas, suscitando assim uma ideologia defensiva, na qual seu caráter é vital, fundamental e necessário. Para o autor, "a ideologia defensiva é funcional a nível de grupo, de sua coesão, de sua coragem, e é funcional inclusive a nível do trabalho; é a garantia da produtividade" (Dejours, 1992, p. 78). Esta surge substituindo os mecanismos de defesa individuais por estratégias coletivas de defesa, que "agem sobre a percepção da realidade, tornando-a mais suave e, concedendo ao sujeito uma segurança que, apenas com suas próprias defesas, ele será incapaz de garantir" (Dejours, 1994, p. 117).

A diferença fundamental entre um mecanismo de defesa individual e uma estratégia coletiva de defesa é que "o mecanismo de defesa está interiorizado, ou seja, ele persiste mesmo sem a presença física de outros, enquanto a estratégia coletiva de defesa não se sustenta a não ser por um consenso, dependendo assim, de condições externas" (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994, p. 114).

Para Mendes (1996), as estratégias defensivas são necessárias para a saúde do trabalhador, já que protegem o sujeito contra o sofrimento causado pelas situações de trabalho

geradoras de conflito e evitam o adoecimento, ainda que a condição necessária para o equilíbrio psíquico deste estaria na possibilidade de o âmbito laboral ser um local de reconhecimento, liberdade e valorização do trabalhador. Em contrapartida, essas defesas tornam-se negativas quando alienam o indivíduo, imobilizando-o e não provocando mudanças no contexto de trabalho.

Cabe salientar que, conforme Lancman (2003, p. 33) "o desenvolvimento da identidade e a transformação do sofrimento estão diretamente relacionados ao olhar do outro e aos mecanismos de reconhecimento decorrentes deste olhar." Desta forma, para Tschiedel e Traesel (2013, p. 623), "ao não encontrar espaços de visibilidade, o sofrimento vivenciado pela mulher em seu trabalho, pode encontrar no corpo, na dor, na somatização o lugar para se expressar, levando ao adoecimento". Segundo as mesmas autoras, Tschiedel e Traesel (2013, p. 620), "quando as estratégias de defesa coletivas falham pelo individualismo, surgem as patologias da solidão, sendo que a dor pode estar entre estas indicando que está havendo no trabalho uma condição insuportável que a mulher não está conseguindo transpor ou elaborar"

No Brasil, a tentativa de conciliar maternidade e carreira, a fim de postergar a separação mãe-bebê, foi discutida no âmbito político. Desde 1943, com a instituição da CLT, a legislação que garante esse momento entre mãe e filho nos primeiros meses de vida do bebê, o que é nomeado de licença-maternidade. Com a necessidade de ir além, em setembro de 2008, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o aumento da licença- maternidade de 120 para 180 dias, no entanto, a extensão não é obrigatória.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (2010), há pesquisas internacionais que indicam que a manutenção do vínculo entre a mãe e o bebê após seu nascimento é intensificado pelo convívio entre os dois, gerando uma sensação de maior bem-estar à criança e uma maior probabilidade de boa saúde mental ao mesmo.

Portanto, essa separação do bebê é um momento importante na vida da mulher e da própria criança. O fim da licença-maternidade e a hora do reingresso no mercado de trabalho, conforme propõe Jerusalinsky (2009), têm implicações importantes para as mulheres. Conforme a autora, elas tendem a não conseguir reinvestir da mesma maneira nesses dois espaços; seja pelo temor de faltarem excessivamente ao seu bebê, seja por não saberem dosar a presença ausência com seu filho. Este conflito relaciona-se em grande medida à ideia de mãe ideal. Também deve-se considerar que a maneira como as responsabilidades de cuidar dos filhos recai sobretudo sobre as mulheres, estas se veem impossibilitadas para realizar atividades no trabalho que ampliem o distanciamento do ambiente doméstico (viagens de trabalho inesperadas, horas extras etc.).

Mesmo tendo o afastamento do trabalho legitimado, Martins e outros (2014) aponta que com a aproximação do fim da licença maternidade muitas mulheres trabalhadoras começam a sentirem-se culpadas por terem de deixar o seu bebê, como se o estivessem a abandonar, angustiando-se com o regresso ao trabalho que se aproxima. São invadidas por preocupações e medos, receando influências no aleitamento materno e perda do estatuto de mãe (receio de ser dispensável se não perpetuar a amamentação, receio de que o bebê passe a gostar mais da cuidadora do que de si, ou de que se esqueça de si como mãe). Para que o trabalho seja fonte de saúde, há necessidade do reconhecimento daquele que trabalha, uma vez que neste reconhecimento reside a possibilidade de transformar o sofrimento em prazer (Dejours, 1999).

Mediante a tal reflexão, considerando o sofrimento experimentado pelas mulheres devido ao retorno ao trabalho, torna-se relevante salientar que, de modo geral, o trabalho precisa fazer sentido para o próprio sujeito, para seus pares e para a sociedade (Dejours, 1987). Isso nos leva a compreender que o sentido do trabalho é formado por dois componentes: o conteúdo significativo em relação ao sujeito e o significativo ao objeto. No que tange ao conteúdo significativo do trabalho em relação ao sujeito, o autor identifica as dificuldades práticas das atividades, a significação da atividade acabada em relação a uma profissão, noção que contém ao mesmo tempo a ideia de evolução pessoal e de aperfeiçoamento e a posição social implicitamente ligada ao posto de trabalho determinado.

No caso da mulher, torna-se relevante salientar que tal sentido possui um lugar ainda mais desafiador, considerando que a ela é dado um papel de múltiplas funções, o que abarca tanto trabalho doméstico, ou seja, cuidado da casa em geral, trabalho reprodutivo, e trabalho produtivo, aquele que por sua vez é reconhecido socialmente. O primeiro, embora traga um significado amplo inclusive no que tange ao desenvolvimento das atividades profissionais da família como um todo, ainda hoje é invisibilizado.

Em outras palavras, a mulher não recebe o reconhecimento de trabalho efetivo, que continua compreendido como coisas de casa. A este modo, ressignificar o sentido de ser trabalhadora e de trabalhar torna-se uma atividade ainda mais engenhosa, já que deverá dar um novo colorido tanto ao trabalho produtivo, quanto ao reprodutivo.

O trabalho para fazer efetivamente sentido para as mulheres após a licença- maternidade, desta forma, deverá permitir a reconstrução de sua identidade pessoal, social e também trabalhadora, por meio das tarefas que executa, no seu trabalho tanto produtivo quanto reprodutivo, permitindo que ela consiga se identificar com aquilo que realiza. Uma

vez que tal identificação pode fazer com que o sofrimento vivenciado a priori, possa vir a se transformar em prazer sequencialmente.

Quanto ao conteúdo significativo do trabalho em relação ao objeto, Dejours (1992, p. 40) destaca que ao mesmo tempo em que a atividade de trabalho comporta uma significação narcísica, a mesma pode suportar investimentos simbólicos e materiais destinados a outro, isto é, ao objeto. A atividade pode também veicular uma mensagem simbólica para alguém, ou contra alguém. A atividade do trabalho, pelos gestos que implica, pelos instrumentos que movimenta, pelo material tratado, pela atmosfera na qual opera, veicula certo número de símbolos. A natureza e o encadeamento destes símbolos dependem, ao mesmo tempo, da vida interior do sujeito, do que ele introduz de sentido simbólico no que o rodeia e no que faz.

Por último, cabe aqui dizer, com base em Dejours (1987), que a significação profunda do trabalho para cada uma das mulheres trabalhadoras egressas da licença maternidade deve ser própria, ou seja, sendo criada a partir das técnicas particulares desenvolvidas por cada uma. Tendo em vista que Dejours (2012) revela que o trabalho vivo consiste não apenas em produzir, mas também em transformar o existir do próprio sujeito.

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