• Nenhum resultado encontrado

a Estressores atribuíveis às peculiaridades da morte por suicídio

CAPITULO 2: O SUICÍDIO E O SEU LEGADO: ASPECTOS DA MORTE AUTO-

2.3. a Estressores atribuíveis às peculiaridades da morte por suicídio

Todos a perdas são traumáticas, mas algumas são mais traumáticas dos que outras (Parkes, 2009). Se experiências traumáticas contribuem para causar problemas psicológicos, então, podemos esperar mais sofrimento emocional entre as pessoas que perderam alguém de um modo traumático do que entre aquelas cujas perdas se deram em situações tidas como aceitáveis.

O ato suicida é um gesto que viola radicalmente a própria noção de autopreservação que é um dos pressupostos mais básicos e valorizados no universo de concepções que construímos e compartilhamos socialmente. Em função desta característica, tornamo-nos propensos a acreditar que este modo de morte é mais traumático, uma vez que os enlutados possivelmente encontrarão maior dificuldade para integrar o seu significado ao arcabouço de seu mundo presumido.

Se os enlutados, de um modo geral, são pessoas em luta para preservar e reconstruir seu universo de concepções ameaçado; em função de uma morte causada por suicídio eles parecem encontrar um desafio ainda maior.

Muitos pesquisadores defendem que um dos fatores determinantes no impacto da morte por suicídio é que neste modo de morte a própria pessoa tirou a sua vida. O caráter deliberativo conferido à morte por suicídio, por si só, torna o enlutamento mais difícil em pelo menos três aspectos: 1) Os sobreviventes de suicídio são mais propensos a desenvolver questionamentos dolorosos sobre os motivos que levaram a pessoa ao auto-extermínio; neste

sentido, eles se perguntam ―por que ela fez isso?‖ 2) Os sobreviventes apresentam maiores índices de culpa e acusação que os outros enlutados, e se perguntam ―por que não evitei que isso acontecesse?‖; 3) Eles apresentam forte tendência a se sentirem abandonados e rejeitados; o que acaba por acarretar grande raiva pelo morto. Neste sentido eles se perguntam ―como ele foi capaz de fazer isso comigo?‖ (Jordan, 2001).

Hoje sabemos que, embora, haja muitos sinais que antecedem essa morte, como, tentativas de suicídio fracassadas, comunicações da intenção suicida ou evidente piora no estado emocional da pessoa; a morte por suicídio quase sempre é sentida como algo inesperado e absurdo. Os sobreviventes de suicídio costumam relatar que, a despeito da existência de diversos sinais antecipatórios, não haviam pensado na concretização do ato como uma possibilidade real. De tal modo, ao saberem da morte, muitos reagem com a mesma surpresa e descrença que se percebe em mortes acidentais repentinas (Grad & Zavasnik, 1996; Silverman, Range, & Overholser, 1994–1995; Smith, Range, & Ulmer, 1991–1992; van der Wal 1989–1990, citado por Jordan 2001).

Imediatamente após surpresa, os enlutados por suicídio se sentem sufocados por questionamentos a respeito dos significados e das circunstâncias que rondaram a morte. A natureza deliberativa do suicídio faz com que eles passem muito tempo se questionando sobre os significados e intenções subjacentes a este ato. Eles se perguntam sobre as motivações e outros condicionantes do ato, tornando-se mesmo ―obcecados‖ por estes questionamentos, que geralmente são acompanhados por reações emocionais intensas como angústia e a raiva (Bolwby, 1985; Ellenogen & Gatton, 2001 & Moura, 2006).

Em certa medida, podemos dizer que durante o processo de luto, os sobreviventes de suicídio terão que integrar ao seu universo de concepções, a realidade de um ato que, independente do nível de intencionalidade ou consciência do seu executor, viola de modo

radical um dos pressupostos que estão na base daquilo o que confere sentido de valor à própria vida.

Além disso, é comum que familiares e amigos sejam testemunhas do ato suicida. O comportamento suicida muitas vezes é motivado por questões interrelacionais. Alguns indivíduos em desespero podem ser movidos por desejo de punir as pessoas que eles julgam responsáveis pelo seu sofrimento, conferindo um caráter de comunicação ao seu ato, chegando mesmo expor ―terceiros significativos‖ ao trauma de presenciarem sua morte. Além desta exposição intencional ao ato suicida, é comum que suicídios aconteçam dentro ou nas cercanias da casa, e que familiares sejam os primeiros a ter contato com a cena e o com o corpo do suicida. Por isso, é frequente, entre os sobreviventes, a presença de quadros sintomáticos associados ao Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT).

Callahan (2000, citado por Cvinar, 2005) está entre aqueles que afirmam serem poucas as diferenças entre o luto dado por uma morte natural e o luto causado por suicídio. Numa pesquisa com 210 sobreviventes, este autor conclui que o chamado enlutamento por suicídio é na verdade uma combinação de reações de luto e de transtorno de estresse pós-traumático, minimizando a importância conferida a fatores como o estigma social.

Sabemos hoje, que pessoa com TEPT podem passar até vinte anos com a sintomatologia ativa, o que quase sempre acarreta grandes prejuízos emocionais e funcionais (Gabbard, 1998). Deste modo, enlutados podem ser tomados pela revivência involuntária dos eventos, como se voltassem a experimentá-los através de imagens intrusivas que surgem como flashs em suas mentes e em pesadelos. Para evitar a angústia gerada por essas memórias, passam a evitar estímulos que lembrem o evento traumático. É comum que durante muitos anos, sobreviventes tentem evitar qualquer referência que lhes remetam aos eventos associados à morte. Eles evitando tocar no assunto, desfazem-se de objetos, fotos, muitas vezes mudam de casa ou mesmo cidade (Knieper, 1999).

As idéias de auto-acusação e a culpa são componentes comuns a todo o processo de luto, mas, parecem intensificadas no caso da morte por suicídio. No luto de um modo geral, é comum que ela se apresente em formas leves de auto-reprovação leve, como no caso de uma viúva que sente que poderia ter feito mais pelo marido quando este estava doente ou à beira da morte. Porém quando a pessoa se sente convencida de que é diretamente responsável pela morte, essa acusação pode representar um componente complicador do luto. Parkes relata uma pesquisa com quatorze pacientes que foram internados em função de reações de luto em que mais da metade (oito pacientes) expressaram fortes idéias de auto-acusação (Parkes, 1998).

Muitas pesquisas afirmam que os sobreviventes de suicídio mostram níveis mais altos de culpa, acusação e responsabilização que outros enlutados. Enlutados por suicídio se perguntam com muita frequência: ―Porque não fiz nada para evitar a morte?‖ É comum, por exemplo, que se sintam os responsáveis diretos pelo suicídio, por não terem oferecido atenção suficiente aos sinais que anunciavam o ato, ou por terem abandonado a pessoa nos momentos próximos à morte. O mais frequente, porém, é que eles se acusam por não terem antecipado ou prevenido o ato suicida (Cleiren, 1993; Demi, 1984; Kovarsky, 1989; McNiel, Hatcher, & Reubin, 1988; Miles & Demi, 1991–1992; Reed & Greenwald, 1991; Silverman et al., 1994– 1995, citado por Jordan, 2001).

Raphael e Maddison (1976, citado por Bolwby, 1985) relatam um caso de uma mulher que, poucas semanas antes da morte do marido havia se separado dele, mandando-o embora, dizendo-lhe que se matasse - foi o que ele fez, usando o escapamento do carro para se matar com gás carbônico. Como este, inúmeros relatos mostram o quanto é comum que alegações ou atitudes tomadas por uma pessoa antes de se suicidar acabam por ser interpretadas como uma mensagem de que alguém foi o responsável, induzindo tal atitude. Estes gestos exacerbam entre os enlutados a já pesada carga de culpa e acusação comuns ao luto, mesmo

nos casos em que estas alegações sejam evidentemente de cunho fantasioso. Não podemos esquecer que há também a possibilidade do suicida agir de um modo deliberadamente destrutivo, com a intenção de causar danos a quem ele entenda possa ter lhe, de algum modo, ofendido. Neste sentido, parece ser verdade a frase atribuída a Vicent Van Gogh, que diz que ―o suicida faz com que seus familiares e amigos se sintam seus assassinos‖ (Bowlby, 1985).

A natureza deliberativa da morte por suicídio a torna passível de ser interpretada e sentida pelos enlutadas, como, mais do que um gesto de desespero ou desistência, um gesto um abandono e rejeição. Vários estudos têm indicado que o os enlutados por suicídio experimentam intensos sentimentos de rejeição e abandono. Em resposta, os enlutados tendem a viver uma grande raiva do falecido e de si mesmos. Eles se perguntam ―Como ele pode ter feito isso comigo?‖ ou mesmo ―O que eu fiz para merecer que ele fizesse isso comigo?‖ (Barrett & Scott, 1990; Reed, 1998; Reed & Greenwald, 1991; Silverman et al., 1994–1995; van der Wal, 1989–1990, citado por Jordan, 2001).

Cain (1972, citado por Bolwby, 1981), chama atenção para o fato de que, sobretudo, crianças que se tornam órfãs em decorrência do suicídio, são vulneráveis ao sentimento de culpa e abandono. Elas são particularmente propensas a interpretar o suicídio como uma rejeição, associando este ato à idéia que são, de algum modo, culpadas, não foram boas, ou não se comportaram o suficiente para merecer o amor de seus pais. Segundo Cain (1972) a crença, mesmo que fantasiosa, de uma criança na sua culpa pelo abandono de um dos pais pode repercutir em consequências duradouras no desenvolvimento de sua auto-estima.