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Mudanças definitivas na visão de mundo e de si mesmo

Categoria 2 O luto por suicídio: experiências e elaborações

H. A retomada da própria vida e a saudade

I. Mudanças definitivas na visão de mundo e de si mesmo

O luto representa um processo de intensa transição, através do qual os indivíduos se vêem obrigado a rever uma série de conceitos estabelecidos sobre si mesmo e sobre o mundo. Também no luto que se desenrola em função de uma morte por suicídio, os enlutados vêem-se lançados num universo de experiências novas e desafiadoras. Como resultado, é natural que os indivíduos desenvolvam um renovado corpo de representações sobre si mesmos e sobre o mundo. Nesta seção abordaremos como os entrevistados representaram estas transformações.

Podemos perceber que, em função de fatores diversos como o grau de relação com o falecido e as condições financeiras no momento da perda, a maior parte dos entrevistados não mantinha nenhum tipo de dependência financeira do falecido. Como abordamos no tópico anterior, é comum que os enlutados se percebam obrigados a desempenhar papéis e tarefas que eram de obrigação do falecidos. Uma única participante de nossa amostra vivenciou esta

problemática que parece muito comum entre os enlutados de um modo geral. Por ocasião de sua perda, ela cuidava de dois filhos pequenos, nunca havia trabalhado e dependia economicamente de seu marido. Ela expressa como a morte do marido lhe obrigou a desempenhar novos papéis, o que deu ensejo ao surgimento de concepções e atitudes renovadas sobre si mesma. Ela disse: "Depois que ele faleceu que eu vim poder sair, trabalhar. Acho que antes eu ficava todo tempo dentro de casa, não sabia fazer mais nada além de cuidar de casa. Sair pra fora, pra trabalhar, foi algo que só aconteceu depois que ele morreu. No início, foi muito difícil, mas hoje o que eu mais quero é arrumar um novo serviço pra poder trabalhar, porque a gente ficando em casa a gente pensa muita coisa que não presta, e trabalhando você não tem tempo pra ficar pensando besteira. Hoje eu não sei como eu consegui ficar tanto tempo só dentro de casa." (participante 5). Para ela que se casou aos 14 anos, o processo de luto foi marcado pela obrigação de um amadurecimento forçado. No início ela se desesperava em saber que, daquele momento em diante, seria a única responsável pelos dois filhos pequenos. Não, sem motivos, ela que tinha apenas 19 anos quando perdeu o marido, revela ter apresentado dificuldade em retomar a própria vida.

As mudanças repentinas e indesejáveis que a perda impõe obrigam os enlutados a mudar de planos, a rever uma série de conceitos sedimentados e mesmo, a assumir uma nova identidade. Embora, posteriormente, alguns entrevistados reconheçam um grande crescimento pessoal, frente a mudanças tão profundas, é natural a emergência de sentimentos como revolta, insegurança e resistência. Em relação a esta resistência a participante 5 disse: ―Eu pensava assim: Deus, eu quero casar, eu quero ter meu marido e jamais quero ficar viúva. E hoje, em certas situações, quando eu preciso dizer meu estado civil, eu tenho muita dificuldade pra dizer que sou viúva. Até hoje, treze anos depois, eu ainda não mudei meus documentos, ainda tenho o sobrenome dele e tudo"(participante 5).

Assim como essa participante, os outros entrevistados relataram que ao final de seu processo de luto, muitas mudanças se efetivaram em suas vidas. Estas mudanças compreendem aspectos diversos de suas vidas, como suas relações interpessoais e familiares e o valor conferido à própria vida. Os participante 6 e 8 fizeram referência a uma maior preocupação com a criação dos filhos, com a coesão e com os valores familiares. Por acreditarem que a qualidade das relações familiares está na base dos comprometimentos que levaram seus parentes ao suicídio, eles voltaram suas atenções à construção de uma relação mais saudável e amigável com seus filhos. Os entrevistados 1, 2, 3 e 8 disseram terem saído do luto muito mais sensíveis e atentos aos problemas alheios. Os entrevistados 1 e 2 revelam que as experiência que viveram foram fundamentais para definir qualidade de sua atuação como psicólogos, a participante 3 relata que se tornou voluntária no CVV pelo desejo de ajudar as pessoas e evitar outras mortes semelhantes as do seu primo.

O participante 2 define como a morte de sua mãe foi decisiva para sua escolha profissional: ―Aí que eu acho que entra a psicologia, de eu ser mais sensível às causas humanas, essas questões de mesmo poder ajudar, de acolher... não só acolher, mas fazer mais coisas pelo ser humano, talvez eu pense isso assim. Entrei nessa área e me questionei bastante porque eu escolhi isso. Quem sabe, talvez salvando outras pessoas na verdade eu estaria salvando a minha mãe?‖ (participante 2)

Outro psicólogo, o participante 1 reflete: "Um coisa importante que ficou foi a questão da atenção aos outros. É... acho que na vida, aquela velha frase: ‗nenhum homem é uma ilha‘. Acho que a gente vive muito numa história de 'meus problemas eu resolvo', a gente tem que entender que nossos problemas não são só nossos, são de todo mundo. E quanto mais a gente quer resolver as coisas sozinhos, acho que pior fica pra resolver esses problemas. O próprio suicídio tem a ver com esta atitude egoísta. É como se fosse uma gigantesca teia de aranha

que, em algum momento fez um nó, e ao invés da pessoa tentar desatar o nó, é como se ela apertasse tudo junto e fizesse vários outros nós.‖ (participante 1)

A partir do momento em que puderam avaliar melhor o conjunto de motivações e condições que culminou na morte de seus parentes e amigos, muitos enlutados passaram a assumir uma postura mais flexível e compreensiva frente às pessoas que recorrem ao suicídio. A participante 3 revelou: ―Antes eu pensava: 'só um covarde faz isso'. Hoje esta é uma forma de pensar que eu odeio. Acho que é um ato de muito desespero, de muita dor, num momento muito difícil. Sinto muito mais pena do que sentimento de reprovação. Nunca tive uma atitude de reprovação, mas hoje entendo o suicídio como o resultado de um sofrimento intenso, uma dor muito grande. Eu tenho hoje muito mais pena do que eu já tive." (participante 3).

Duas entrevistadas (participantes 4 e 5), no entanto, mantiveram por anos uma postura de condenação em relação à vítima. Elas apresentaram pouca flexibilidade em seu julgamento. Neste caso, fatores como a crença na condenação divina e uma avaliação negativa das motivações do ato, parecem contribuir com esta rigidez. O fato de a vítima não ter mostrado arrependimento e ter reafirmado seu desejo suicida antes da morte parece determinante neste caso. A participante 4, disse: "antes de morrer ele teve a oportunidade de pedir desculpas a Deus, pedir perdão. Mas ele não fez, ele falou que se os médicos o salvassem ele tentaria de novo, ele que queria mesmo morrer. Hoje é difícil falar dele porque eu sei que ele não está num lugar bom ." (participante 4)

Enquanto alguns entrevistados revelaram serem tomados por fortes ideações suicidas nos anos seguintes à morte (participante 4, 5 e 6) o resultado final da crise, pode ser o abandono da ideação suicida, sobretudo entre aqueles que encontram apoio adequado. Terem sentido na própria pele o que o choque provocado pela perda faz com que algumas pessoas avaliem mais cuidadosamente a gravidade do impacto do suicídio. A participante 3 revelou: ―Eu nunca na minha vida pensei em me matar efetivamente, eu nunca reconheci em mim um

traço suicida. Mas eu penso que, se algum dia eu viesse a ter, depois da morte dele eu tenho certeza que isso jamais vai acontecer, em hipótese alguma. Pois eu pude ver o tamanho da dor das pessoas que ficam. Entendeu? Então o que mudou pra mim com a morte dele? Hoje eu tenho a certeza de nunca na minha vida teria coragem de fazer uma coisa dessas, nunca! Seja qual fosse o tamanho do sofrimento que eu tivesse, entendeu? Por ter passado pela dor que é perder.‖ (participante 3)

O participante 1 resume: "(...) já tinha tido ideações suicidas, eu me projetei um pouco no ato dela. Isso me permitiu concretizar as consequências do suicídio e, através do suicídio dela, eu consegui me colocar um pouco no lugar de alguém que se mata. Acho que contribuiu pra acabar um pouco com a minha própria ideação suicida." (participante 1) O próprio participante 1 revela que a morte de sua amiga o fez desenvolver uma visão mais realista da vida. A partir deste evento, e com a ajuda da terapia, ele passou a refletir e valorizar mais a própria vida. Ele disse: ―eu comecei a terapia pouco antes da morte dela, estava vivendo um término de uma relação importante para mim. Todos esses episódios juntos acabaram contribuindo com a mudança que foi muito positiva, foi um momento em que eu pude de certa forma morrer e nascer de novo, ressignificar bastante da minha vida. Eu acho que o que morreu com ela foram as ilusões, aquela parte iludida... acho que ela levou as ilusões. É... foi um pouco assim, um final de adolescência e início de fase adulta, é como se você vivesse sempre naquela ilusão de presença, de vida contínua, de ordem, que tudo segue uma coisa lógica, mesmo a morte se dá dentro de uma ordem, como se a pessoa antes pra morrer tivesse que adoecer e passar por todo um problema... O suicídio vem quebrar muito isso, ele quebra ilusões, ele arranca isso de você. Ele te mostra ‗não, a vida pode mudar radicalmente da noite pro dia‘‖ (participante 1).

Ainda para este participante, a crise gerada pelo suicídio de alguém querido traz reflexões importantes sobre o próprio exercício da liberdade e da responsabilidade. Ele disse:

―Eu vivia minha vida como se você tivesse aquele roteiro: você tem que ir pra faculdade, você tem que fazer tal coisa, você tem que ser bom filho, e tal... E o suicídio dela abriu a possibilidade de dizer: ‗olha, não tem que ser absolutamente nada disso, não quero nada disso e eu posso ser diferente‘. Embora eu não concorde com a ação em si, mas essa possibilidade de você dizer não, se tornou pela primeira vez clara pra mim. Eu passei a ter outra relação com a minha liberdade de ser‖ (participante 1).

Sobre a responsabilidade e a culpa a participante 3 revelou: ―Ninguém é culpado por isso assim. Ninguém é culpado! É uma escolha da pessoa, não é assim? Cada um é responsável pela sua escolha? Eu levei tempo para me livrar da minha culpa, mas no final eu entendo perfeitamente que a escolha foi dele, não foi minha e foi isso que me libertou‖.

Categoria 3 - O luto por suicídio: estratégias de enfrentamento e suporte psicossocial