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d O Suicídio pela perspectiva Sistêmica

CAPITULO 2: O SUICÍDIO E O SEU LEGADO: ASPECTOS DA MORTE AUTO-

2.2. d O Suicídio pela perspectiva Sistêmica

Cabe acrescentar, como sugere Blanca Werlang (2000), que as principais visões psicodinâmicas do suicídio estiveram, por muito tempo, circunscritas dentro de uma

perspectiva de cientificidade que fixava a sua atenção sobre os traços particulares dos fenômenos, dividindo-os para tratar separadamente as partes. A partir século XX, na medida em que os estudiosos sentiram a necessidade de abordar os fenômenos humanos sob uma perspectiva interrelacional, as metodologias que fundamentaram as explicações psicodinâmicas de então, tornariam-se insuficientes. O pensamento sistêmico nascia deste contexto, como uma contraposição às explicações do comportamento humano que se pautava pela valorização do universo intrapsíquico individual, que passariam a serem consideradas explicações reducionistas e mecanicistas (Werlang, 2000).

A partir do início do século XX, fez-se sentir a necessidade de uma nova perspectiva, o valor conferido à descrição exaustiva do fenômeno em sua perspectiva individual e intrapsíquica acabou por ceder seu lugar ao crescente estudo das relações de cada sujeito com os outros. Em detrimento da abordagem clássica dos fenômenos intrapsíquicos, tornou-se importante a compreensão dos sistemas, das organizações, ou seja, da totalidade de contextos nos quais os indivíduos estavam inseridos. Tanto a família, quanto a sociedade passaram a ser vistas como sistemas de interações complexas, tornando-se objeto privilegiado de investigação dos fenômenos psicológicos. O indivíduo torna-se então, um elemento de um grupo em interação emocional intensa com os outros membros. Assim, o indivíduo identificado como entidade isolada, portadora de sintomatologia, deixava de ter interesse conceitual, passando a ser apenas um dos elos de sistemas disfuncionais mais amplos. Eles passariam a ser abordados como partes integrantes de sistemas complexos com a família e a sociedade, cuja configuração e o modo de funcionamento transcenderiam a mera soma de seus indivíduos (Werlang, 2000).

Nesta perspectiva, os indivíduos suicidas não poderiam mais ser vistos fora de seus sistemas familiares e sociais. A família passaria a ser vista um sistema aberto, interagindo com sistemas mais amplos da sociedade e mantendo a sua coesão a partir de normas e padrões

constituídos historicamente para regular o comportamento de seus integrantes. O ato suicida então passaria a ser explicado como reação psicótica, resultado de um comportamento individual, em grande parte, induzido pela coletividade e por padrões disfuncionais no processo de regulação dos sistemas familiares e sociais (Werlang, 2000).

Pesquisadores há muito perceberam que determinados grupos familiares apresentam certa recorrência de comportamento suicidas. Isto se explica dentro da perspectiva sistêmica pela presença de modelos de regulação e padrões sócio-familiares disfuncionais. Estes padrões e modelos são transmitidos através das gerações e acabam por impor forte influência no surgimento das condutas autodestrutivas dos indivíduos do grupo. A transmissão transgeracional de modelos disfuncionais representa um verdadeiro legado de vulnerabilidades constituídas ao longo da historia destes sistemas. Este legado pode desembocar na repetição de conflitos e dificuldades individuais como o suicídio, a violência, a depressão e o alcoolismo dentro de um mesmo grupo familiar. Nesta perspectiva, o homem que se mata o faz por influência de condicionamentos prévios induzidos pelas sociedades e por intermédio do grupo familiar (Kalina, et al. 1983, citado por Werlang 2000).

Se, numa perspectiva imediatista, a presença de comportamentos suicidas na família pode ser percebida como uma questão pontual, decorrente de um fator desencadeante como o emprego perdido ou o rompimento com a namorada. Numa perspectiva sistêmica, percebe-se que as tentativas de suicídio dizem respeito a todo o sistema de interações afetivas no qual este indivíduo está imerso. Elas dizem respeito às pressões e vulnerabilidades constituídas transgeracionalmente por estes sistemas, bem como, ao modo como eles exercem sua força, atuando de uma forma única em cada um dos membros que os integram. O empirismo clínico tem mostrado que, perante um suicida ou um parassuicida, é frequente a existência de uma família-problema ou disfuncional.

Este fenômeno se estende, para além da família, a todo o universo de afinidade do indivíduo. Sabemos hoje, que impacto emocional de um ato suicida reverbera de um modo intenso em toda a rede de afinidades do sujeito. Dados demográficos mostram que um suicídio tem o potencial de lançar a todos os indivíduos próximos num grupo de risco onde é maior a incidência de outros suicídios. Não seria exagero, portanto, dizer que um suicídio gera outros suicídios, uma regra que parece especialmente verdadeira entre os adolescentes. Em decorrência de uma tentativa de suicídio na família ou círculo próximo de amizades, muitas pessoas passam a se questionar sobre o valor e as razões de se manter a própria vida. Outros ainda, seja por um gesto de identificação, aliança ou lealdade à vítima, acabam se sentindo impelidos a imitar o ato suicida. Nestas mortes é comum que os mesmos locais e métodos sejam usados, ressaltando um caráter de comunicação referencial, que pode vincular um ato suicida a outro ato que lhe precedeu (Solomon, 2001; Werlang & Kruger, 2010).

A crise desencadeada por uma tentativa de suicídio é vivida por todo o sistema de relações dos indivíduos, mas, sobretudo, os familiares vivem a crise de um modo mais intenso. Isto se explica na medida em que eles se vêem inseridos e desempenhando papéis diferentes numa mesma dinâmica de relações pautadas por padrões disfuncionais. É frequente também que eles estejam submetidos a pressões iguais ou maiores do que as que indivíduo suicida estava submetido. Talvez, o já conhecido risco aumentado de suicídio entre os amigos e familiares da vítima seja o principal reflexo deste fato (Werlang & Krüger, 2010).

2.3 - O legado emocional do suicídio: o enlutamento por suicídio

Pesquisas vêm reforçando a percepção compartilhada, tanto por estudiosos, como por leigos, de que a perda por suicídio é potencialmente mais difícil e pesada do que as perdas resultantes de mortes dadas em outras circunstâncias. Porém, mesmo face aos argumentos

como os acima expostos, a atual compreensão dos aspectos subjetivos correlacionados ao luto por suicídio ainda está longe de ser um campo isento de críticas e divergências. Seja pelo que diz respeito aos fundamentos metodológicos, seja pelo que diz respeito ao teor dos seus achados; torna-se evidente que este ainda é um campo de investigação incipiente, que pode e precisa ser melhor e mais profundamente explorado (Moura, 2006; Ellenbogen & Gratton, 2001).

Pesquisadores e clínicos vêm associando determinadas vivências e complicações psicológica ao luto dado em função da morte por suicídio. Dentre os afetos considerados como exclusivos ou mais intensos neste processo de luto, constam sentimentos de culpa, vergonha, raiva, sensação de angústia ou falta de sentido existencial, sentimento de estigmatização, de falta de apoio ou compreensão dos outros, assim como uma maior tendência ao isolamento. Algumas pesquisas sugerem que enlutados por suicídio estariam mais propensos a apresentar transtornos ansiosos e depressivos, assim como tendência a ideações e ao comportamento suicida. Além disso, pesquisas vêm confirmando a tese de que os sistemas familiares inseridos no contexto suicida apresentam mais dificuldades psicossociais antes do falecimento. Estas famílias apresentariam maior incidência de conflitos interpessoais, transtornos mentais e uso de substâncias (Gould & Kramer, 2003; Moura, 2006; Adam, 1981; Séguin, Lesage, & Kiely, 1995, citado por Ellenbogen & Gratton, 2001).

A fim de tecer nossa exploração sobre as peculiaridades desta vivência de um modo mais didático, a organizaremos a partir de um modelo inspirado numa proposta de John R. Jordan (2001). Este autor sugere que os principais estressores e impactos que caracterizam e diferenciam o luto gerado por uma morte por suicídio se dividem em três dimensões básicas. Agruparemos os elementos de nossa reflexão, portanto, a partir do que poderíamos chamar de estressores passíveis de serem agrupados nas três grandes dimensões propostos por Jordan. São eles: 1) Os estressores atribuíveis às peculiaridades do modo de morte; 2) os estressores

que dizem respeito aos processos sociais que circundam o enlutado; 3) os estressores do suicídio relacionados à dimensão do sistema familiar. Estas três dimensões se somam e se intercomunicam na experiência dos enlutados, de modo que os estressores citados se sobrepõem e se sucedem durante seu processo de luto.